O Sol Negro E A Lua Branca escrita por Gabby


Capítulo 32
O Amor Machuca


Notas iniciais do capítulo

Agradecimentos à Beatriz e Narumy.
Esse capítulo foi muito difícil de escrever, afinal o tema abordado é muito delicado.



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Neliel se encontrava em uma banheira. A água estava fria, mas ela acabou não se importando. Precisava de algo que a despertasse daquela vida em torpor. Deitou e afundou a cabeça. Seus cabelos mexiam-se como tentáculos. Por um momento, passou por sua cabeça que talvez ela fosse uma sereia. Abriu os olhos e logo a água limpou aquele pensamento. Sentia que podia ficar lá para sempre — todos os ruídos externos simplesmente não existiam; a superfície era apenas uma miragem e logo seus problemas desapareceriam por completo.

Uma gota de sangue rompeu a tranquilidade transparente da água e tornou-a turva, suja de vermelho. Logo, mais e mais gotas. Neliel, com o susto, abriu a boca. Sentiu que foi privada de toda a palavra; sentiu que a água havia roubado o seu som. E pensou que a água não era tão boa assim, afinal às vezes era necessário que as coisas fizessem barulho.

Viu Grimmjow, sentado em uma cadeira. Coçava os pulsos e encarava a marca dos cortes com um olhar triste, desolado. Chifres de cervo começaram a crescer em sua cabeça, elaborados desenhos que se ramificavam como uma árvore. Um flash passou na cabeça de Neliel — uma imagem, tão rápida que logo que apareceu sumiu. Um corpo atravessado em dezenas de galhos, chifres, como os de Grimmjow, com os do cervo que via em suas alucinações.

Olhos negros. Um bufo. O cervo estava olhando para alguns monges. Todos estavam sentados á uma mesa comprida. Davi estava no meio de todos. Ele sorriu. A Última Ceia de Jesus Cristo.

...

Neliel acordou, assustada. Seu coração palpitava. Ela sabia o que aquele sonho significava, mas torcia para estar enganada. Levantou rapidamente da cama, calçando seus sapatos e colocando um roupão por cima da camisola. Precisava ver Davi.

Desceu as escadas querendo fazer silêncio, mas com pressa demais para realmente se esforçar para fazê-lo. Saiu correndo do castelo, a camisola branca farfalhando à medida que ela enfrentava o vento fraco que balançava as folhas. Entrou no estábulo e analisou os cavalos. E lá estava o cavalo da Princesa Kuchiki, um garanhão preto com apenas uma mancha branca no focinho.

— Sebastian, não é? — Nell perguntou com suavidade, tocando a cabeça do animal.

Ela cavalgou pelos campos do castelo, pela cidade que ainda dormia. Olhou para o céu — o Sol estava nascendo, os primeiros raios já iluminavam a cidade. Ouviu um galo cantar. Podia escutar os suspiros do cavalo e ver a crina negra farfalhando ao vento, como uma bandeira — assim como seus cabelos verde-água.

Chegou ao mosteiro o mais rápido possível. Ficou perplexa ao ver as portas já abertas, encostadas. Prendeu o cavalo e correu pelas vielas de pedra do estabelecimento. Queria gritar o nome de Davi bem alto, mas não o fez por medo de incomodar os outros monges. Seu coração batia tão forte que ela nem conseguia ouvir o barulho das vozes em sua cabeça — seu mundo girava, o chão cedia. Ela encostou-se a uma parede, a frieza da pedra passando por suas roupas e fazendo os pelos de sua nuca arrepiarem. Neliel não conseguia procurar por ele — tinha medo do modo como o encontraria. Respirou fundo e tentou se acalmar.

— Nada ocorreu com Davi, Nell — ela afirmou, sem firmeza. Suas mãos tremiam. — Ele está bem. E isto tudo é coisa da sua cabeça.

Nell fechou os olhos, com muita força. Poderia ser apenas um sonho ou um delírio. Ela precisava acordar.

A moça sentiu uma respiração quente sobre ela. Abriu os olhos. Era o cervo negro, que a observava. Nell pôde ver todo o seu medo refletido naqueles olhos, que se distanciavam à medida que o animal recuava. Ele se virou e apontou o focinho para frente, na direção do pátio.

Lágrimas quentes irromperam do rosto de Neliel enquanto ela balançava a cabeça em negativa, os cabelos coloridos embaraçados.

— Não faça isso comigo, por favor — soluçou, engasgada.

O cervo virou a cabeça e olhou para ela. Em seus orbes, parecia haver um sentimento humano: pena — mas talvez fosse apenas a autopiedade de Nell refletida em seus olhos.

Ela recuou, como se tivesse levado um soco. Segurou a barriga com força e chorou. Olhou para todos os lados, tentando encontrar algum monge acordado. Nada. Não havia ninguém. Eram apenas ela e seu delírio.

Neliel mordeu os lábios e caminhou — era como se pisasse em agulhas. Lentamente, passou pelo cervo. Sua barriga e peito se contraíam, espasmos percorriam seu corpo. Ela precisava encarar seu medo.

