Filha De Hécate escrita por AnnaBraciforte


Capítulo 7
Garoto, apostas e nirvana


Notas iniciais do capítulo

Enjoy



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Ele sabia! Como ele sabia? Depois de alguns segundos pensando nisso, senti algo em minhas pernas. Videiras enroscavam-se nos meus pés, depois até os meus joelhos. Eu estava presa. Alguém abriu a porta.

– Eu não disse – disse um querubim de camisa havaiana virando-se para Quíron que parecia perplexo em sua cadeira de rodas. Depois se virou para mim, com as bochechas muito rosadas e disse – Sua mãe nunca te ensinou que é feio escutar por detrás das portas?

– Oh, Não. – Rachel lamentou enquanto me olhava. A essa altura, a videira tinha se enroscado em meu pescoço.

– Diga garota, seus pais mortais não te ensinaram nada? – O querubim repetiu.

O que esse idiota queria? Que eu conseguisse falar com essa droga no meu pescoço? Eu só soltava grunhidos, e já estava começando a me sufocar.

– Dionísio, pare! – Quíron advertiu.

– Ela estava escutando nossa conversa.

A videira ficava cada vez mais apertada, então peguei a primeira coisa que encontrei em meu cinto, enquanto tentava soltar a videira com a mão direita, usei a esquerda para pegar a varinha. Foi rápido, mas peguei a varinha e imaginei a videira apodrecendo. E foi assim, quando encostei a varinha na planta ela começou a se desintegrar.

– Hérmia! – Quíron gritou.

Me virei e sai correndo da casa grande. Passei por vários campistas com tanta pressa que até esbarrei em alguns. “Não importa, tudo que eu quero é ficar o mais longe possível daquela casa.” pensei. Perto da arena diminui a velocidade, mas não parei. Quanto mais longe melhor eu me sentia. Ouvi gritos atrás de mim, comecei a correr de novo. Quando dei por mim já estava no meio do bosque. Me concentrei no meu olhar de coruja, não conseguia ver onde terminava. Eu estava perdida.

Uma arma, sempre em uma situação de perigo pegue uma arma. Peguei minha adaga. Tentava me manter alerta. Ouvia grunhidos, passos e outros sons estranhos que pareciam estar muito longe. Vou ficar aqui, sim, parada aqui até alguém me encontrar e me levar de volta ao acampamento. De repente, vi um amontoado de pedras. Resolvi ficar lá, um lugar visível, que eu podia me encostar. Me sentei junto as pedras enquanto esperava. Será que tinha algum filho de ares perambulando por ali?

Lembrei de todas as vezes que meu pai me obrigava a usar lentes castanhas para disfarçar a verdadeira cor. Usava todo dia, só tirava em casa e quando íamos viajar.

– Garotinhas não deviam andar assim, sozinhas. – Disse uma voz rouca. Eu me levantei.

Fitei o garoto, ele tinha sobrancelhas grossas e olhos cor de âmbar desafiadores e arrogantes, como se dissessem “Ei aposta que consigo te matar em 20 segundos?”. Seus cabelos castanhos estavam presos atrás de uma de suas orelhas e cobriam a outra. Usava a camiseta laranja do acampamento e calcas jeans claras. Parecia esperto e atento, levava uma espada na mão direita. Ele era ligeiramente mais alto que eu.

– Garotinha? – Eu não era pequena, nada justificava um diminutivo.

– Sim, garotinha! Se perdeu foi?

– Claro que não! Eu só...

– Só o que? Você se perdeu, eu sei.

– Que seja, então eu me perdi. Vai me ajudar ou não?

– Ajudar no que? – disse ele apoiando a espada no chão.

– A sair daqui!

– Claro, mas eu vim aqui pra testar minha espada. Então depois eu te levo.

– Como é? Eu vou ter que sentar aqui e esperar você brincar com sua espada? – Reclamei. – Não pode fazer isso na arena?

– Eu tenho que aguentar mais essa. Olha, se não quiser ficar aí sozinha venha comigo. Aí pode aprender a lutar da melhor maneira. – Ele puxou a espada com força e depois limpou a lamina na barra da camisa. – Praticando. Agora vamos, já perdi tempo demais.

Ele se virou e começou a caminhar. Eu fui atrás dele, com a adaga na mão.

– Ei, espera. Não seria melhor... – Tropecei em uma pedra enorme, por muito pouco não cai de joelhos. Quase o perdi de vista, mas ele gritou:

– Se você andasse mais rápido, é eu também acho que seria melhor.

– Não! – Corri o mais rápido que pude até alcançá-lo. – Eu ia dizer que seria melhor, ou mais agradável, se me dissesse o seu nome.

Ele parou bruscamente, eu bati em suas costas. O garoto se virou, e eu dei um passo para trás.

– É Nicolas e pela cor dos olhos você deve ser minha vizinha.

– Filho de Tique? – Perguntei, ele assentiu e continuou em frente. – O que exatamente você está procurando?

