Olhos De Gato escrita por Estressada Além da Conta


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Eu estou postando agora a versão editada, com algumas mudanças que eu achei necessárias. Mas me digam o que acharam, talvez eu conte a lenda por trás dos Bloodmoon... Talvez, depende de vocês.



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OLHOS DE GATO (Editada)

         Eu não estava com medo. Claro que não. Só apreensiva, pois era a primeira vez que eu passaria a noite na casa de Anne, que um dia foi  minha melhor amiga, cujos boatos sobre a moradia e família eram os piores. Sim, eu só estava ansiosa. Oh, sim, esqueci-me de me apresentar, que memória a minha! Lilian Courage, habitante da Ilha Pierdut, também conhecida como Ilha do Nunca, pois é tão insignificante que nunca aparece nos mapas. Prazer em te conhecer! Agora que já trocamos afinidades, deixe-me relatar minha traumática estadia na casa do Bloodmoon.

         Minha melhor amiga chamava-se Anne, ela era loira e tinha olhos azuis. Um dia, ela me chamou para dormir na casa dela, o que era estranho, já que os pais dela nunca deixavam. Eu, com hesitação óbvia, aceitei o convite. Não que nunca tenha ido à casa de outras amigas, e Anne era uma boa pessoa. Meus problemas, pois eram dois, eram os seus irmãos. Mirana e Alan Bloodmoon, como todos os gêmeos, eram idênticos. Mas havia neles algo de cruel, maligno, misterioso e sinistro. Mirana tinha longos cabelos negros, era alta, gostava de usar calças e tinha olhos verdes. Alan era sua versão masculina, com cabelos negros curtos e olhos também verdes, era apenas alguns centímetros mais alto que a irmã e bem magro. Os dois possuíam pele pálida... Mas os olhos eram muito mais marcantes que suas anatomias, aqueles olhos verdes como os de um gato pronto para caçar.

         Mas deixando meus medos irracionais que me perseguem até hoje, dez anos depois do ocorrido, de lado, vamos começar do começo da pequena aventura. Depois da escola, corri para minha casa, almocei, tomei um banho, troquei de roupa, assisti alguma coisa na TV, fui para o quarto e arrumei a mochila, quase morrendo afogada naquela bagunça durante o processo. Só passaria a noite, então não precisava levar muita coisa: Duas mudas de roupa, contando com o pijama, escova de dente, pente, carregador do celular e do notebook e o próprio. O celular foi colocado no bolso mesmo, junto com o fone, assim eu poderia ouvir música calmamente pelo caminho. Quanta inocência. Peguei minhas coisas, pus a mochila nas costas, fui para a sala e dei um beijo em minha mãe dizendo que iria passar a noite na casa de Anne e que ligaria caso ocorresse alguma coisa.

         – Vai mesmo ficar bem? – Ela indagou, preocupada.

         – Claro. Não se preocupe, não é como se nunca tivesse feito isso. – Respondi, tentando tranquilizar tanto a ela quanto a mim. Creio que minha mãe percebeu isso, pois só faltou me dar uma enciclopédia de conselhos com quatro volumes. Disse-lhe que estava tudo sob meu controle e que logo voltaria, não pareceu convencê-la, mas mesmo assim ela me deixou ir.

         Rumei então em direção à casa de Anne. Na verdade, era uma mansão bem antiga que pertencia à família Bloodmoon já fazia séculos, e ficava no fim de uma rua completamente deserta. Olhei no relógio que ganhei de meu pai no Natal passado, eram três horas em ponto, e havíamos marcado às quatro, o que me deu uma hora de descanso, tempo suficiente para tomar um sorvete na Café&Leite, uma cafeteria que fica no caminho, mandar uma mensagem para meus pais dizendo que estava tudo bem e ouvir mais meio mundo de conselhos de minha mãe quando ela, ao invés de responder a mensagem com outra, me ligou. Olhei o relógio novamente, dez para as quatro.

         Resolvi ir andando, pois não queria me atrasar e causar má impressão, principalmente na primeira vez. Infelizmente, os boatos de que outros visitantes haviam enlouquecido e morrido não paravam de me incomodar, como a mente prega peças nas pessoas! Mas a realidade é bem pior, pois não é imaginação, é real, real a ponto de te matar de medo.

