O Sol Negro E A Lua Branca escrita por Gabby


Capítulo 23
As vozes nunca cessam


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Yellow Flicker Beat, da Lorde. Aproveite e ouça enquanto lê, aqui: http://www.youtube.com/watch?v=e1S9HUNoI4k
Havia ERAS que eu não colocava música no capítulo. Magina quantas vezes eu ouvi essa música? MIL-HA-RES! Na verdade, até a odeio agora. huahuahua Mas é sério, ela combina muitíssimo com essa fic (principalmente com a Rukia e Nell). Acho que irei fazer uma playist da fanfic em vez do capítulo especial da Yoruichi (que eu sinceramente perdi totalmente a vontade de fazer) como comemoração a 100 comentários. Deixem sugestões de músicas que combinam com a fic, porque eu realmente não sou uma boa conhecedora de música.
Agradecimentos á: Néphélibate, Kevyn, Byakuya e Firefly



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/360133/chapter/23

Sou uma princesa feita do mármore

Mais suave do que uma tempestade

E as cicatrizes que marcam meu corpo

São de prata e ouro

Byakuya enterrou o rosto nas mãos. Já fazia alguns meses que eles haviam retornado para casa, e Rangiku não voltara. Ele perdera uma de suas caçadoras mais valiosas. Era vergonhoso. Byakuya era vergonhoso. Ele não culpou Rangiku. Byakuya teria feito o mesmo.

E, como se isso não bastasse, vários assassinatos ocorriam no seu reino, em baixo de seu nariz. Ele sentia o cheiro podre dos demônios nos corpos mutilados, e por isso sabia que o fim da profecia já estava próximo e que não tardaria para que Ichigo e Rukia tomassem sua decisão. No entanto, ele resolveu fechar os olhos: sua irmã não enfrentaria o Diabo tão cedo —de preferência, ela nunca enfrentaria. Byakuya dobrou a segurança, e todos os seus caçadores já estavam bem armados para a guerra.

///

Meu sangue é uma correnteza

De rubis, pedras preciosas

Mantém minhas veias quentes, o fogo acha um lar em mim

A Rainha Unohana estava dura como pedra, sentada de forma perfeita em seu trono. A cabeça estava erguida, as mãos cruzadas no colo, a postura impecável. Os olhos eram frios, e examinavam Riruka com superioridade. Riruka quase desviou dos guardas que a acompanhavam e saiu correndo —muito embora, não existisse lugar para que ela pudesse ir sem ter a Rainha a observando.

—Rainha Unohana. —ela ajoelhou-se. Seus joelhos estavam trêmulos, e por pouco ela não caiu.

—Riruka. —Unohana sorriu, e Riruka pode ver as presas branquíssimas, a crueldade por trás da magia. —Já ouvi alguns boatos, mas conte-me exatamente o que aconteceu. Odeio fofocas.

Riruka se levantou vagarosamente, com medo de cair pateticamente. Ela deveria mostrar força em frente à Rainha, se não a mulher a devoraria viva.

—Minha rainha, como pediu, eu consegui alcançar as fronteiras do mundo humano. Observei os habitantes do castelo deles, percebi que a mais querida e mais frágil era aquela mulher, a de cabelos azuis.

—Neliel Tu Odershvank. —a Rainha lembrou, com um daqueles sorrisos no rosto.

A voz de Riruka soou trêmula:

—Isso mesmo, minha Rainha. Eu a escolhi como vítima. Fui até o seu quarto e pretendia a levar comigo para Faerie. —Riruka tomou fôlego. —No entanto, a mulher tinha suas próprias defesas. Mesmo que inconscientes, muito fortes. Havia uma música e um cervo. Eles me forçaram a retirar-me.

Riruka mostrou os braços, os cortes e hematomas causados pelos chifres do cervo. O roxo e o vermelho se destacavam nos braços alvos da garota.

— Havia outros ferimentos, alguns que me custaram dois dias no curandeiro.

Unohana sorriu.

—Eu não ligo para seus ferimentos, Riruka. Conte-me o resto. Se a menina for mesmo o que eu estou pensando...