Viu-o assim que irrompeu no pátio. Um grito ficou preso em sua garganta.

Davi estava pregado em uma cruz. O corpo alvo e quase sem pelos estava nu. Havia um prego em casa pulso dos braços estendidos e esticados e outro nos dois pés, um em cima do outro. Sangue vertia dos buracos. A cabeça pendia para um dos lados, adornada por uma coroa de espinhos. Sangue manchava seu belo rosto de porcelana. Não precisava oca-lo para saber que ele estava morto.

Neliel gritou tão alto quanto pode, rasgando sua garganta, e caiu de joelhos. Davi fora morto na Sexta-Feira Santa, no mesmo dia que Cristo. Mas Neliel tinha certeza que o monge não iria ressuscitar no terceiro dia.

...

Rukia e Ichigo estavam sentados frente a uma escrivaninha. A princesa usava um vestido azul bebê, um pouco espalhafatoso. Grandes laços o decoravam; várias dobras de tecido que desciam como em catarata da cadeira onde Rukia estava sentada. Já Ichigo vestia-se, como sempre, com simplicidade — uma calça de cintura alta e uma camisa de botões, com as mangas compridas dobradas. Os dois estavam conversando, imaginando o que ocorreria a seguir. Byakuya, Kisuke e Yoruichi os avisaram que seriam treinados para a Batalha Final, e Ichigo se perguntava se havia alguma fórmula mágica para matar o Diabo que podia ser ensinada.

— Soube do monge? — perguntou Ichigo. — Crucificado. Quem faz isso com as pessoas?

Rukia suspirou, tensa.

— Neliel o conhecia. Eu o conhecia — comentou. — Ela está arrasada. Você sabe, foi Nell que encontrou o corpo. Ninguém merece ver o amigo assim.

Ichigo apertou os lábios e concordou com um aceno de cabeça.

— E não é a primeira morte estranha. Quer dizer, as cinco pessoas queimadas... O pai da moça que morreu naquela noite era cliente da ferraria.

Rukia balançou uma das pernas, nervosa, enquanto ajeitava as saias.

— As polícia não moveu um dedo para capturar esse bandido — Ichigo cuspiu, com voz ácida. — Mas agora que é um monge aposto que vão todos procurar o culpado¹.

A porta da biblioteca se abriu de repente. Ichigo fez uma careta quando viu Byakuya e Yoruichi cruzando a sala. Imaginou se o rei havia escutado algo que ele dissera, afinal Byakuya tinha certa autoridade na polícia. Mas, se ouvira, o que ele iria fazer? O demitir? Não, Byakuya Kuchiki precisava do Kurosaki.

— Silêncio, por favor — pediu Byakuya, andando com passos largos e elegantes até a frente do casal. Usava calças brancas justas, e um casaco azul marinho com um elaborado design. — Nestes três meses, as técnicas de luta básica de vocês foram aprimoradas.

— Mas, agora, faz-se necessário o conhecimento do Mundo Mágico, inclusive tudo o que sabemos sobre o inimigo que irão enfrentar — completou Yoruichi, erguendo a cabeça. Os cabelos estavam presos em um coque, mas os grandes brincos de esmeralda balançaram.

Havia uma pilha de livros em cima de uma das escrivaninhas. Yoruichi tocou o livro do topo, tateando suas enervações.

— Nós não temos todas as respostas. Não podemos dizer, com certeza, quem criou e como foi criado o mundo ou se existem muito mais mundos que não conseguimos ver — ela afirmou. — Mas, nós, feiticeiros, temos uma teoria.

Yoruichi ergueu uma das mãos morenas, esfregando os dedos. De repente, algo como pó brilhante irrompeu do ar e começou a produzir espirais, desenhos, faíscas de algo como fogo vermelho.

Tudo é energia. O ar, as estrelas, nós e os deuses.

///

Neliel afundou o rosto no travesseiro. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar, seu rosto amassado. Pensou que seu coração era de papel e, molhado, se esfarelava. Podia-se imaginar desaparecendo, virando ondas de lágrimas que molhariam o colchão e inundariam o chão do quarto.

Ela ouviu a porta se abrindo, mas não se incomodou em levantar a cabeça. Provavelmente era Orihime ou Rukia, que vinham de tempo em tempo verificar seu estado.

As vozes não paravam de sussurrar, de rir e de gritar, quando Nell sentiu sua cama ceder para mais alguém.

— Pode parecer, mas não é o fim do mundo — disse Grimmjow, com voz rouca. Seu corpo roçava na canela de Nell. — Lá fora, a grama está crescendo, o sol continua brilhando e o carrossel não para de girar. Ele não para de girar por ninguém.

Neliel soluçou e virou minimamente o rosto para um dos lados. Ter Grimmjow ali não era como ter Orihime ou Rukia — porque o príncipe perdera alguém que amava. E então, quando ele falava qualquer coisa sobre aquilo, era real. Grimmjow não imaginava como era estar destruído por uma perda recente — Grimmjow sabia.

— O que você quer dizer?