– Algum animal apavorante e sedento por sangue de semideus. – Ele virou para mim e tremeu os dedos, uivando.

Continuamos andando por um tempo até eu perceber, antes de Nicolas, que um cão enorme surgiu no lado direito e vinha em nossa direção. Me coloquei frente a frente ao cachorro, ele tinha uma pelagem negra e era gigante, o cão que estava rosnando, era do tamanho de um cavalo mas eu não sei se teria coragem de feri-lo. Os olhos, vermelhos como rubi, pareciam tão doces. Me aproximei.

Escutei a voz de Nicolas ao meu lado:

– Sai de perto dele garota tola. – Ele sussurrou.

Eu não dei atenção, não achava o cão assustador. Ele parecia cansado, não perigoso. Guardei a adaga e levantei a mão lentamente até alcançar o pelo do cachorro, ele ficou meio arisco, mas aceitou o carinho. De repente ele se deitou como se pedisse para que eu subisse em suas costas, coloquei uma perna no dorso do cão. Resolvi que ia chama-lo de dark, por ser escuro.

– Ficou louca? – Disse Nicolas com os olhos vidrados.

Dark se levantou.

– Vamos lá filho de tique. Quem é a garotinha agora? – Eu disse levantando uma sobrancelha.

– Pelo menos eu não cavalgo criaturas assassinas do mundo inferior. – A espada tremia em sua mão.

– Eu não queria chegar a esse ponto, mas eu vou apelar para seu ponto fraco. Aposto que você não vem!

– Nunca – Disse ele abaixando a cabeça – Nunca aposte com um filho de tique. – Ele disse seriamente, em um movimento rápido driblou a cabeça do cão e com um salto se sentou atrás de mim.

O cachorro se assustou com peso súbito e saiu em disparada. Nicolas se agarrou na minha cintura, eu teria ficado irritada se não soubesse que ele só fez isso para não cair. Era manhã, mas o bosque era tão denso que sombras se projetavam das árvores. Comecei a gargalhar.

Dark ia colidir com árvore, fechei os olhos ainda rindo, senti meu estomago se contorcer e embrulhar, quando abri os olhos novamente o cão já tinha parado, não estava mais no acampamento e sim em um campo aberto. Nicolas desceu do cachorro, e segurou a barriga como se estivesse passando mal. Olhei ao meu redor uma campina e uns 200 metros ao sul havia uma estação ferroviária. Dark se deitou, achei que era para que eu descesse, mas começou a roncar assim que saltei.

– Vamos, temos que ir andando até lá – Falei apontando para a estação.

– Andando? – Ele gemeu – Acho que não dá. Ainda mais com o seu ótimo senso de direção.

– A culpa não é minha se Dark quis nos trazer pra cá! – Acariciei a testa de Dark e prometi que voltaríamos logo.

– Você deu um apelido pra essa coisa? – Disse ele enquanto caminhávamos até a estação.

A estação era grande e lotada levando em conta que ficava no meio do nada. Parecia antiga, como se fosse um “objeto histórico”.

– E o que exatamente a gente veio fazer aqui?­ – Nicolas perguntou.

– Talvez conseguir comida? To morrendo de fome – Respondi.

– Só pode ser brincadeira, nós nem sabemos em que cidade nós estamos!

– Relaxa Dark pode nos levar de volta.

– Uma viagem nas sombras drena toda a energia de um cão do submundo!

– Me desculpa se não tive aulas o suficiente. Mas por enquanto temos que arranjar comida, algum plano?

– Claro, como se eu tivesse me preparado para isso! – Disse ele, apontando ao redor.

– Muito bem, você arranja dinheiro enquanto eu dou um jeito de mandar uma mensagem de Iris para Quíron.

– Por que eu fico com a parte mais difícil?

Sorri pra ele, e me mandei para o banheiro feminino. Consegui fazer um arco-íris improvisado, conforme aprendi no acampamento. A imagem de Quíron surgiu em minha frente. Ele parecia perdido em pensamentos na varanda da casa grande.

– É... Quíron, temos um problema. – Ele se assustou, depois me encarou preocupado.

– O que houve? Onde você... isso é um banheiro?

Contei a ele o que aconteceu, ele parecia bem chateado. Quando terminei, ele disse:

– Vocês estão bem, é o que importa.

– Quíron eu... Ah oi Hérmia. – Rachel chegou do nada. De repente uma luz verde tomou seus olhos e a boca.

Os menores sem o respeito devido

verão suas proles no perigo

A nova medeia leva consigo

a honra dos menores e o perito

e cada lado do jogo dois estão

para responder a questão

ao sul devem estar

se o novo quiserem encontrar.

– Rachel o que... – Você disse? Eu teria perguntado, mas a feição de Quíron já me mostrou do que se tratava. Uma profecia. Minha missão.

– Hérmia, conversaremos depois. Tentem descobrir onde estão, e fiquem seguros.

Isso não é bom, disse a mim mesma. Tenho que encontrar Nicolas. Corri para fora do banheiro e o encontrei sentado no chão ao lado de uma lojinha de presentes.

