Teoria Do Romance Literário escrita por Mayumi Sato


Capítulo 3
03. Enredo


Notas iniciais do capítulo

"- Você não se sente embaraçado em falar sobre a sua hipotética atração por um personagem masculino bem mais velho do que você?"



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02.

– Enredo –

Madeleine Williams não se considerava uma especialista em assuntos amorosos e tinha uma experiência limitada nessa área, mas mesmo ela conseguia noticiar que havia qualquer coisa suspeita nas visitas do cliente “dos-finais-de-semana”.

O cliente “dos-finais-de-semana”, como o próprio apelido delatava, era um freguês que recentemente se tornara assíduo e cujas visitas sempre aconteciam nos sábados e domingos, com exceção a um único dia em que ele veio na segunda. Após perguntar nesse dia “Não havia outro garçom por aqui?” em uma voz nitidamente ansiosa e receber a resposta de que Alfred apenas trabalhava ali aos sábados e domingos, ele não tornou a comparecer ao café fora desse cronograma.

A desconfiança de Madeleine iniciou-se naquela ocasião. Sim, era comum que fregueses tivessem seus dias favoritos de visita ao café e era muito corriqueiro que visitas ocorressem aos finais de semana, no entanto... Ela não podia desvencilhar-se do sentimento de que era um pouco estranho que aquele cliente nunca mais houvesse aparecido em dias da semana após aquela data.

Para acrescentar às circunstâncias incomuns, havia o fato de que ele sempre ficava na parte das mesas que era atendida pelo seu irmão mais velho. Por sempre, ela queria dizer sempre. Quando acontecia de todas as mesas sob a responsabilidade de Alfred estarem ocupadas, o cliente “dos-finais-de-semana” tinha o cuidado especial de aguardar em pé até que uma delas ficasse disponível. Nesses casos, se Madeleine vinha para dizer a ele que não era necessário esperar porque havia mesas disponíveis do outro lado, ele encolhia os ombros e franzia as sobrancelhas instintivamente, como se estivesse recebendo uma grande provocação, e acabava por dispensar cordialmente aquele conselho, dizendo que preferia aguardar um pouco. Ela parou de interferir após duas tentativas.

Somando as suas observações, não foi difícil para ela alcançar a conclusão de que não era exatamente o capuccino com waffles que estava atraindo semanalmente o freguês em questão. Entretanto, quando ela sugeriu essa hipótese ao maior envolvido nela, o seu irmão mais velho, ele simplesmente riu e a descartou. “Vamos lá, Maddie! Aquele velho ranzinza? Ele nunca disse outra coisa além do próprio pedido e reclamações desde que começou vir aqui! Você apenas não quer admitir que os clientes preferem a mim, não é, sua boba?”.

Ouvir aquilo da pessoa que mais estava em contato com o cliente “dos-finais-de-semana” reduziu parcialmente as suas desconfianças, porém não as eliminou. O seu irmão tinha uma reputação por não saber ler a atmosfera, comprovada pelo fim desastroso da maioria dos seus namoros. A opinião dele não era inteiramente confiável. Nada a faria deixar de pensar que havia uma curiosa situação desenrolando-se diante dos seus olhos discretos.

Afinal, ela ouviu seu irmão acrescentar, logo após rejeitar completamente a possibilidade que ela apontou, o pedido de que ela “parasse de chamá-lo de cliente dos-finais-de-semana, o nome dele era Arthur Kirkland e esse apelido provavelmente o deixaria mais mal-humorado do que ele já era”. Como ela indagou por que ele sabia o nome do cliente “dos-finais-de-semana”, ele respondeu que os dois haviam se apresentado um para o outro algumas semanas antes de Arthur voltar a visitá-los.

Semanas, êh?

Madeleine definitivamente não era uma especialista naquele tipo de assunto, contudo ela havia presenciado o suficiente para ter um palpite de que a sua rotina de trabalho em breve se tornaria bastante tumultuada.

Por enquanto, ela tentaria manter-se o mais distante possível daquela gradativa confusão.