         Já estava começando a escurecer. O tempo aqui na ilha passa um pouco mais rápido do que no resto do mundo, então as três ou quatro horas, o sol já se prepara para dormir. Com esse pensamento em mente, apertei o passo e fui até à rua deserta, com a irritante sensação de estar sendo seguida. Tentei ignorar isso, mas senti algo se aproximando e me virei para encarar meu perseguidor. Não era incomum ser perseguido e assaltado aqui na ilha, isso já aconteceu pelo menos uma vez com todo mundo daqui, mas tinha algo de diferente, eu sentia isso em minha espinha. Virei-me, e o que vi?

         Um gato. Um gato enorme. Um enorme gato negro com grandes olhos. Olhos verdes. Meu corpo relaxou, era só um gato e eu quase desmaiei de medo. Revirei os olhos bati em minha própria testa. Malditos e verdadeiros boatos!

         – Parabéns, sua idiota. – Resmunguei para mim mesma – É só um maldito gato. – Dito isso, olhei novamente para o gato, apenas para encontrar o lugar onde o bichano estava completamente vazio. Virei a cabeça de um lado para o outro, naquela estrada, pois nem rua era, só haviam dois postes de iluminação, sendo que um deles não funcionava, então o gato não poderia ter se escondido lá. Realmente, me impressiono ao ver o quanto ingênua eu era! Depois de muito tempo matutando, parada no mesmo lugar, voltei a caminhar, já eram quatro horas e estava escurecendo. Sempre fui supersticiosa em certos sentidos, não que eu acreditasse em azar, mas sim em fantasmas, maldições, almas e coisas relacionadas com a morte e a vida além-tumba.

         Depois de vários minutos caminhando por aquela rua, com a certeza de já estar atrasada quase meia hora, finalmente cheguei ao meu destino. Que mansão enorme! Nunca havia chegado tão perto dela, mas se de longe ela parecia grande, de perto parecia lançar sua sombra por toda a ilha. Cheguei perto e bati na porta dupla de entrada. Bati uma, duas, três vezes, até que a porta se abre num clique, fazendo um barulhão. Havia uma luz ligada ao fundo, fazendo a sombra da imagem à minha frente parecer muito com um fantasma e ofuscando minha visão. A figura era uma mulher, pelo jeito do corpo, e tinha longos cabelos lisos, logo, não era Anne, pois ela tinha os cabelos loiros cortados curtos e bem cacheados e os pais dela só chegavam lá pelas sete da noite. Isso só significava uma coisa: Mirana seria minha anfitriã.

         Ao constatar esse fato, meu corpo queria correr, sair dali, fugir até onde desse, mas minha mente havia congelado por completo, então fiz a primeira coisa que deu: Rezei para que ela não tivesse me visto, mas não tive tanta sorte. Ela, que estava de lado no meu ponto vista, girou a cabeça, me dando uma vista mais precisa de seu rosto pálido, seus lábios levemente vermelhos e olhos cor de grama. Usava uma camiseta branca larga, bermuda preta que ia até o joelhos, meias brancas e tênis.

         – Olá, você deve ser Lilian. – Ela abriu um sorriso que eu só poderia considerar como cruel, como se Mirana soubesse sobre meu medo e se divertisse com isso – Vamos, entre. – Deu-me passagem e me vi obrigada a entrar na, agora maldita, mansão – Boa noite e seja bem vinda. Anne está no quarto, irei leva-la até lá. Venha comigo. – Mirana fechou a porta, que fez o mesmo ruído perturbador, e começou a me guiar.

         Por mais que todo o meu ser gritasse para correr, algo mais forte me fazia seguir os passos lentos daquela menina estranha. Talvez fosse a calma mortal que emanava dela, ou o "senão..." escondido em seu timbre de voz após essa última ordem, não sei. Fiquei perdida em pensamentos até minha guia falar novamente:

         – Sabe, essa é a primeira vez que Anne chama alguém para passar a noite, então nos perdoe caso a magoemos. – Usava um tom tão monótono, que desconfiei que alguém tivesse mandado que ela decorasse a fala – Mas devo lhe avisar: Algumas vezes, as coisas ficam escuras, então tome cuidado.

         – Quer dizer que aqui falta luz?

         – Digamos que o fundo do buraco é mais embaixo. – E com esse comentário nem um pouco revelador, demos a conversa por encerrada e subimos uma grande escadaria. Fiquei observando os corredores do segundo andar. Vários quadros de pessoas já esquecidas adornavam as paredes, havia algumas mesinhas com vasos e gavetas, o chão era feito de madeira pura e as lâmpadas encarregadas da iluminação estavam separadas por bom um metro e meio, talvez um pouco mais. Também havia, aqui e ali, algumas portas que davam para salas ou quartos diferentes. Mirana parou na frente de uma e bateu.