—Sim, ela é. —Riruka cortou a rainha. Já estava impaciente. —Minha interferência deve ter despertado os poderes dela.

—E as mortes? —ela parara de sorrir, incomodada com Riruka ter a interrompido.

—Puramente demoníacas, minha senhora. Os demônios devem estar brincando com ela.

Unohana levou a mão ao queixo, de forma pensativa.

—Obrigada pelos serviços, Riruka. Está dispensada.

Os guardas já a acompanhavam, conduzindo-a a saída, quando Riruka perguntou:

—Mas, Rainha, o que faremos em relação a ela? Neliel é uma de nós.

Unohana fechou a cara, claramente incomodada.

—Neliel pode ser uma fada, mas não pertence a nossa corte. Ela é problema dos Unseelie.

///

Eu ando pela cidade, silenciosa como uma fogueira

E meu colar é uma corda

Eu o amarro e desamarro

Neliel piscava devido à luz da manhã. Estava no seu quarto, deitada em sua cama. Levantou-se. Sentiu a gravidade a puxando para baixo, o peso dos cabelos azulados, viu as mangas de seu vestido de ceda branca tenderem perigosamente para o chão. Caiu. Ela olhou para o teto, onde sua cama jazia grudada. Dormira de cabeça para baixo, quase como um morcego.

Às vezes, coisas surreais aconteciam em seus sonhos. Muitas vezes tudo ocorria ao contrário, como em um espelho. Às vezes, a visão de Neliel era preta e branca, outras vezes negativa. Só havia dois elementos que sempre se repetiam: o cervo e o morto.

O cervo fungou, chamando a atenção de Neliel. Ela abriu a janela, e por um momento o seu vestido se juntou com a cortina. Lá embaixo estava o cervo, a olhando com seus olhos pretos reluzentes. Neliel subiu na janela, com seus pés descalços. Quase se desequilibrou, mas enfim ficou em pé. Abriu os braços, o vento balançando o vestido e as cortinas. Ela respirou fundo. Sorriu.

E pulou.

Sentia-se uma andorinha, o vestido balançando como uma vela. As paredes passavam rápidas e cinzas, insignificantes. Ela só queria saber do vento. Da liberdade. Da paz. Dos olhos vazios do cervo.

Não houve colisão com o solo, como nunca tinha.

Ela acordou de supetão na casa de outra pessoa. Era uma casa escura, e o chão era frio. Levantou-se, quase assustada.

Viu um vulto branco, que ascendia uma singela vela à mesa. Uma anciã, tomando um gole de vinho. Do outro lado da mesa, havia mais uma taça de vinho servida. A velhinha olhava sem parar para aquele lado, como se estivesse tomando vinho com alguém.

—Pode vir.

Uma figura de negro surgiu, tremeluzindo. Era pálida, olhos negros e vazios. Dedos longos com unhas bem aparadas seguraram a taça. A figura tirou o chapéu. Era um homem, com cabelos pretos como penas. Parecia um corvo.

—Está pronta? —ele perguntou.

—Estou. —a velhinha respondeu.

O homem ergueu a taça, seguido pela anciã de cabelos brancos. Era estranho comparar o rosto enrugado da velhinha com o rosto do corvo, um rosto atemporal, sem idade. Eles brindaram, tocando as taças de vidro singelamente.

—Á morte.

—Á uma nova era.

Os dois sorriram, e se transformaram em um corvo e em suas penas, que voavam pelo local sem vento.

E nosso povo fala comigo

Mas nada nunca é certo, então

As pessoas falam comigo

E todas as vozes simplesmente desaparecem, então

Neliel foi derrubada e arrastada pelas pernas. Ela tentou lutar, chutando o nada, que apenas gargalhava e falava em uma língua morta. Tentou se segurar no chão, mas este era liso e corria muito rápido. Ela mal pôde reconhecer pelas ruas que passava, perdendo suas unhas e arranhando seu corpo.