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Arthur previra um evento grandioso na primeira vez em que retornou ao café. Ele esperara por caos, fortes emoções, a pompa inesgotável de um poema barroco. E tal como um eu-lírico barroco, ele não sabia se tudo transcorreria extremamente bem ou extremamente mal, contudo imaginava que os acontecimentos daquela tarde seriam intensos e avassaladores.

O senhor Kirkland pensou nos cenários mais otimistas – algo envolvendo uma troca de olhares apaixonados, um beijo repentino, aplausos, confetes e rosas caindo do teto, um champanhe sendo aberto e a música-tema de “O guarda-costas” ressoando no café – e nos mais pessimistas – uma cena catastrófica em que Alfred lançaria um olhar de desprezo mortal, diria que ele perdesse suas esperanças, a terra tremeria, uma luz lampejaria e Arthur Kirkland cairia sem sentidos. Ele considerara, inclusive, o cenário melancólico de entrar no café e se desiludir ao perceber que o Alfred por quem estava fascinado era um Alfred intangível que existia somente em suas fantasias. Entretanto, ele sequer cogitou naquele que realmente ocorreu.

Por fim, no grande dia, transcorridos os vários minutos que passou na porta, reunindo coragem para entrar com o coração pulsando tanto que ele podia senti-lo em seu pescoço, Arthur finalmente conseguiu atravessá-la e encarou o seu futuro...!

Céus. Como era monótono o seu futuro.

A primeira descoberta de Arthur Kirkland foi a de que Alfred, o garçom, era inegavelmente um indivíduo mais atraente do que a média. O físico dele se destacava mesmo no uniforme de mangas compridas dos funcionários do café. Ele tinha um rosto agradável e um sorriso encantador. O cabelo dele tinha uma aparência bagunçada que era um tanto charmosa nele. O rapaz tinha suas vantagens físicas e elas eram excessivamente óbvias. No entanto, ele não possuía os olhos azuis como “opalas puras perdidas na escuridão” como o Mr. Morland, não possuía o andar decidido e imponente do Mr. Morland nem a aparência impecável do Mr. Morland.

Alfred não era tão atraente quanto Arthur esperava nem tão pouco atraente para desencantá-lo. Estranho.

Como resultado, Arthur Kirkland ficou confuso. Muito confuso. Como todo protagonista teria o direito de ficar. Aristóteles já dizia que não deve haver um meio-termo na ficção. Era absurdo que o par de um protagonista tivesse suas qualidades positivas sem ser o “mais”, o “melhor” e o “único”. Amadis de Gaula não lutaria tanto por sua amada Oriana se em vez de a “Sem-Par” ela fosse a “bela-porém-comparável-a-outras-damas”!

O reencontro entre eles, o possível evento do século, não decorreu como o previsto.

Não houve rosas, não houve trovões, apenas uma tênue manifestação de surpresa da parte de Alfred correspondida com uma sutil demonstração de arrependimento e vergonha por seu comportamento anterior da parte de Arthur.

Encerrada essa comunicação visual na mesa do W.H, houve um rápido momento de silêncio desconfortável entre os dois, findado pela questão do garçom se Arthur faria ou não seu pedido.

Quinze minutos depois, o senhor Kirkland obteve um capuccino acompanhado por waffles e pela chocante realização de que derrubá-los sobre o seu colo seria o evento mais agitado que poderia acontecer naquela tarde. Retirando-o de um estado catatônico, o garçom sorriu e perguntou se ele queria logo a conta. Arthur estava tão perplexo que apenas assentiu com a cabeça.

Dez minutos depois, a conta foi recebida, paga e essa cena foi encerrada.

Os sentimentos de Arthur saindo do Wuthering Heights foram os mesmos de um homem que encontra um portal para um universo alternativo e acaba parando na própria sala ao atravessá-lo.

Confusão, frustração e certo desapontamento.

Ele honestamente não sabia se deveria ficar exultante ou miserável com os acontecimentos anteriores. Que diabos. Ele não havia se preparado para aquilo! Onde estava a emoção? Onde estava o romance que o seu ex-editor estúpido jurava que existia em toda parte? Ele havia retornado corajosamente para o café onde sua vida se transformaria por completo e como resultado ele tão somente conseguira a constatação de que às vezes o desfecho mais tedioso é o menos esperado.