         – Quem é? – Pude ouvir a voz de Anne através da porta.

         – A Fada do Dente. – Ouvi um bufo, Anne não havia gostado da resposta – Sua amiga chegou já, maninha. – Um barulho de molas, acompanhado por outro de pés batendo no chão, se fez ouvir e logo minha amiga estava à minha frente.

         – LILIAN! – Exclamou, quase me deixando surda – Você veio! – Abraçou-me bem apertado.

         – Falei que viria. – Retribui ao abraço.

         – Não querendo ser desagradável, mas já sendo, eu vou ver se o jantar está pronto. – Mirana interrompe o momento, me lembrando de onde e com quem estava – Anne, Alan está treinando, por que não leva Lilian até ele? Boa noite. – Disse enquanto ia embora. Só agora, com meus vinte e poucos anos, percebo que aquele não foi um "boa noite", e sim um "boa sorte", como se estivesse me desafiando. Eu sei, pareço uma paranoica, mas tente entender, amigo leitor, que minha mente nunca foi uma das mais fortes.

         – Lilian, deixe sua mochila aí em cima da cama. Meu irmão toca bem.

         – Toca? – Perguntei atordoada.

         – Sim, toca piano! – Disse em tom alegre, enquanto jogava minha mochila na cama e me puxava para outra sala. Dessa vez, não pude olhar em volta, pois Anne corria numa velocidade que só faltava voar quando descemos as escadas, só parando em frente a uma sala com uma porta enorme. Ela empurrou a madeira da porta, e pude ver um piano gigante, com cauda e tudo, daqueles bem antigos, e uma pessoa sentada no banco perto do teclado deste. O nome do mais novo dos gêmeos Bloodmoon pairou em minha mente. Alan estava de costas para nós, vestindo uma camisa negra e uma calça jeans cinza.

         – Alan, eu trouxe minha amiga. Você não poderia tocar para nós? – O menino, ao ouvir seu nome, virou-se lentamente, deixando seu rosto, tão frio e cruel quanto o de sua irmã mais velha, à vista.

         – Claro, e por que não? – Respondeu. E depois, para mim, comentou – Você é um pouco mais alta que eu pensei. É um prazer, Lilian. Acho que já sabe meu nome.

         – Olá. – Cumprimentei com leve desagrado, resolvi não dizer nada sobre seu comentário, como assim eu era mais alta que ele imaginava? – Anne me disse que você tocava bem.

         – Ainda falta muito. – Ele sorriu, e notei que não parecia tão sádico como Mirana, mas mesmo assim amedrontador – Por favor, senhoritas, tomem seus assentos. – Disse apontando para duas cadeiras, até então despercebidas, que estavam a uns dois metros ao lado do piano. Sentamos e esperamos. Então, Alan começou a tocar de repente, de um modo tão brusco, que cheguei a me assustar.

         Ele tocava com a alma, com um fervor inexplicável nos dedos que, rápidos, pareciam brincar com as notas, como os gatos brincavam com os cachorros quantos estes não conseguiam alcança-los. Não conseguia seguir suas mãos com os olhos, e os grandes filósofos dizendo que a visão é mais rápida que a ação. Tudo mentira para enganar os cegos e oprimi-los. Havia dor em cada nota, uma dor insuportável, uma melancolia incrível, um sentimento de tristeza e raiva tão forte que eu podia sentir na pele. Alan continuou tocando, ofegava, fazia caretas como se também sentisse aqueles sentimentos revoltantes que mais pareciam lamentações, até que ouvi tambores tocando junto com a melodia do piano, vozes graves, solenes, como de pessoas que já sofreram e esperam sofrer mais encheram meus ouvidos, violinos tocados com tal precisão que nem os mais sábios no assunto conseguiriam imitar. Creio que essa narração o fará, meu caro leitor, achar um belo espetáculo, mas devo retirar-lhe desse sonho e contar a verdade: Não passava de uma melodia vinda das profundezas do Inferno, cantada, declarada, tocada por pessoas cuja alma não alcançou o descanso eterno e nem o próprio Hades teve clemência, expulsando-os de seu império e condenando-os a vagar pelos mundos como espectros.