Ele acariciou despretensiosamente a panturrilha de Nell, os olhos azuis concentrados no gesto.

— Não vou te acalentar. Eu sei que não há nada que eu possa dizer que te faça sentir melhor. Nada de mentiras bonitinhas. Vou te dizer a verdade, a verdade crua e má — afirmou ele, com voz firme. E em todo aquele tempo, Neliel nunca o viu tão convicto de algo. — O mundo é um lugar egoísta e impiedoso. É um maldito show de putas. As pessoas são más porque o mundo as faz assim. Não há chances de redenção, muito menos segundas chances.

Neliel soluçou; novas lágrimas irromperam de seus olhos.

— Eu cortei os pulsos porque estava cansado de apodrecer por dentro. Preferia apodrecer morto então, que pelo menos não sentiria as moscas em minhas tripas — contou Grimmjow. — Mas a vida é podre. Quanto mais idade você tem, mais podre é. E o que estou tentando dizer é... Não se sinta culpada por apodrecer.

Neliel virou-se completamente, ficando assim de barriga para cima. Parou de chorar por um minuto. Deu uma longa olhada em Grimmjow — nos seus olhos, no seu rosto, no seu corpo, nas cicatrizes dos pulsos feitas com uma faca de prata.

Ela se sentou, com as costas encostadas na cabeceira da cama. Precisava se abrir com alguém.

— Um segredo em troca de outro — disse, baixinho.

Os cabelos de Grimmjow estavam arrepiados e bagunçados, mas ele havia melhorado desde sua tentativa de suicídio. Lenta, gradual e dolorosamente, Grimmjow havia reaprendido a viver.

— Como?

— Eu te conto um segredo meu, um que nunca contei para ninguém — explicou ela — e você também o faz.

Grimmjow respirou fundo, trêmulo, mas assentiu.

— Conte o seu primeiro.

Neliel mordeu o lábio inferior e depois umedeceu os lábios. Ela tinha que contar seu segredo agora, se não sentia que nunca mais conseguiria fazê-lo.

— Eu ouço... Vozes — ela disse, cada palavra soando como vidro quebrado em sua garganta. E colocar aquilo em palavras foi uma das coisas mais difíceis que Neliel já fez, pois, enquanto estivessem no silêncio de sua mente, nada daquilo era real. — E há também um cervo.

Grimmjow franziu a testa, e Neliel percebeu que aquilo não fazia nenhum sentido.

— Eu tenho alucinações. Com pessoas mortas, e um cervo negro que me guia — ela explicou, engolindo em seco. — E, antes de Davi morrer, eu sonhei com ele. Eu sabia que ele ia morrer, Grimmjow, eu sabia.

Neliel começou a chorar descontroladamente, soluçando. Depois daquilo, se sentia em carne viva, sem segredos para preencher seu grande vazio no estômago.

Grimmjow a abraçou forte. Neliel fechou os olhos vermelhos e enterrou a cabeça na curva de seu pescoço. Ele ainda estava muito magro, e ela pôde sentir seus ossos por debaixo da pele. Mas o calor que o príncipe emanava aqueceu sua alma por alguns instantes.

— Meu pai me tocava — sussurrou ele, no ouvido dela.

Neliel demorou um pouco para entender o que aquela frase significava. Mas, quando entendeu, ficou horrorizada.

— Meu Deus.

Grimmjow se afastou, atordoado. Seus olhos estavam sem foco.

— Ele me amava. Mais do que tudo e mais do que todos. Ele amava apenas a mim.

O príncipe lembrava da primeira vez que Barragan o tocara. Sua mãe havia morrido há alguns meses, e Grimmjow tinha apenas oito anos. O homem deslizara a mão pela coxa do filho e mandara-lhe que se despisse. Beijara-lhe o corpo frágil e tocara-lhe em certos lugares. Grimmjow não fazia ideia do que aquilo significava na época, mas lembrava-se de se sentir mais próximo do que nunca do pai.

— Grimmjow... — Nell replicou, tentando tocar-lhe o braço.

Quando o penetrava e Grimmjow gritava de dor, Barragan sempre dizia a mesma coisa: o amor machuca. E, de fato, machucava. Mas o príncipe aprendera logo a segurar os gritos, a apenas apertar o lençol. E, depois, aquilo nem doía mais. Era só um símbolo do quanto seu pai o amava.

Grimmjow se afastou do braço de Neliel, com os olhos úmidos.

— Ele me amava! — gritou.

— Ele te usou — Neliel replicou, quase que em súplica.

O príncipe, furioso, acertou-lhe um tapa no rosto. A cabeça da garota, com o impacto, bateu na parede e então tudo girou. Neliel segurou as lágrimas, a visão borrada. Ela não teve nem a chance de berrar por ajuda, pois Grimmjow tampou a sua boca com uma das mãos usando muita força.

Com a outra mão, ele desabotoou a calça e abriu espaço entre as pernas de Neliel a força. E então o cheiro do suor se misturou com o das lágrimas.


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Notas finais do capítulo

1- Todos os monges eram filhos de nobres.