Definitivamente teria sido melhor se a sua decepção houvesse sido mais profunda e impactante. Ele teria conseguido superá-la com algumas doses de rum, passando a responsabilidade pelo desastre ao garçom e o insultando com todas as múltiplas possibilidades vocabulares permitidas pela sua nacionalidade inglesa, como era tradicional.

Em vez disso, seus pensamentos passaram a revezar-se entre “Eu não quero mais retornar àquele maldito, estúpido café idiota!” e “Eu preciso voltar para aquele café.”. Alfred – era realmente esse o nome do cretino, ele o conferiu no crachá SEM ENCARAR O PEITO DELE FIXAMENTE – era tão... tão apelativo, digamos assim. Ele não era um perfeito herói romântico, claro, porém dentro dos padrões da triste e dura realidade, ele se destacava com méritos. Considerando-se os padrões do próprio Arthur era mais do que apropriado compará-lo a um Apolo ou Dionísio como ele fizera antes. Desde que se divorciara, Arthur Kirkland saíra com o professor de filosofia que dormia durante os seus encontros, diálogos e no meio do sexo, com o agrônomo que não cessava de comentar animadamente sobre mil formas de melhorar a produção de safras de tomate e com um alemão que até seria uma companhia divertida se não o fizesse acordar com ressacas todas as manhãs e tivesse sentimentos mal resolvidos por um antigo colega de faculdade de quem ele não parava de falar. Ele mantinha contato com os três, pois ninguém pode prever quando será um bom momento para uma noite de sexo casual, mas não eram conquistas das quais ele poderia se gabar.

Alfred, por sua vez, tinha um grande, enorme, colossal potencial para se tornar um amante invejável. Ele era simpático, bem-humorado e muito charmoso ao seu próprio modo. Não era à toa que ele era tão querido pelos seus demais fregueses.

Sim, por esses motivos Alfred F. Jones era provavelmente um excelente parceiro. O fato de que Arthur não conseguia parar de pensar em como os músculos dele deveriam se mover durante o sexo era somente um extra.

Mas não é como se o nosso amargo e orgulhoso personagem pudesse dizer para si mesmo “Alfred F. Jones não está interessado em mim, contudo eu estou interessado por ele e irei persegui-lo semanalmente, tentando chamar a sua atenção”. Certo, certo, ele se empolgou um pouco com outros assuntos no meio do caminho, no entanto conquistar o garçom nunca havia sido o seu objetivo principal ao ir para aquele café! O foco dele havia dado um pequeeeno desvio. A situação estava sob controle novamente.

Que importava se continuar a ir atrás dele seria deveras patético! Não seria deprimente ou vergonhoso retornar ao Wuthering Heights. Oras, Arthur Kirkland não estaria indo lá especificamente pelo Alfred. Ele estaria indo lá pelo Mr. Morland. Ele não poderia perder a maior fonte de inspiração para um dos personagens cuja personalidade lhe dava tanto trabalho! Não havia outro jeito. Arthur teria que continuar freqüentando o pequeno café do seu bairro.

E caso Alfred acabasse colocando os seus olhos brilhantes de um tom azul comum no cliente estrangeiro, intelectual e misterioso após vários dias de encontros casuais, não seria um adicional maravilhoso?

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Nós poderíamos passar páginas e páginas descrevendo detalhadamente os dias de visita ao café de Arthur Kirkland com todas as suas esperanças frustradas, lampejos de inspiração e nervosismo constante. No lugar desse repetitivo histórico masoquista, saltemos para aquela tarde em que Madeleine Williams conversou com seu irmão sobre suas suspeitas sobre o cliente “dos-finais-de-semana”.

Naquela tarde fria, encoberta por uma frágil névoa de início de inverno, Arthur Kirkland compareceu muito cedo ao W.H como se não quisesse deixar quaisquer dúvidas de que seu comportamento era suspeito. Bom, ele mesmo sabia que seu comportamento poderia ser visto como suspeito. No entanto, uma vez que ele havia passado muitas, muitas vezes por suspenses terríveis nas últimas seis semanas, martirizando-se com a possibilidade de que Alfred percebesse sua atenção antes que ele o conquistasse, esses sentimentos de agonia tornaram-se uma rotina e pararam de incomodá-lo.