         A música continuou, o incansável coro, tanto de vozes quanto de instrumentos, me fazendo apertas a barra de minha saia xadrez curta e molhar minha camisa branca de suor frio. Anne parecia bem à vontade com seu pijama de ursinho e suas pantufas de coelho, como se estivesse longe dali, como se não ouvisse aquela música infernal. Invejei-a por isso, pois aquela música estava me amedrontando de tal forma que o medo me paralisava, enquanto minha mente berrava, implorava para eu correr dali. A grande sala, a iluminação focada apenas no piano, deixando assim vários cantos escuros, a lua minguante, que minha mãe dizia ser o "Sorriso do Gato de Alice", jogando seus raios esbranquiçados pela grande janela, cujas cortinas rubras mais pareciam fantasmas, os poucos móveis, apenas uma mesa pequena com uma jarra de água e um copo e as duas cadeiras por nós ocupadas, ajudavam as correntes do medo a me prender ali. Eu, agora, confesso: Não estava com medo, estava entrando em puro e profundo pânico, pânico esse, que me corroía.

         Algum tempo depois, minha tortura chegou ao fim, tão bruscamente como começou, junto com aquele som, mas antes que eu pudesse fazer algo, ouvi ainda tambores tocando no ritmo de um coração humano em seus últimos suspiros. Oh, Deus, não estava mais entrando em pânico. Já havia entrado.

         – Não disse que ele tocava bem? – A voz de Anne quebrou meus pensamentos. Eu queria dizer que não, queria perguntar se ela era surda, queria gritar e correr de volta para os braços acolhedores de meu lar.

         – Sim, você tinha razão. – Respondi ao invés, e me dirigi ao garoto – Foi muito bom.

         – Obrigado. – Ele devolve parecendo cansado.

         – O jantar está pronto. – Quase pulei uns trinta centímetros de tanto susto. Mirana havia aparecido atrás de nós em algum momento e agora me apavorava – Alan, você melhorou muito, principalmente o final. – Disse e me deu um olhar nem um pouco discreto, como se me desafiasse a negar tal afirmação.

         Eu a odiei. Eu a odiei mais que eu julgava que poderia odiar alguém. Eu odiei tudo e todos daquela casa. Então meu celular, esquecido do bolso da saia, tocou. Pedi licença, olhei no visor, minha mãe, provavelmente com outra enciclopédia orada. Numa situação normal, eu suspiraria e reviraria os olhos, mas não era uma situação normal, e foi com esplêndida satisfação que atendi à chamada.

         – Alô?

         – Lilian, meu amor, minha vida, minha privada entupida! – Não pude evitar, bufei com irritação, porém um único olhar direcionado aos meus anfitriões me fez voltar a atenção ao pequeno aparelho. Minha mãe podia até ser irritante, mas pelo menos não me assustava – Eu sei que você está alegre e saltitante, mas tenho uma notícia que vai te fazer chegar ao teto! – Oh, Deus, era só o que me faltava. Só o que faltava para a noite ficar perfeita – Eu comprei um... Adivinha! – Eu detestava adivinhações, e ela sabia disso – Eu, a sua linda, maravilhosa, fabulosa e incrível mãe, comprei um presente pra você! E ele é tão fofo! – Um calafrio correu por minha espinha, ela nunca sabia que presente me dar.

         – Que bom, mãe, mas estou um pouco ocupada... Amanhã de manhã eu ligo! – Prometi e desliguei sem ouvir a resposta, não precisava de mais conselhos. Destino cruel, se não tivesse feito isso, talvez me sentisse mais à vontade e esquecer-me-ia deles.

         – O jantar está servido. – Alan repetiu a frase da irmã mais velha. Anne pegou minha mão novamente, sem nunca notar meu estado de espírito, diferente de Mirana, cujos lábios avermelhados voltados para cima em um sorriso de satisfação sinistra entregavam sua culpa, e me levou até a sala de jantar, correndo como antes.

         Corremos e corremos, Anne nunca parava, parecíamos fugitivas, e era isso mesmo, pelo menos de minha parte. Chegamos à sala, que era enorme. Uma mesa coberta com um pano vermelho estava no meio do aposento, havia grandes janelas bem antigas, um lustre lindo de cristais pendurado no teto, candelabros de sete velas na mesa, cadeiras feita de uma madeira muito bem entalhada, um belo tapete vermelho cobria o assoalho e ainda havia algumas tochas acesas nas paredes. Em cima daquela enorme mesa, havia mais comida do que eu poderia comer em uma vida.

