O Purgatório escrita por Isabella Assunção


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ouço o despertador, levanto-me assustada achando que tudo fora verdade. Decepciono-me. Mas é difícil para uma garota como eu - que vê a morte desde pequena e segue seus passos - acreditar que algo bom seria real. Levanto, vou olhar na janela – um hábito -; o sol está a pino. É meio-dia. Levantei muito tarde para um sábado abafado no Texas. Vou ao banheiro, tiro minhas roupas de dormir; abro a torneira da banheira, enrolo-me na toalha branca de algodão sueco; volto ao meu quarto, o piso de pinho velho rangendo sob meus pés, pego uma de minhas camisas xadrez azul, uma calça jeans surrada, minha roupa intima preta e o meu tênis All Star. Deixo minhas vestes em cima da cama sobre a colcha de seda azul escuro, e volto ao banheiro, olho-me no espelho, estou abatida – minhas olheiras demonstram o quanto dormi mal -. Meu cabelo castanho já não continha o brilho de antes, assim como o brilho de meus olhos verdes também se fora há muito tempo. Tirei a toalha de meu corpo e entrei na banheira. Fechei meus olhos enquanto me ensaboava e pensei novamente naquele sonho; eu nunca vira olhos daquela cor e com tal profundidade.

- Pare de pensar em seus sonhos bons enquanto estou aqui agonizando precisando de você! – assustada, abri os olhos e pulei para trás, mas só havia a parede.

- Q-quem é você? – perguntei com as mãos cravadas na banheira.

- Rodolfo. Eu sei que o prazer é todo seu, querida Elizabeth. – seu sorriso era de zombação. Não respondi, apenas fechei os olhos.

- Eu preciso que você me tire daqui, o mais rápido possível.

- Será que dá para o senhor voltar numa hora mais adequada? – perguntei tirando a toalha do cabide. Ele levantou-se e veio devagar até mim.

- Não existe hora melhor para uma alma perdida. – E sumiu.

Suspirei. Sequei-me e tirei o ralo da banheira, fui até meu quarto colocar minhas vestes; voltei ao banheiro e vi que ia ser difícil desfazer o emaranhado em meu cabelo – mesmo sendo liso – e fui calçar os sapatos.

Desço as escadas passo pela sala e avisto minha avó sentada em sua poltrona favorita – rosa, com flores coloridas -, olhando pela janela tristemente; perdi meu avô faz dois anos, mas não há um dia que ela não se lembre dele: seu sorriso, seu romantismo, sua força, seu coração de ouro. Vou até ela com um sorriso carinhoso no rosto. Agora éramos somente nós duas.

- Vovó?

- Oh, Elizabeth! Você me assustou querida, nunca mais chegue por trás e me de um susto desse. Eu poderia enfartar! – disse ela se recuperando do susto, mas sorrindo.

Eu ri.

- Não seja tão dramática Senhora Janette Campbell Harper! – abracei-a e fomos para a cozinha.

- Sente-se que eu faço o nosso almoço, querida. – vovó disse enquanto me empurrava para uma cadeira e ia para os armários pegar ingredientes.

- Nada disso. Eu farei o almoço de hoje. – eu sorri, levantei-me e ajudei-a a sentar-se em uma cadeira próxima.

- Lizz?

- Sim?

- Por que você nunca sai com suas amigas, querida?

- Hã... Por que... – lá vem ela de novo. - Eu nunca consegui arrumar amigas vovó, elas são diferentes. – Disse dando de ombros enquanto colocava os ingredientes na panela.

- Você é diferente querida. Desde menina nunca se adaptou. – Ela me olhou com um sorriso nervoso e uma expressão de solidariedade. Eu odiava quando vovó fazia aquilo comigo. É claro que ela nunca soube que eu falava com fantasmas ou coisas parecidas.

Eu comecei a falar com espíritos quando completei sete anos. Minha prima Joana tinha câncer cerebral, nós não nos desgrudávamos um segundo sequer. Quando ela se foi, no dia depois do meu aniversário, eu me fechei e comecei a viver em meu mundo, isolada de todos. Eu já havia perdido meus pais em um acidente de avião, nunca acharam seus corpos, e tive que vir morar com os pais de minha mãe. Eu não poderia suportar mais nenhuma perda. Não queria saber de nada nem de ninguém, eu apenas queria minha prima comigo. No fim do verão de 2001 ela apareceu para mim sentada em cima do muro de minha casa, nosso lugar preferido quando nossas famílias se juntavam para comemorações.

