O último Legado escrita por lawlie


Capítulo 2
Capítulo 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/36596/chapter/2

“Espero que seja um bom dia. Espero do fundo do meu coração despedaçado que você, leitor, aproveite cada segundo do seu tempo. Cada segundo, que na minha vida, eu desperdicei. Portanto, o prólogo que inicia com Carpe Diem!

Devo me apresentar, primeiramente. Sou apenas uma prisioneira, que esqueceu de sua vida. Meu nome? Sinto em dizer que ele é inexistente em minha memória. Por mais que eu tente me lembrar de como eu era chamada, eu não consigo. Lamento muito.

Pelo que consigo vascular em meu inconsciente, em meio a sonhos, eu possuía uma breve ligação a cerejeiras. Tenho quase certeza de que algo me recorda o florescer das cerejas. Aquele perfume se impregna em meu olfato. É inesquecível o farfalhar das folhas, o som do vento triscando lentamente fazendo as pétalas rosáceas bailar ao cair da tarde.

São apenas dessas flores que me recordo. Flores que custo a lembrar da cor. Meus olhos ficaram cinzentos. Não pude mais contemplar a beleza do colorido do mundo. Na verdade, onde estou não há beleza alguma. Apenas paredes úmidas e goteiras aumentando minha insanidade. 

Que eu tinha um nome era um fato. Mas a partir do momento que pus meus pés pela primeira vez aqui, não passo de um número. Uma identificação romana de quem sou. Mas junto com esses símbolos insignificantes para minha expectativa de vida está o sobrenome Haruno.

Creio que por causa desse sobrenome, fui cassada, perseguida pelo Estado, considerada um perigo da nação, presa e torturada injustamente.

Fui acolhida por esse cárcere lacrimoso há algum tempo. Nessa prisão sem nome, esquecida por Deus e ignorada pelos bons homens, eu passo meus últimos dias a pensar a injustiça mundana. Acabo de concluir que todos estão cegos. Não vêem mais a beleza e se recusam a ver a dor. 

Eu desejaria possuir um anjo que olhasse e orasse por mim nessa hora tão agonizante. Mas parece que eles me esqueceram aqui. Não existe misericórdia no inferno. Nunca existiu perdão entre os carcereiros, juizes, magistrados e poetas.

Para começar minha narração devo falar da circunstância a qual escrevo essa mensagem. Nas paredes duras, lodosas e frias, desse subsolo de pecados eu talho essas palavras com um pedaço pontiagudo de pedra. Não há papel ou tinta. Apenas a melancolia é meu pincel e o medo o meu bloco de notas.

Eu sei que a forma que conto minha biografia é errada. Não relato de meu nascimento, pois não sei como surgi no mundo. Vou contar a minha morte. A minha tragédia.

O fato é relevante, e penso que todos já devem estar cansados de ouvir meus lamentos. Portanto, pouparei palavras para o epílogo.

Tudo começou em uma noite, fria e nublada. Os céus pareciam conspirar com a nossa revolta. Não havia estrela alguma. As nuvens significavam o sangue que seria derramado horas depois. 

Éramos um grupo de jovens. Em plenos dezenove anos, cheios de motivações e vida. Idéias contestadoras era nosso lema. Íamos contra a maioria. Os pensamentos comprados. O imperialismo exacerbado. O autoritarismo do governo. O militarismo dos ditos “homens bons”.

Era uma época de ditadura que rimava com nossa juventude. E como todos tinham um brio de revolução, lutávamos com todas nossas forças para destruir esse regime.

Pedíamos apenas um pouco de liberdade. Pedíamos apenas permissão para viver. Sair nas ruas. Expressar o que quisermos. Porém, nossas idéias nunca eram bem vistas pelos grandes poderosos hipócritas que são o motivo de toda nossa desgraça.

Nessa noite de desventuras, o grupo de amigos saiu às ruas para manifestar. Espalhávamos panfletos divulgando igualdade, fraternidade e liberdade. Os mesmos ideais franceses do século dezessete. Os mesmos ideais que levaram muitos à guilhotina. O que não seria diferente conosco.

Já era meia noite. O toque de recolher já soara há tempos e mesmo assim, insistíamos em desobedecer à sirene que cala os sensatos. Era o sétimo dia de nosso manifesto. Ainda não tínhamos sido descobertos pelos cães sanguinários. Mas hoje, não ocorreu como o planejado. Alguém nos traíra. Denunciara-nos para a instituição que punia aqueles que simplesmente pensavam.

Corríamos por entre as ruas sombrias e molhadas pela chuva. Papéis se misturavam à lama e davam à aparência de um mingau notoriamente nojento. Os paralelepípedos faziam o grupo de jovens tropeçarem em meio à correria. Perseguidos por soldados defensores da rigorosa moral. 