Finalmente a criatura parou de arrastá-la. Prendeu-a em um tronco, as mãos juntas e pregadas, a cintura presa com correntes enferrujadas. Neliel berrou, e lágrimas quentes caíram de seus olhos.

Seus berros foram acompanhados por outros. Quatro pessoas, todas amarradas como ela, agonizando de dor. Uma versão maligna da punição contra bruxaria. Todos tinham coisas entalhadas em suas barrigas:

AVARENTO

ORGULHOSA

GANANCIOSO

MENTIROSO

BRUXA

A palavra entalhou-se sozinha na barriga de Neliel, fazendo-a urrar de dor. Os corpos de todos se incineraram, fazendo-os urrar ainda mais. Antes de Neliel ter seu corpo lambido totalmente pelas sombras, pôde ouvir a gargalhada do Diabo, ecoando pelos seus ouvidos.

—É isso que você é, Neliel. Não fuja das chamas. Abrace-as.

Os corpos se libertaram dos troncos, queimados e desfigurados. Mas andando. E com um sorriso maligno no rosto.

—Vamos, Neliel. —eles entoavam. —Venha conosco. Você é uma de nós. Não seja hipócrita.

///

Neliel finalmente acordou. Estava suada, a camisola grudada na pele. Colocou a mão nos cabelos e respirou fundo. Levantou-se e trocou de roupa.

Enquanto caminhava para o quarto de Rukia, as vozes já começavam a falar-lhe ao ouvido. Eram desconhecidas. Sussurravam sobre morte, sobre dor e sobre tudo o que haviam passado de doloroso em vida. Algumas não paravam de berrar por ajuda. A maioria nem fazia sentido.

Eram vozes de mortos, de espíritos insanos e esquecidos, que procuravam algum vivo que os ouvisse. Neliel ouvia. Mas não queria.

Os mortos começaram a sussurrar em seu ouvido pouco depois de ela ter desistido de dormir, por causa dos realísticos pesadelos. Agora dormia e fugia para dentro de seus sonhos mais sombrios, porque não aguentava mais quando estava acordada.

Era o verdadeiro inferno.

E era o seu inferno.

Não iria compartilhá-lo com ninguém.

Facilis densensus averno, sussurrara uma das vozes. As outras irromperam em histórias.

Fácil é a decaída para o Inferno.

Será possível Neliel ir para o Inferno por algo que nem quis fazer? Ser uma bruxa por apenas ser uma bruxa? Ser má sem querer?

Chegou ao quarto de Rukia, finalmente. Até que enfim uma voz viva no meio das dos mortos.

Estou cheia disso, este é o começo

De como tudo acaba

Eles costumavam gritar o meu nome

Agora, eles o sussurram

Estou acelerando, e esta é

A dançante luz vermelha, laranja e amarela

Iluminando meu coração

///

Rukia olhava a janela, de forma vazia. Captava alguns vislumbres de Ichigo com o canto do olho, sempre que possível. Ele lia em voz alta um livro qualquer, de forma exageradamente pausada, com dificuldade. Errava algumas sílabas, mas vendo o sentido da palavra acabava corrigindo aos tropeços.

Estava um dia feio e cinzento, e ameaçava chover. A biblioteca do castelo tinha vista para o pátio, onde Tatsuki corria, atarefada. O chão era cinza, mas não do tom leitoso e triste do céu, onde as nuvens se acumulavam e escureciam mais e mais. Era cinza da cor do nada, da cor de pedra e da cor do vazio.

As palavras atropeladas de Ichigo soavam como ruído de fundo para os trovões, que assolavam o reino Kuchiki. Era como se alguém batesse em enormes tambores lá no céu, e Rukia ficou pensando em uma cerimônia no Paraíso, com os anjos tocando os seus respectivos instrumentos. Ela tamborilou com os dedos, seguindo o ritmo da tempestade. Logo tudo estava escuro, com as nuvens negras e rechonchudas tampando o sol. Nem parecia mais dia.