“- Jo?! O que faz aqui? Titia me disse que você tinha ido fazer uma longa viagem a Papai do céu e que não voltaria por um bom tempo. Ela sabe que você chegou? Por que você sabe muito bem que se ela não souber e se você tiver fugido da casa do Papai do céu, você vai levar uma bronca...

- Lizz, veja as lindas estrelas desta noite.

Eu me aproximei dela lentamente.

- Jo você esta diferente...

Ela olhou para mim e sorriu de um jeito carinhoso.

- Estou no céu Lizz. Eu finalmente posso voar. Olhe!

E antes que eu pudesse responder, Joana se levanta e se joga do muro. Com um ar espantado e com as mãos sobre a boca, corro até o muro e olho de cima, vejo Joana flutuando como uma leve pluma, sem o menor medo.

- Uau. – sorri maravilhada. – Me ensina?

- Desculpe Lizz, não posso, e não quero que você venha morar comigo e com Papai do céu...

- Você não gosta mais de mim? – perguntei com cara de choro.

- Claro que gosto. – ela sorriu. – Mas, não poderei explicar. Siga sua vida Lizz, eu estarei todo o tempo ao seu lado.

- Para sempre Jo?

- Sempre. – ela me olhou triste. – Tenho que ir... Foi bom te ver uma ultima vez – disse quase sussurrando. – Eu te amo Elizabeth.

E ela se foi.”

Lembro-me que nesse dia eu não conseguia dormir por causa da aparição repentina de Joana e por causa do barulho da chuva. Sempre amei a chuva, mas nesse dia eu não entendia o porquê de estar tão inquieta, além do óbvio. Eu contei para todos o que eu havia visto, mas ninguém acreditou. Vovó disse que eu poderia ter sonhado, já vovô disse que eu apenas pensei tê-la visto, e que isso era causado pela saudade que eu sentia de Joana. Depois que ela se foi minha família se separou, e depois da morte de meu avô, nunca mais a família se juntou e dessa vez nunca mais nos vimos.

Voltei para a realidade quando vi Janette levantar-se e pegar um livro de magia da estante e sentou-se novamente, – vovó adorava essas maluquices de bruxas e varinha de condão, desde pequena - enquanto eu preparava o molho deixei algumas lágrimas caírem. Relembrar o que passei com minha prima, e melhor amiga, não me fazia bem, passei minhas mãos em meus olhos para enxugar as lagrimas e virei-me para minha avó.

- Está pronto. – disse simplesmente.

- No que estava pensando? – disse ela com os olhos ainda no livro.

- Estava me lembrando de Jo. Apenas isso. – dei de ombros.

- Aquela menina tinha um coração maravilhoso, você sabia que ela via espíritos, igualzinha a você? – vovó sorriu. – Você achava que eu não sabia não é? Eu vejo tudo e todos Lizz.

- Mas...

- Não se preocupe um dia você saberá de toda a verdade Elizabeth. – ela levantou-se veio até mim, me deu um beijo no rosto e mudando de assunto continuou: - O cheiro está ótimo. – Janette saiu da cozinha.

Fiquei parada, estática. Que diabos estaria acontecendo aqui?! Porque vovó estava falando daquele jeito? Eu não acredito que a minha própria família, resumida em minha avó, estava escondendo algo de mim! Bufei irritada. Saí da cozinha estressada, viro-me para a escada. Paro. Uma linda garota loira de estatura mediana, mais ou menos 1,70, longos cabelos enrolados até a cintura e corpo esbelto, está sentada na escada olhando pelas grades. Vou em direção a escada como se não a tivesse visto ali.

- Olá, sou Luce. Elizabeth, você precisa nos ajudar. – disse ela ainda olhando pelas grades da escada.

- Não é um prazer conhecê-la Luce. Não posso e não quero. – disse emburrada, mais parecida com uma criança manhosa.

- O meu mundo corre perigo sem sua ajuda. – implorou.

- Não me importo. – disse dando de ombros, parando no meio da escada e virando-me para ela, vejo que está atrás de mim olhando-me com olhos azuis profundos, fico com dó por ela estar morta, devia ter o quê, uns 15 anos? – Eu adoraria ajudar. Mesmo. Mas eu não sou a pessoa certa para isso, você e seus amigos do submundo deveriam arranjar alguém que lute contra coisas sobrenaturais e não eu. Tenho só 17 anos. Desculpe.

- Elizabeth, eu poderia contar minha história? – ela sorriu.

- Claro, por que não? – disse desanimada sentando-me na escada. – Comece.

