A Dança da Tempestade escrita por Neo Luxray


Capítulo 4
Conferência na Torre dos Astros


Notas iniciais do capítulo

Retrabalhado em 06/01/2021.



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Em contraste com as paredes grossas de mármore brilhante, a sala de reuniões do pequeno conselho era essencialmente diferente. Localizada na Torre dos Astros, de onde é possível ver o céu estrelado através de um grande teto de cristal transparente, a sala de reuniões parecia muito mais um observatório do que qualquer outra coisa.Diz-se que os antigos membros do conselho olhavam aos céus para sempre levar em conta a vontade dos Deuses ao tomarem suas decisões. 

Um costume antigo, perdido há muito tempo. Lyra só conseguia pensar nesse tipo de informação inútil mesmo que em poucos minutos tivesse de finalmente discutir alguns dos assuntos mais importantes do império com pessoas muito mais experientes e qualificadas que ela. Já havia aceitado essa realidade há um tempo, no entanto, de forma que talvez fosse bom ter se lembrado dessas histórias antigas. Talvez se pedisse com jeitinho os Deuses lhe dessem uma dica ou a iluminassem para que não passasse vergonha.

O tempo definitivamente diria. Mas não adianta reclamar disso agora. Esfregou as mãos discretamente, um claro sinal de nervosismo. Pareciam frias como se tivesse-as acabado de tirar de um bloco de gelo. “Concentração!” pensou consigo mesma enquanto revia em sua mente as pautas que provavelmente seriam discutidas.

Sentada em sua cadeira que repousava levemente elevada em relação às demais, observou a mesa redonda abaixo. Era de fato muito bela, adornada com pequenos mosaicos prateados retratando inúmeras conquistas do império. Yona certa vez havia lhe contado cada uma das histórias escritas ali, passadas de geração em geração pelos herdeiros do trono. O que não era tão belo estava sentado imediatamente à sua esquerda.

Um homem corpulento, alto e musculoso com a cara mais fechada que já vira, Oreste repousava com toda elegância e delicadeza que só um comandante do exército poderia ter. Só aquilo, porém, jamais revelaria seu estado de espírito. Era um homem bastante unidimensional e denso de forma que Lyra nunca conseguia dizer o que realmente estava sentindo. Sua pele, mais escura do que a maioria dos cidadãos dali, deixava claro que não era dali. Esse era outro mistério para o qual Lyra não tinha uma resposta. Como aquele homem havia atingido seu posto era alvo das mais diversas histórias normalmente seus feitos épicos, mas nenhuma dessas histórias parecia mencionar de onde viera ou como chegara ali.

Logo à sua direita outro membro do conselho voltava ao seu lugar logo após ter posto um pouco mais de lenha na grande lareira que aquecia a sala. Este, diferente de Oreste, realmente se portava da forma mais elegante e requintada possível, talvez mais até do que a própria imperatriz. Moore já devia estar na casa dos sessenta anos mas Lyra nunca havia o visto com um fio de cabelo sequer fora do lugar. Tirando por algumas rugas de expressão e fios de cabelo branco quase indiferenciáveis de seu cabelo prateado, o homem permanecia tão jovem quanto a maioria dali. Moore sempre fora um homem bastante severo aos olhos de Lyra de tal modo que parecia mais ameaçador que o próprio Oreste.

Finalmente, o som desajeitado de passos ofegantes vindos do corredor anunciavam que a cadeira vazia à frente da comandante estaria prestes a ser preenchida. Um homenzinho pouco menor que Lyra, com óculos redondos e bochechas rosadas. Esse era de longe o membro menos assustador do conselho, e também o que Lyra gostava mais. Otto era quase como um tio para ela. Durante a regência de seu pai, aquele homem buscara junto de Yona aprimorar e revisar a legislação daeliseana em prol de torná-la mais justa e igualitária. Era um homem extremamente gentil, de boa índole e agradável de se ter por perto. Lyra nunca esquecera das inúmeras vezes em que se metia em encrenca apenas para que Otto fosse junto resolver a enrascada.

Vê-lo ali depois de tanta espera aliviara um pouco a sensação latente de desespero que sentia. Sabia que no pior dos casos Otto a viria consolar depois da reunião com um copo de chá e um cobertor. 

O último membro do conselho finalmente se sentou em sua posição, à frente da imperatriz, despejando alguns dos livros que trazia consigo sobre a mesa.

— Perdão por fazê-los esperar. Esses livros acabam pesando demais e tenho certa dificuldade em subir as escadas… — Otto disse ainda um pouco ofegante enquanto se ajeitava na sua cadeira.

— Não se preocupe, Otto. Não é como se fosse a primeira vez— Respondeu Moore, em tom seco como de costume. 