A chuva veio como rasgos no papel, deixando tudo sem cor. Tatsuki correu da chuva, de um modo engraçado, protegendo a cabeça. Ela fugia da chuva. Não queria se molhar. Rukia já não mais ligava. Já estava molhada desde muito tempo. O peso das roupas encharcadas de lágrimas salgadas já a puxavam para baixo há anos —Arcádia só havia exposto isso.

—Es-es-je, não não, espe... —Ichigo gemeu, sofrendo com a palavra nova.

Rukia foi até ele, observando a palavra que o ruivo tanto tentava decifrar.

—Especiarias.

Ela foi-se logo, porque não suportaria ver o sorriso dele, ou ouvir um “obrigado”, sem chorar.

Correu, porque sabia que o Kurosaki a seguiria. Afinal, era o trabalho dele. E apenas isso.

De fato, ouviu os passos de Ichigo, a chamando. Correu mais ainda, fazendo o possível para seus saltos não fazerem muito barulho. Utilizou seu conhecimento sobre o castelo como vantagem. Dobrou alguns corredores, virou em uma ou duas passagens inesperadas, e já se via livre da perseguição de seu guarda.

Por um pequeno instante, agradeceu por Rangiku ter desaparecido, e Neliel ter que ajudar Orihime a arrumar o castelo. Depois, arrependeu-se e se sentiu muito mal. Mal mesmo. Deu até um soco em sua barriga, e quase vomitou por nojo de si.

Todos os dias dos últimos meses eram assim. Um misto de culpa, dor, tristeza e medo. Tudo condensado em um suco perverso e forçado pela garganta da garota. Era inexistente um momento que se sentia bem.

Resolveu então marchar para seu destino. Saiu do castelo e passou pelo pátio, sentindo a fria chuva molhar seus cabelos e gruda-los no rosto. Apressou os passos para ninguém vê-la.

Finalmente se viu nos estábulos. Marchou, observando todos os lindos e fortes cavalos de sua família, de variadas cores. Invejou a força deles, o tamanho e a velocidade. Queria ser forte o suficiente para ter coragem de sair daquele lugar, e veloz para fugir.

Finalmente achou o seu cavalo. Era negro, com apenas uma mancha branca em seu focinho. Bufava, com a cabeça para fora. Ela acariciou sua cabeça, encarando o seu reflexo nos olhos negros do cavalo.

O que havia se tornado?

Rukia não passava de uma alma triste e cansada. Cheia de tormento, louca por autodestruição.

—Vamos, Sebastian. —ela abriu o estábulo para o cavalo passar.

O conduziu para fora, colocou a cela e montou. Ela montava como um homem, com uma perna de cada lado do cavalo. Não montava como uma princesa. Rangiku a ensinara a montar assim. Rukia não conseguia do outro jeito; era mais fácil e útil assim. Byakuya concordava com isso.

Cortamos pela raíz, as cores desaparecem

Eu nunca observo as estrelas

Há tanto acontecendo aqui embaixo

Então eu tento acompanhar

A dançante luz vermelha, laranja e amarela

Iluminando meu coração

Rukia chegou ao campo, onde treinava com a faca sempre que podia. Os alvos ainda estavam lá, algumas facas enfiadas de forma avulsa. A princesa cavalgou ainda mais rápido.

Adorava cavalgar. Sentia os músculos do cavalo, o pêlo grosso, o sangue quente pulsando. Ouvia os batimentos do coração de Sebastian, assim como sua respiração —assim como ouvia os seus batimentos e a sua respiração. Sebastian estava vivo, e sua vida era pulsante. Então Rukia também estava.

Adorava o seu cavalo. Sebastian sempre a fazia sentir melhor. Tinha uma personalidade até mais forte do que a dela —e Rukia adorava isso.

O barulho das patas do cavalo, o balanço do galope —nada disso importava. Rukia estava absorta na vida do seu cavalo, como ele perseverava —cheio de força e teimosia, pulsando e queimando como fogos de artifício.

Estava tão concentrada em Sebastian que quase não percebeu o habitante de Arcádia por entre as árvores. Quase não ouviu sua risada. E quase não ouviu sua maldita hipnótica melodia.

Mas ela viu a fada. E a ouviu também.