“- Eu sempre fui a menininha do papai, a princesinha dele, ele me amava e me protegia como se eu fosse um tesouro precioso. Eu tinha 13 anos quando tudo aconteceu. Eu estava em casa a sós com ele, mamãe tinha ido fazer hora extra no trabalho, eram oito horas da noite, papai estava sentado em sua cadeira preferida e eu estava no sofá lendo uma revista sobre vestidos. Até que reparei nele me olhando de modo estranho...”– sua voz foi sumindo em meio as palavras. Eu comecei a ficar absorta em sua história imaginando cada cena em minha mente.

- Continue. – Encorajei-a.

Ela suspirou e prosseguiu:

“- Então ele me disse:

- Como você está crescida querida, está tão linda quanto sua mãe.

Eu fiquei um pouco assustada com seu olhar que não expressava mais o amor de pai que ele sempre teve por mim, então eu disse:

- Obrigada papai. Acho melhor eu ir começar a estudar, a semana de provas está chegando.

Eu estava prestes a me levantar quando sinto as mãos de meu pai me pressionando para ficar sentada, com uma das mãos ainda me segurando ele retirou o seu cinto, na hora pensei que fosse para me bater, mas ele não teria motivos; para minha surpresa ele começou a desabotoar sua calça e colocou seu corpo sobre o meu ainda prendendo minhas mãos acima de minha cabeça. Na hora só pensei em me salvar, mas não via como sair daquela situação; ele estava tentando desabotoar minha calça, eu estava chorando baixinho.

- Papai, por que está fazendo isso comigo? O senhor está bêbado? – eu apenas sussurrava.

- CALE A BOCA! – ele furiosamente me deu um tapa no rosto.

 Ainda chorando resolvi que precisava acabar com aquela tortura. Meu pai continuou tentando desabotoar minha calça, mas ela tinha três botões, o que dificultava seu trabalho. Num descuido ele baixou as duas mãos para a minha calça, não pensei duas vezes; o empurrei. Ele caiu sentado, levantei-me do sofá e tentei correr para a escada – em direção ao meu quarto -, mas ele foi mais rápido, me pegou pelo pulso, me girou e me jogou de encontro à escada, minha cabeça bateu na quina; o sangue quente jorrava de minha cabeça, eu ainda estava viva, mas meu pai – se é que pode chamar um monstro daquele assim – estava furioso, sua expressão demonstrava uma mistura de insanidade e desespero. Ele finalmente caíra em si. Ele me pegou nos braços e me levou até os fundos de nossa casa; deixou-me no chão agonizando enquanto cavava um tipo de buraco. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo, ele não teve nem a coragem de me levar ao hospital e inventar uma estúpida desculpa para a razão do estado em que eu me encontrava. Não, ele não ia fazer isso. Enterrar-me no fundo da casa na qual cresci era a melhor solução. E o que ele iria dizer a mamãe?! Ela iria exigir uma explicação, ele não tinha como fugir da verdade. Mas me enganei. Assim que ela chegou, ele disse que foi ao meu quarto e não me viu e que as malas de viagem estavam espalhadas; ele criou o cenário perfeito. Mamãe espalhou cartazes para todos os lados, fui dada como desaparecida, um caso sem solução. Apodreci naquela cova por dias, perdendo o resto de fôlego que havia em mim, fechei os olhos rezando por um milagre e quando acordei novamente, estava em um lugar escuro, mas dessa vez eu podia me mexer, eu estava bem, estava viva novamente. Então eu me encontrei justo naquele lugar...”

Assim que Luce terminou sua horrível história, ela deixou lágrimas escaparem e sorriu por entre elas.

- O lado bom é que minha história não é tão ruim perto das histórias do pessoal que ainda vai vir te visitar pedindo por sua ajudar, sei que assim como você fez comigo vai fazer com eles também.

- Olhe Luce, o que aconteceu com você foi horrível, mas ainda não vejo como eu poderia te ajudar...

- Elizabeth, eu assim como a maioria das almas que te pedem ajuda, não estamos no céu, não saímos de lá para simplesmente vir encher sua cabeça de caraminholas, nós estamos num dos lugares mais assustadores e imundos do planeta; cada alma tem a sua razão para estar lá e você foi a escolhida. – ela olhou para mim seriamente.

- Que lugar é esse? – eu como sempre curiosa, perguntei.

- Não vale a pena dizer, você não se importa. Está lembrada? – sorriu sarcasticamente. – Desculpe te incomodar Elizabeth. Adeus. – Luce se foi. Assim como todas as almas.


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Notas finais do capítulo

Capítulo de estréia. Minhas inspirações ajudaram bastante. Obrigada.



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