Nas primeiras semanas, ele esteve em alerta. Ansioso e inquieto. Alfred não podia olhar para perto de sua mesa que ele já ficava elétrico como um esquilo percebendo uma ameaça e começava a planejar detalhadamente a conversa que eles teriam, apenas para ser frustrado com gritos alegres como “Senhora Braginsky, eu estou indo atendê-la!”. Droga.

No domingo da terceira semana, a ebulição interior de Arthur começou a se dissipar. Naquele ponto, estava mais do que claro: não ocorreria nada entre ele e Alfred. Ele havia usado as suas melhores táticas... Os sorrisos sem motivo, os olhares penetrantes, o clássico ajeitar de gravata sensual... Resultado zero. Alfred ria do seu comportamento, dizia que ele era um tanto estranho – “Não em um mau sentido! Você apenas é meio estranho! Assim como é estranho que existam onitorrincos! Digo, que tipo de mamífero tem um bico, cara? Esse tipo de estranheza!”- e perguntava se deveria trazer logo os waffles e o capuccino ou se o senhor Kirkland queria o cardápio. Não era um grande avanço, ele sabia muito bem.

Arthur, com seu caráter mais acomodado do que determinado, aos poucos se conformou com aquela nova falha em sua vida amorosa, acostumando-se com aquelas visitas e começando a transformá-las em uma experiência puramente profissional. Havia um toque de apreciação na maneira como ele olhava para a pessoa que auxiliava indiretamente a construção de seu personagem, todavia a maior parte de seus olhares passou a ser dirigida ao Mr. Morland.

Por fim, naquela sexta semana anteriormente mencionada, as suas emoções estavam tranqüilas e o seu intento de mudar isso era praticamente nulo. Em seu estado de serenidade e indiferença pelos seus infortúnios amorosos, Arthur Kirkland chegou a trazer um livro consigo e acomodar-se em uma mesa para lê-lo, desprovido de outro objetivo senão esse. Ele estava no café por mera rotina.

O seu romance literário não estava na mesma situação de abandono que o real romance literário dessa estória, porém como Arthur estava à espera de uma revisão do seu último rascunho, ele não podia continuar sua estória antes de recebê-la. Sua editora foi consultada para aconselhar-lhe se deveria fazer com que o Mr. Morland se encontrasse com Emily antes ou depois do casamento da irmã mais velha dele, uma decisão que definiria o conteúdo completo do sexto capítulo. Entretanto, ela não havia retornado seu e-mail até aquele momento.

Era hora de retornar a leitura dos clássicos. Um pouco de Vinte mil léguas submarinas seria uma boa distração. Ele pretendia avançar sua leitura em pelo menos três capítulos, tendo em vista que muito em breve ele estaria ocupado novamente.

Julio Verne. Arthur não tinha muita experiência com ele. O nosso protagonista sempre foi um companheiro de romances psicológicos e as estórias daquele autor soavam um pouco bobas e tediosas se comparadas a suas outras leituras. A volta ao mundo em oitenta dias? Vinte mil léguas submarinas? Viagem ao centro da Terra? Era espantoso como aquele escritor gostava de viagens. Pelo visto, ele não conseguia escrever uma estória em que os personagens ficassem parados! Como um autor e leitor que valorizava a introspecção, Arthur não poderia dizer que essas jornadas lhe parecessem apelativas.

A despeito desse preconceito, ele decidiu fazer uma tentativa com Vinte mil léguas submarinas. O Capitão Nemo era uma figura clássica da literatura e ele tinha algum interesse em saber o porquê disso. Esse interesse era atiçado por uma curiosidade que formigava dentro de si. Arthur não sabia nada de Vinte mil léguas submarinas ou de Julio Verne, com exceção à presença do capitão Nemo e de um submarino no primeiro, e da presença de um gosto por viagens estranhas no segundo. Eram alguns dos poucos livros e autores no cânone ocidental sobre os quais ele não sabia praticamente nada e a rara sensação de estar em contato com algo literário completamente novo e completamente antigo, simultaneamente, era muito estimulante para ele.