A presença do habitante, que rapidamente desapareceu por entre as árvores, desencadeou vários flashes. A podridão que acontecia no castelo de Faerie, as drogas, os sentimentos ruins, que por vez desencadearam todas às vezes de que ela já sentiu mal —com medo, raiva, tristeza. Todos os seus maus sentimentos, sejam quais forem.

Rukia desabou do cavalo e, ajoelhada, liberou todos os seus maus sentimentos. Literalmente. Toda a impureza foi-se por meio das lágrimas e por meio do vômito, ácido em sua garganta. Ainda se sentia pesada, e sabia que os sentimentos ainda estavam grudados em algum lugar em sua garganta. Mas fazia tempo que não se sentia tão leve.

—Princesa Rukia. —uma voz chamou atrás dela. Rukia reconheceu de imediato.

—Ulquiorra, está fazendo o quê aqui? —ela limpou o vômito de sua boca, e virou bruscamente para o homem, o encarando com raiva.

—Eu que vos digo isso, minha Princesa. —respondeu Ulquiorra, de forma cordial. Nos seus olhos brilhavam ironia e crueldade. —Mas trago-lhe um aviso.

O cavalo Sebastian relinchou, incomodado com Ulquiorra, como se pudesse ver a alma por dentro de seus olhos verdes e frios. Ou melhor, a ausência de alma. O grande vazio.

—Fale logo. —ordenou Rukia. Sebastian a olhou, como que pedindo para ela voltar atrás. Rukia balançou a cabeça, negando. Seus olhos vermelhos estavam feridos.

—Princesa Rukia, partimos depois de amanhã para seu casamento.

E foi então que Rukia percebeu: ela pensava que tudo desde Arcádia era um pesadelo, e que sua vida jazia perdida em suas lembranças. No entanto, essa era a sua vida —repleta de dor e desgraça. A vida de antes não passava de um sonho bom.

Eu sonho o ano todo, mas não são sonhos bons

E os arrepios descem pela minha armadura

No dobro do tempo

///

Quando arranjou um tempinho livre, em meio a todas aquelas tarefas, decidiu sair um pouco. Precisava de ar. As vozes pareciam piores dentro do palácio. Quando enfim ela cruzou o portão, despedindo-se de Sado, sentiu o ar frio inundar o seu cérebro. As vozes pararam por uns 3 segundos, então voltaram a falar. Podiam ser outros fantasmas, mas Neliel não tinha certeza.

Tinha chovido há pouco tempo, mas fora apenas uma chuva temporária de verão. Ela cessara em menos de uma hora. O sol, porém, estava escondido pelas nuvens cinzentas ainda —o que não era típico do verão. O ar estava abafado, e ela estava acalorada. Seu único consolo eram as poças de água, e as ruas molhadas. O ar estava gelado em comparação a aquele enjoativo do palácio.

Juntou as mãos no colo enquanto apressava os passos, cortando caminho pela montanha para chegar ao mosteiro de Davi. As visitas já eram quase frequentes, e ocorriam sempre que Neliel precisava de um pouquinho de fé.

O mosteiro de Santa Tereza era um bonito castelo, com duas torres cor creme. Ele ficava alojado no topo da montanha, onde os topos dos pinheiros lambiam suas paredes. Neliel foi desacelerando, observando os monges absortos em seus pensamentos e suas obrigações.

Por pura sorte —finalmente alguma em sua vida —achou o Irmão Davi sentado em um dos bancos do pátio, desenrolando alguns pergaminhos. Vendo-o assim, quase atrapalhado com tamanha papelada, ela podia dar vinte inocentes e imaturos anos para o moço.

—Irmão Davi. —ela saudou.

O monge sorriu para ela. As vozes berravam em seu ouvido, dizendo coisas que ela não queria acreditar, coisas insanas e cruéis. Ela tampou os ouvidos disfarçadamente, para o monge não notar que havia algo errado —mas as vozes estavam dentro da cabeça dela, e com certeza não parariam de falar se ela tampasse os ouvidos.