         – Mamãe sempre quis uma casa parecida com aquelas mansões de antigamente. – Anne explicou – Quando se tornou uma Bloodmoon, fez questão de reformar apenas o meu quarto e de meus irmãos.

         – Devo dizer, Anne, que nossos pais não virão hoje. – Mirana, novamente surgindo do nada e me assustando, disse calmamente.

         – Eles trabalham demais! – A menina reclamou.

         – Não adianta reclamar, Anne. – Alan comentou, também saindo das sombras – Eles vão voltar algum dia, só aguarde. Enquanto isso, vamos comer! – Ele andou até uma das cadeiras e a puxou – Mana?

         – Não é a mim que deve paparicar, meu irmão. – A Bloodmoon mais velha retrucou – Deve paparicar nossa honrada convidada, não é, Lilian? – Se dirigiu a mim, de novo me desafiando com seus olhos de gatos.

         – Vocês não precisam se preocupar com isso. Sou apenas uma visitante de passagem, não tenho tal importância. – Respondi e os olhos dela faiscaram.

         – Modesta ela, não é, meu irmão?

         – Muito. – Disse ainda esperando atrás da cadeira pela irmã, que logo a ocupou – Tenham um bom jantar. – Dito isso, nós tomamos nossos lugares e comemos. Notei que todos pegaram uma porção considerável de carne, o que era estranho, pois nunca prestei muita atenção nessas coisas.

         O jantar foi silencioso e calmo, a tal ponto que dormiriam se eu contasse. Após comermos uma comida deliciosa, cada um foi para seu... Entretenimento. Alan voltou ao piano, Anne me levou para o quarto dela e Mirana... Bem, Mirana sumiu sem deixar rastros. Aqui, leitor audaz, vem mais um momento de tédio em que eu e a jovem Bloodmoon colocamos as fofocas em dia, mexemos no notebook e fizemos tantas outras coisas que qualquer adolescente normal faria. Isso foi um tratamento para uma supersticiosa nata como eu, cuja crendice era tão grande, que por duas ou três vezes olhei pela janela imaginando ver a silhueta de um gato. Eu sabia que não deveria ter lido Allan Poe nunca, mas a curiosidade matou o medo.

         Exatamente a meia noite, logo após terminarmos de arrumar as coisas, eu já com meu pijama azul claro e chinelo, Mirana chegou e nos mandou para a cama. E, mais uma vez, ouvi certo tom de ameaça em sua monótona voz. Resolvi deixar de lado e tentar dormir, mas meus sonhos felizes com cachorrinhos fofos e surfistas loiros de sempre foram substituídos por pesadelos cruéis e malignos, dignos de Poe, Stoker, Sheridan Le Fanu e tantos outros romancistas de terror. Pesadelos com gatos, com Deus, anjos, a família Bloodmoon, sangue, medo, terror, escuridão, mortos, olhos verdes diabólicos e até mesmo com a própria Dama Fria, a Morte. Podia jurar que ouvi coros de espectros.

         Em meio a minha mente aterrorizada, um pequeno som me fez voltar à razão. Abri meus olhos rapidamente e vi Anne andando até a porta e saindo do quarto. Resolvi segui-la, vai que ela era sonâmbula? Fui andando sem fazer barulho algum, quase morri sem ar, pois em algum momento havia prendido a respiração com medo de fazer barulho. Saímos do corredor, descemos a escada, no dirigimos a outro corredor, tudo num silêncio sepulcral e na escuridão ininterrompida. Segui minha amiga até a sala onde ficava o piano, ela entrou e eu fiquei observando pelo vão da porta. Péssima ideia.

         O que vi ali destruiria qualquer um. Havia pessoas lá, pessoas pálidas, com marcas de garras na carne, se é que ainda sobrava alguma carne, pois a maioria estava apenas com pedaços faltando e outros eram completamente ossos. Pessoas mortas. E, ao lado delas, estavam os três Bloodmoon, enlambuzados se sangue. As roupas sujas daquele líquido vermelho, as mãos encharcadas, o rosto quase coberto e os caninos afiadíssimos, assim como as garras, faziam a visão mais infernal que já era. Elas lambiam os beiços.

         – Esse jantar estava divino, não acha? – Anne perguntou.

         – Pois é. – Alan confirmou. Deus, eles haviam devorado sem piedade os pobres inocentes!