Com cassetetes, bombas de efeito moral, balas de borracha e toda hostilidade a eles concebida, os militares nos perseguiam. Parecia que eles não desistiriam tão cedo, até obterem nossas cabeças. Não cansavam nem um pouco, apesar do ritmo frenético que possuíam a acompanhar nosso encalço.

Por fim, nós já estávamos cansados de fugir por meio a becos e ruelas criminosas. O ar era escasso em nossos pulmões e nossa arritmia cardia tocava sincronizadamente como uma orquestra sem maestro. O cansaço nos consumia e um remorso de que seríamos pegos pelos militares assolava nossos pensamentos.

Uma reminiscência tomou conta de mim nesse instante. Acabo de me lembrar vagamente dos rostos de meus amigos. Mas como sempre não posso recordar do nome. Um garoto loiro, uma de longos cabelos azulados, outro garoto de longos cabelos castanhos, uma garota loira, outra de coques castanhos, um garoto de cabelos presos em um rabo de cavalo e por fim, um garoto de cabelos negros e olhos profundos.

Agora me recordo muito bem de que sentia um belo sentimento por esse último. Eu me lembro do rosto, mas não consigo me lembrar do nome. Sei perfeitamente que nos amamos. E que esse amor teve frutos, que está em meu corpo nesse momento. Ele foi o único que amei por toda minha vida. Mas agora nos separamos há tempos. Será que ele ainda está vivo? Casou-se? Lembra-se de mim? Eu fiz questão de queimar todas as fotografias. Ele se foi e eu tomei um caminho diferente.

Lembro-me, o que quer que seja, parece que faz uma eternidade. Os arrependimentos são inúteis em minha mente. E ele está na minha cabeça agora. Devo confessar isso. E na noite mais escura, se minha memória não me falha, eu nunca vou poder voltar o tempo...

Mas voltando aos meus últimos momentos de liberdade, eu fiquei para trás. Caí estatelada nas pedras que forram as ruas da vergonha. O próprio demônio em meu encalço, farejando meus pecados e vindo me levar ao abismo. Parecia que meu fim estava próximo. Uma voz gritou, implorando que eu me levantasse. Quero acreditar que fosse a voz de meu amado. Minhas pernas fadigadas se recusaram a levantar. 

Os militares ditadores iam se aproximando. Tentava rastejar como um verme por aquele lodo. Queria apenas fechar meus olhos e desejar que tudo isso fosse embora. Queria poder acreditar que isso fosse um pesadelo. Em vão.

Rapidamente, os soldados, os quais desconheciam o significado da palavra compaixão, se aproximaram violentamente, e como se eu fosse um animal totalmente nocivo à ordem da sociedade perfeita, surravam-me com aqueles frios cassetes. Meus amigos gritavam. Estavam em desespero por eu ter sido pega. Eu apenas disse: Corram, seus tolos.

Era tarde demais. A única coisa que eu pude ver foi os olhos margeados de lágrimas do meu amor. Sabia que ele sofria ao me ver sendo espancada daquele jeito. Era deprimente. Um nó na garganta me impedia de reagir. Sequer conseguia chorar. Meu coração se despedaçava. Não podia me mover. Era como se o mundo acabasse naquele momento. Vi de relance meu amado tentando correr em meu socorro, mas ele era impedido pelo garoto loiro, que o empurrava para fugir.

O desespero me assolava. Sabia que nem mesmo as pancadas incessantes doíam mais do que a dor de ser separada de meu eterno amor. A dor da separação para toda eternidade me fazia querer a morte instantaneamente. Eu mal podia lembrar dele chorando desesperadamente pos minha causa. Mas em meio às sombras ele se foi. Fui pega. Após apanhar interruptamente, eu caí, aos prantos no chão. As lágrimas se misturavam à lama. Uma chuva começou a cair dos céus e a lavar minha dor. Eu sangrava praticamente cada centímetro de meu corpo. Estava retalhada e desfigurada por aquelas mãos malignas de ditadores. Era mais uma na lista de presos políticos. Era mais uma que talvez ficasse com o nome gravado na história por causa desse momento de vergonha do país.

Como se minha morte compensasse toda conspiração e revolta. Mas nada compensaria minha perda. Perdi minha liberdade. Perdi minha razão. Perdi minha família. E perdi o único amor que me restara. Contento-me agora com o legado que nós dois deixamos. Receio em dizer, que com minha morte ele irá falecer também. Mas foi a herança e a memória que tenho do meu amado dentro de mim. O resultado de nossa paixão.

Não importa. Depois daquela noite eu iria contar a ele. Mas sinto muito, amor, não voltarei para casa. Nem hoje. Nem nunca. Estava desmaiada no chão da ruela, cercada pelo exército e pronta para ser encaminhada para o lugar onde todos pagam pelos os erros da humanidade. Sinto muito. Fui pega. Dir-te-ei adeus antecipadamente. Mas antes terminarei de contar minha história.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O último Legado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.