—É ótimo tê-la aqui de novo, srta. Neliel. —falou o irmão, com simpatia. —Sua visita da semana passada foi muito alegre.

Ela sorriu afetada para ele. Seus lábios tremiam. As vozes berravam. Ela não aguentava mais; até seu sorriso estava enfraquecido.

—Apenas guardarei essas escrituras e iremos poder louvar a Virgem Maria juntos. Espere aqui, por favor.

Neliel assentiu, enquanto Davi se levantava. Vários monges passaram na frente dela, olhando para frente. Ela distraiu-se com o farfalhar de suas túnicas marrons, com o balanço dos crucifixos nos seus pescoços. As vozes não paravam de berrar, de qualquer maneira.

E meu povo fala comigo

Estou perdendo o contato agora

As pessoas falam comigo

E seus rostos começam a desfigurar, mas eu tenho

Meus dedos presos uns aos outros

E eu fiz uma pequena prisão

Estou trancando todo mundo

Que algum dia colocou um dedo em mim

Davi chegou, os dois se levantaram e foram para a capela, louvar a mãe de Cristo. Havia cinco fileiras de bancos de madeira e lá, no altar, se erguia Ela. Uma estátua linda, de um metro e vinte, representando a Virgem Maria. Era delicada, pintada por um dos mais talentosos artistas. Vestia um manto branco, tão branco como a lua. Seus olhos cor de mel transmitiam a piedade que tanto atribuíam a ela, o rosto de cerâmica corado.

—É linda. —Neliel comentou, admirando a Rainha dos Céus. Dizia isso todas as vezes que iam lá, sem exceção.

—Quase tão bela quanto à única. —concordou Davi, sorrindo para ela. O sorriso dele era lindo também.

Neliel ajoelhou-se na primeira fileira, onde tinha visão perfeita da estátua. Davi se ajoelhou logo ao seu lado. Eles rezaram em silêncio por alguns minutos, Neliel pedindo orientação para a Virgem. Ela poderia até ter respondido, no entanto Nell nada podia escutar —os espíritos apitavam em sua mente, a ensurdecendo.

De repente, a fragilidade se abateu em seu coração. Ela ouviu as risadas ou os comentários dos fantasmas quando as lágrimas começaram a jorrar de seus olhos. E, mesmo ela os enxugando, eles não paravam de verter lágrimas —assim como uma cachoeira. Davi só percebeu quando Neliel começou a soluçar, engasgando-se.

—Srta. Neliel...Neliel, você está bem?! —Davi a segurou, quando ela quase tombou no chão. —Srta. Neliel, o que aconteceu?

Ela tentou se recuperar, falando entre lágrimas, soluços e vozes de mortos. Parecia afogada, tanto em lágrimas, quanto em desespero.

—Davi...Davi! —ela se debruçou nele. —Você acha que eu vou para o Inferno?

E houve algo no tom da voz dela, sussurrada e cheia de medo, que fez ele se assustar. Por isso, demorou um pouco para formular uma resposta.

—Não, claro que não.

Neliel balançou a cabeça, e o abraçou. As lágrimas só cessaram, e por alguns segundos também as vozes, quando ela contemplou o olhar da Virgem Maria —parecia estar com pena da menina. Como se soubesse que algo de muito pior ocorreria com ela.

Estou cheia disso, este é o começo

De como tudo acaba

Eles costumavam gritar o meu nome

Agora, eles o sussurram

Estou acelerando, e esta é

A dançante luz vermelha, laranja e amarela

Iluminando meu coração

///

A garota voltava para casa, coçando os braços. Isso a ajudava. Precisava descontar a agonia e a raiva em algo, afinal de contas. Nell estava agoniada, mas a visita ao mosteiro havia sido boa. Mais de 5 segundos sem vozes apitando na sua mente —um verdadeiro paraíso.

Seus olhos ainda estavam vermelhos e inchados, mas ela fingiu que ninguém percebera. Davi havia se oferecido mais de uma vez para levá-la em casa —mas a moça negara de modo convincente todas elas. Odiava preocupar quem gostava, e mais ainda dar trabalho.