— Para um homem do seu tamanho você carrega bastante peso com esses livros por aí. Continue assim e um dia será você comandando as linhas de frente! — Oreste zombou ou fez menção de zombar. Lyra não tinha completa certeza porque tudo que aquele homem falava saia com o mesmo tom.

Lyra limpou a garganta brevemente. Sentia que aquela seria a oportunidade ideal para começar a reunião. Talvez assim conseguisse demonstrar um pouco de confiança.

— Boa noite, conselheiros. Acredito que já seja hora de discutirmos os assuntos pendentes da última reunião. Se bem me lembro, Oreste desejava discutir algo com certa urgência — A imperatriz falou, em tom mais baixo do que o que os outros membros do conselho estavam acostumados. Lyra já estava feliz de não ter gaguejado no meio dessa frase.

Todos os membros do conselho voltaram suas atenções à Lyra, o que a deixou ligeiramente desconfortável. Esperava que não tivesse feito nenhuma cara estranha naquele momento. O silêncio não demorou a ser quebrado.

— Com certeza eu tenho muito a dizer— Oreste respondeu de forma surpreendente, com o mesmo tom de sempre.

— Algo tem me incomodado muito nesses últimos quatro anos. Venho trazendo esse assunto a tona reunião após reunião e nunca parecem dar atenção. As incursões. Elas têm se aproximado cada vez mais do território do império. Antigamente demoravam para acontecer e estavam bastante distantes, mas só no último mês três cidades daeliseanas foram atacadas. Estão ficando mais fortes, e também mais audaciosos— Oreste explicou de maneira ininterrupta.

Moore virou-se para Oreste com uma expressão curiosa.

— De fato recordo-me que trouxestes esse assunto à tona inúmeras vezes, Oreste. Estaria eu correto em assumir que a solução que pretendes propor continua a mesma das tantas outras vezes? — O conselheiro questionou curioso.

— Você é um homem esperto, Moore. Sei que já ouviu falar que a defesa é o melhor ataque… Saiba que se acovardar em frente a essas tais incursões é simplesmente deixar que ocorram de novo e de novo. Vocês que passam seus dias sentados em cadeiras falando palavras bonitas ou lendo velharias do tempo da criação não sabem do que isso realmente se trata— Oreste respondeu novamente monotônico. Agora, no entanto, era possível perceber a amargura em seu rosto cheio de cicatrizes.

Enquanto Otto parecia pessoalmente muito ofendido com a afirmação de Oreste, Moore permanecia pleno, sem quebrar a pose de conselheiro elegante que sempre mantivera.

— Não criemos imbróglios, caro companheiro. Entendo que se falaras disso milhares de vezes somos nós que sugerimos ineficácias os maiores culpados de tais atrocidades. O verdadeiro empecilho permanece sendo que seria muito custoso um contra-ataque desprevenido. Especialmente considerando o quão pouco sabemos sobre essas tais incursões. O que sugere que façamos? Ou pretende lançar seus ataques contra o vento? — Moore teceu de forma magistral seu argumento. Não tinha sido a primeira vez que Lyra o vira fazer aquilo mas sempre lhe impressionava a capacidade daquele homem de falar a mais simples das coisas da forma menos concisa e mais enfeitada possível.

— Por acaso pareço um idiota para você? Talvez todos esses anos que você carrega nas costas estejam te deixando meio cego mas se continuarmos assim, só deixando estar, não dou um ano para que a próxima incursão venha destruir a própria Crisálida. E então não haverá nenhuma outra reunião para que eu possa dizer que eu avisei — Oreste respondeu visivelmente contrariado. Parecia um touro furioso olhando para Moore como se fosse ser sua próxima vítima

Lyra mal havia discutido uma pauta sequer e mesmo assim a reunião já estava se tornando um pequeno desastre. Yona sabia muito bem como acalmar os ânimos nesses momentos, mas essa era uma habilidade que Lyra não acreditava possuir. Sabia que precisava se impor naquele exato momento ou o resto da discussão poderia muito bem acabar num duelo até a morte.

— Conselheiros. Espero que não tenham se esquecido pelo que estamos reunidos aqui. Yona sempre dizia: nosso papel não é o de encontrar problemas, e sim o de pensar soluções— Lyra disse, cortando a tensão que começava a se estabelecer. Ela mesma havia se surpreendido por ter dito aquilo em alto e bom som. Aquela pequena vitória havia lhe dado a confiança para prosseguir.

— Em relação às incursões, pelo que bem me lembro eram eventos distintos em pequenos territórios ao longe do império. Todos aparentemente desconexos com a única ligação entre eles sendo a velocidade avassaladora dos ataques e a destruição completa das cidades. Há algo mais sobre esses acontecimentos, Oreste? — Complementou tentando ao máximo se lembrar dos relatos do comandante. Sua pergunta ao mesmo tempo servia para mostrar que estava a par do assunto quanto para comprar tempo com a discussão para pensar em uma solução adequada.