– Tudo bem? Já conseguiu o dinheiro?

– Sim – Disse ele se levantando – você não sabe quanto dinheiro as pessoas são capazes de perder em um inocente jogo de cartas.

– Inocente? Claro, como se ser filho da deusa da sorte não fosse trapacear. – Falei baixinho.

– Mesmo sem trapacear eu ganharia deles – Rebateu ele.

Contei a ele a minha conversa com Quíron, e a estranha profecia que Rachel havia recitado. Ele arregalou os olhos de um jeito engraçado quando eu disse que tínhamos de arrumar um lugar para passar a noite. Já era fim de tarde na estação.

O problema era para onde nós iríamos. Mesmo que Dark ainda estivesse na árvore, o que Nicolas achou pouco provável, o cão ainda não poderia fazer muita coisa útil. A estação não era uma opção. Então nos restava ir para a cidade mais próxima, ficar em um hotel e esperar alguma ajuda. Ah... isso é claro se tivermos a sorte de não encontrar nenhum monstro.

Nicolas perguntou a vendedora, loura de olhos azuis, onde ficava a cidade mais próxima, ela respondeu que ficava longe para ir andando. Mas ela poderia nos dar uma carona já que o turno dela já estava acabando. Nicolas estava cansado. Então nós aceitamos a carona. Antes tivéssemos recusado, mas quando descobrimos era tarde demais.

Nós seguimos a mulher até um carro antigo e conversível que estava parado atrás da estação. Os olhos de Nicolas cintilavam ao ver o carro, e ele não parava de perguntar coisas como: “ele foi reformado?” ou “todas as pecas são originais?”. Um blá blá blá sem fim. A mulher se sentou no banco do motorista. Nicolas, que não era um dos garotos mais gentis do mundo, me empurrou para o banco de trás para que ele pudesse se sentar na frente.

Pulei a porta para me sentar no meio dos três bancos. “Ela não perguntou dos nossos pais, e nem como dois adolescentes ficam andando por ai sem supervisão” pensei. Tirei o chicote cuidadosamente do meu bolso, e o segurei com a mão direita. Só monstros não fariam esses tipos de perguntas.

Ela arrancou com o carro para uma rodovia que eu não tinha visto antes. Nicolas perguntou se o rádio funcionava. A mulher disse que sim e pediu que ele ligasse.

­– Agora vamos tocar a mais pedida da semana. Nirvana, smell like teen spirt! Aproveitem!

Nicolas aumentou o volume no máximo. A mulher se recostou no banco.

– O carro tem piloto automático. É muito útil sabiam? Especialmente quando você tem outros assuntos para tratar. – Ela se virou para mim. – Não gosto de garotas por isso você vai ser a primeira.

Ela se jogou contra mim e me arranhou. Depois que voltei a vê-la ela estava exatamente onde eu tinha visto antes, mas agora parecia que toda força de vontade tinha se esvaído de mim. Cai no banco, imóvel com olhos abertos. A sensação era de um cansaço infinito, uma dor realmente imensa. Era como uma gripe cem vezes mais forte, na qual o mínimo movimento era um esforço descomunal.

– O que fez com ela?– Gritou Nicolas com a espada em punho.

– Poupemos as explicações, eu sou uma Queres é tudo que você precisa saber.

Nicolas avançou na mulher, foi o que me pareceu, porque eu estava ficando tonta demais para conseguir enxergar direito. O carro não tinha se desviado do caminho, continuava andando. Foram borrões em cima de borrões e gritos. Quando a gritaria deles terminou, quem queria falar era eu. Queria saber o que tinha acontecido e se Nicolas estava bem. De repente o carro parou.

Senti uma gota em minha perna, e logo depois fui levantada do banco de trás e fui colocada no banco do passageiro. Nicolas tinha matado o monstro.

– Você está bem?

Eu queria responder, mas não conseguia mexer um único músculo. Gemido era a única coisa que me restou, então soltei um gemido de dor.

– Já entendi. Olha, eu vou dirigir até um hotel. Quando chegarmos... bom, eu não sei. – disse ele enquanto dirigia. – Acho que vou manipular a névoa para que eles não façam perguntas demais.

Eu queria contar a ele sobre a profecia, queria que ele soubesse do que se tratava. Fiz o que podia, fiquei pensando sobre os versos.

Os menores sem o respeito devido

verão suas proles no perigo

A nova medeia leva consigo

a honra dos menores e o perito

de cada lado do jogo dois estão

para responder a questão

ao sul devem estar

se o novo quiserem encontrar.

[...]

Quando chegamos ao hotel já é tarde da noite. Nicolas parou em frente ao hotel, desceu e entregou as chaves para o manobrista. Me pegou no colo.

– Você não é tão leve quanto todos pensam. Vou ter de arranjar um pouco de néctar, não dá pra ficar te carregando como um peso morto por ai.


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Notas finais do capítulo

:)



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