Comprou um buquê em uma floricultura no caminho, ignorando totalmente as vozes e sorrindo para a dona. Eram margaridas, flores alegres. Ela aspirou fundo o seu cheiro, cheiro de pólen. Também comprou quatro tulipas, cada uma de uma cor diferente: rosa, vermelha, amarela e roxa. Cheiravam bem e eram bonitas, cada uma delas, de forma igual.

Uma multidão se reunia não muito longe dela. Todos estavam horrorizados, e comentavam. O círculo bloqueava totalmente a visão de Neliel do ocorrido, embora ela soubesse bem do que se tratava —os cadáveres mutilados.

Ela abriu caminho entre a multidão, onde os civis aguardavam que alguém retirasse os pobres corpos. Sentiu-se repentinamente forte, abrindo caminho com os ombros entre as pessoas.

Lá estavam os mortos: queimados e amarrados em troncos, mais carvão do que pessoas. Estavam expostos de um jeito que se aproximava a uma exposição macabra de arte, os rostos com uma expressão de dor demasiada real para Neliel.

Ela se aproximou deles, depositando uma tulipa em baixo de cada corpo. Sentiu o cheiro de carne queimada, e por isso respirou as margaridas mais uma vez, enfiando o nariz no buquê. Tentou não olhar para nenhum detalhe, mas acabou vendo o relevo das palavras entalhadas nas barrigas dos pobres pecadores: avarento, orgulhosa, ganancioso, mentiroso... Mas nenhuma bruxa, ainda bem. Nell respirou com mais tranquilidade quando nenhuma palavra se auto-entalhou em sua barriga.

Nós queimamos a largada, as cores desaparecem
Eu nunca observo as estrelas
Há tanta coisa acontecendo aqui embaixo
Então, eu apenas tento acompanhar a
Batida oscilante vermelha, laranja e amarela
Acendendo meu coração

Terminada a sua tarefa com os quatro pecadores, ela seguiu o seu instinto —o cervo em seu coração— e visitou a velhinha que bebia vinho com a Morte. A porta estava destrancada, mas ela não ficou surpresa quando não encontrou ninguém vivo na casa —sabia de algum modo que a anciã era uma mulher solitária, depois que perdera seu marido e seu único filho.

Era uma casa pequena e velha, mobiliada apenas com alguns móveis caindo aos pedaços. Não havia muito onde procurar a velhinha, e logo a viu, sentada em sua cadeira, como que dormindo. Ela aceitara a sua morte, que fora concebida por causas naturais. Pessoas que aceitavam a morte, e a recebiam de braços abertos —e com duas taças de vinho —eram muito raras. Nell devia a tomar como lição de sabedoria.

Caminhou de forma vagarosa, observando as taças de vinho já vazias, e depositou o buquê no colo da anciã.

E essa é a batida oscilante vermelha, laranja, amarela
Acendendo meu coração
E essa é a batida oscilante vermelha, laranja, amarela.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Esse capítulo ficou grande demais, senhor! Desculpe se cansei vocês, mas foi preciso para encaixar a música toda (além de que eu já tinha tudo isso encaixado em my mind). Na verdade, até faltou uma parte referente ao Ichigo, que eu vou encaixar no próximo capítulo.
O Davi é baseado em duas meninas que eu encontrei em minha igreja. Elas eram tipo "monges", e vieram para a Festa do divino (arrecadar fundos e etc). Elas tinham cabelo curtinho, usavam essas túnicas que eu descrevi no texto e eram lindas. Uma dessas meninas, que se eu não me engano era do Paraguai, tinha um sorriso lindo *-*.
Eu queria dizer que, quando eu criei essa fanfic, não tinha um enredo tão grandioso em mente. Progredi muito, e devo atribuir meu progresso também a vocês, que me incentivaram um bocado com seus comentários! Sei que ainda tenho muito a melhorar, mas também sei que vocês me ajudarão. A partir de agora, o clima ficará ainda mais pesado para Neliel, e terá ainda mais capítulos focados nela (como esse).
Não esqueçam de suas sugestões de música!
Bye!