         – Sabe, não é legal deixar nossos hóspedes de fora. – Mirana comentou casualmente – Ainda mais aqueles que insistem em se meter onde não são chamados. – Congelei no ato, havia sido descoberta! Precisava correr, fugir para longe, para bem longe, mas meu corpo não obedecia. A visão do assoalho coberto de sangue, os corpos já entrando em estado de putrefação e os três monstros cobertos da vida de pessoas havia me horrorizado dum jeito, que mal sentia minhas pernas!

         – Mas é minha amiga! – Anne protestou – Não podemos fazer nada?

         – A Cama de Gato já foi feita, Anne. Conforme-se. – Alan suspirou.

         – Todos esses séculos deixaram vocês moles. Só porque não conseguiram matar os pais, que vergonha para nossa raça! Pobrezinhos. – Mirana gracejou, mas depois voltou ao normal – Eu tenho feito todo o trabalho, trouxe comida e fiz uma vida social para não desconfiarem de nós.

         – O que não funcionou para você, pois existem boatos. – Alan lembrou a irmã – Apenas Anne conseguiu ser aceita, nós, principalmente você, somos evitados por toda população.

         – Não pude resistir. – Respondeu dando de ombros – Sabe que adoro ver o pavor acorrentando as pessoas e fazendo-as tremer nas bases. Isso sem falar dos gritos e caretas. – Virou-se para a porta cujo vão me servia de "olho mágico" – Temos uma ratinha perdida aqui, que pena. – Andou até onde eu me encontrava e abriu a porta, revelando uma Lilian paralisada de medo – De longe a melhor reação. Geralmente temos que lidar com pessoas histéricas que não sabem se divertir. – Ela chegou seu rosto bem próximo do meu e sussurrou – Você teme a Morte, Lilian Courage?

          Nesse momento, eu saí de meu transe e me afastei. Em seguida, eu fiz o que consegui fazer no momento, dei as costas àquela cena e corri. Corri como se minha vida dependesse disso. E dependia. Foi como um filme ou uma série de fotografias: Corri. Corri sem rumo. Fugi para não morrer. Ouvi uma risada fria. Acelerei. Ouvi gritos indignados me chamando de volta. Fugi ainda mais rápido.

         – Espere, ratinha! – Ouvi Mirana gritar atrás de mim, com divertimento óbvio, apesar da ponta de receio em sua voz. Tudo que eu sentia se resumia a isso: Medo, horror, nojo. E um forte desejo de me salvar. Corri até uma das janelas que estava aberta, a porta ficava muito longe e provavelmente estaria trancada, e me joguei. Um pequeno erro de cálculo, ela não estava aberta, então eu estilhacei o vidro, cujos pedaços entraram em minha carne. Olhei para trás, mas logo me levantei, pois havia caído de joelhos, e comecei a correr com desespero até minha casa. A última coisa que vi, antes de uma rajada de vento jogar folha secas contra a mansão em abundância, foram dois olhos de gato. Olhos verdes.

         Corri, com o corpo sangrando e sujando minhas roupas, os chinelos já perdidos em algum lugar daquela estrada, o coração na boca. Rezava para que ninguém me visse, pois meu estado era horrível. Logo avistei minha casa. Entrei em meu refúgio e me deparei com uma cena aterrorizante, pelo menos, no momento. Havia um gato negro de pelúcia em cima do sofá, junto de um pequeno bilhete com os dizeres:

         "Lilian, caso volte para casa, este é seu presente pela nota dez de semana passada. Fui viajar com seu pai, não me espere. Volto daqui a quinze dias. Você sabe o que fazer. Não fique vagando por aí durante a noite e não vá à antiga mansão dos Bloodmoon. Beijos, queijos e mortadelas, mamãe".

         Não entendi essa última frase, mas na hora o que eu mais queira era tomar um banho e dormir, e logo meus desejos foram atendidos. No dia seguinte, com roupas largas para esconder os curativos e ataduras, fui à escola e não vi Anne, ela havia faltado? A professora Sílvia fez a chamada, mas o nome de Anne não foi citado em momento algum. Estranhando muito o fato, apesar de ser um alívio não ver aquele monstro novamente, eu resolvi perguntar sobre Anne para os outros. Ninguém conhecia alguma Anne. Quando perguntei sobre os Bloodmoon, todos me olharam como se fosse louca e disseram:

         – Lilian, os Bloodmoon deixaram de existir já faz sete séculos.


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Notas finais do capítulo

Melhorou um pouco? Ah, digo e repito: Talvez, se eu receber algum comentário, eu conte a lenda dos Bloodmoon