— Impressionante, parece que finalmente alguém está disposto a discutir. Sim, de fato tudo o que disse é verdade. Porém, o problema real que nos impede de tomar uma ação é que mesmo com tantas vítimas e refugiados dessas incursões, até o momento fomos incapazes de identificar a autoria desses ataques. Depois de destruírem tudo e matarem o máximo possível, seja lá quem forem, somem sem deixar vestígios. Eles não saqueiam, não ocupam. Só lhes interessa a destruição. — Desenvolveu Oreste. Não era comum que conseguisse falar tanto sobre esse assunto durante a antiga regência. Aproveitaria cada minuto que tivesse a oportunidade.

—Com licença. Não quero interromper, mas se bem me lembro, tinha mais uma coisa que você sempre falava sobre o relato das vítimas — Otto tentou ser o mais cortês possível ao cortar o homem gigante e ameaçador em seu discurso apocalíptico.

Oreste voltou sua atenção à pequena figura bochechuda de óculos fundos. Isso pareceu intimidar um pouco Otto que se encolheu discretamente na cadeira. Não que ele precisasse, pensou Lyra. Parecia finalmente conseguir ler os detalhes sutis no rosto maltratado de Oreste. O comandante o olhava com surpresa e não com ódio.

— Sim… Costumo não mencionar essa parte pois parece um tanto absurda até pra mim… Há uma semelhança entre os relatos dos que sobreviveram. Todos falam de uma figura em específico: Um espectro alado vestindo uma armadura negra. Pedi mais detalhes quando mencionaram essa parte, mas curiosamente todos com quem falei não parecem se lembrar de nada além disso — Concluiu o general. A recém adquirida habilidade de Lyra para ler suas expressões revelava que ele estava tão confuso quanto ela.

Um silêncio preencheu a sala por um momento. Nenhum dos membros ali presentes realmente tinha muita noção de com o que estavam lidando, no entanto era aparente que não deviam tardar a tomar alguma medida.. Lyra e Otto se entreolharam como já haviam feito muitas vezes no passado. Era o sinal de que a enrascada era das grandes.

— Eu tenho uma proposta— A imperatriz disse, chamando para si a atenção de todos os outros membros.

— Obviamente não podemos deixar esse assunto em espera por nem mais um momento. Mesmo assim, não temos informações ou recursos suficientes para lançar um ataque de imediato. Sugiro uma pequena expedição às localidades afetadas. Precisamos investigar o que foi deixado pra trás e tentar descobrir um padrão por trás dessas incursões. Se ambos relatos parecem falar de uma figura semelhante, acho seguro assumirmos que quem quer que esteja por trás dos ataques descritos nos relatos é também a mente por trás de todos os outros— Lyra sugeriu com toda sua recém adquirida confiança. Não sabia de onde tinha surgido e sinceramente não se importava. Estava feliz o suficiente de não passar vergonha para não questionar as bênçãos dos Deuses.

Os membros do conselho todos se entreolharam em silêncio como já haviam feito milhares de vezes. Lyra sabia que aquele seria o veredito final.

— Naturalmente, tal resposta seria adequada. Não deslocaremos pessoal em demasia ao mesmo tempo que adquirimos esclarecimentos pertinentes quanto às nefastas incursões. Não tenho nenhuma objeção quanto a esta proposta— Moore respondeu da mesma forma de sempre, desnecessariamente rebuscado. Algo em sua expressão, porém, parecia inquietante. A alguns poucos instantes não parecia estar disposto a discutir o assunto o mínimo que fosse com Oreste e mesmo assim parecia extremamente satisfeito com a conclusão. Lyra não conseguia uma explicação, talvez fosse a euforia que a preenchia no momento. Decidiu não pensar demais nisso.

Otto simplesmente assentiu com a cabeça fazendo um sinal positivo com as mãos.

— Movendo para o próximo assunto, precisamos discutir sobre as reformas propostas na gestão de Yona, senhorita. Quero muito poder continuar as reformas que tínhamos planejado, se pudermos discutir algumas delas na reunião de hoje seria fantástico! — Expressou o conselheiro menor. Parecia agitado para falar de seu trabalho como sempre fora, mas era possível notar o ânimo em sua voz. Lyra sabia que Otto estava tão aliviado quanto ela por sua atuação na reunião.

E assim prosseguiram em uma extensa discussão acerca das reformas propostas quanto à legislação daeliseana e a situação dos imigrantes nos subúrbios. Otto animado, Lyra atenciosa, Moore cauteloso e Oreste infinitamente entediado.


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