Se Arthur já estava satisfeito com essa condição exterior à obra, ele ficou absolutamente encantado ao ler os primeiros capítulos do livro. Ele não contava que o senhor Verne tivesse uma escrita tão ágil e agradável ou um senso de humor tão contido e perspicaz. Em poucas páginas, ele sentiu-se envolvido com os personagens e com a estória e, sendo menos orgulhoso tratando-se de literatura, reconheceu logo que havia feito um erro de julgamento. Julio Verne era um ótimo autor. Arthur Kirkland estava verdadeiramente curioso quanto o desfecho da trama e absorto na cena em que o monstro marinho misterioso era encontrado e os marinheiros lutavam para combatê-lo, mas...

– Julio Verne, huh?

Ele não esperava essa interrupção e levantou seus olhos de imediato em uma reação instintiva. Eles piscaram atordoadamente.

Deparando-se com a pessoa que lhe fez a questão, ele conseguiu ficar ainda mais abismado. Afinal, outra coisa que ele não esperava era que Alfred F. Jones fosse a pessoa a fazer essa pergunta a ele. Especificamente essa pergunta.

Ele insistiu em piscar seus olhos, dessa vez com mais força, como se estivesse forçando-se a sair de um possível transe. No entanto, quando ele os reabriu, Alfred F. Jones ainda permanecia ali. Óculos arranhados, cabelos um tanto bagunçados, um rosto feliz e jovial emitindo o calor delicado de uma manhã de verão. A poucos palmos de distância de Arthur Kirkland.

– Eu não sabia que você curtia Julio Verne. – Alfred sorriu animadamente e continuou a falar antes que Arthur pudesse esboçar uma resposta - Ele é um dos meus escritores preferidos, sabe. Qual dos livros dele é o seu favorito?

Várias informações e possibilidades de resposta voaram desordenadamente pela mente de Arthur Kirkland, mas ele estava de tal modo despreparado para aquela aproximação que acabou simplesmente dizendo aquela que lhe pareceu mais natural.

– Para ser franco, esse é o meu primeiro contato com as obras dele. – ele admitiu, impressionado com a própria espontaneidade diante de alguém que ele havia praticamente venerado por semanas, antes de convencer-se que a interação entre eles nunca passaria da cordialidade entre garçom e cliente.

Que cena estranha. Arthur Kirkland estava calmo e confortável em sua cadeira e Alfred F. Jones estava tão, tão animado que parecia prestes a dar pulinhos. Essa inversão de suas posições chegava a parecer bizarra ou mesmo irreal. Aquilo... Aquilo estava seriamente acontecendo?

– Você deveria ler A volta ao mundo em oitenta dias. – Alfred declarou com o aspecto cintilante de um fã ardente - É um livro totalmente incrível, cara. Nem sei dizer quantas vezes eu reli aquilo. A Ilha Misteriosa também é super-legal. E ela possui um reaparecimento do Capitão Nemo, o que é mais incrível ainda.

– Oh. Hm. – Arthur franziu suas sobrancelhas, espantado com aquele nível de entusiasmo e confuso com aquele diálogo como um todo. - Eu seguirei o seu conselho. – ele declarou por fim, não sabendo bem o que deveria dizer e hesitando se deveria continuar aquele assunto ou não.

Ele teve a alegre descoberta de saber que não precisava elaborar nada para dizer, pois Alfred estava ansioso e mais do que ávido em fazer perguntas simples a ele.

– Quem é o seu personagem preferido até agora?

– O Conseil. – Arthur respondeu, sendo novamente honesto.

– Sério?! – Alfred arqueou suas sobrancelhas e deu um sorriso de surpresa e estranhamento - Eu não esperava essa! Ele é tão sem graça. Eu podia apostar que você gostaria mais do Capitão Nemo.

– Talvez a sua aposta não esteja perdida ainda. – Arthur agitou seu rosto para os lados suavemente - Eu não cheguei à parte em que o Capitão Nemo aparece e devo reconhecer que foi esse o personagem responsável por me atrair a este livro. Por enquanto, eu gosto mais do Conseil, pois o comportamento excessivamente subserviente e apático dele é bastante engraçado... – nesse instante, um pequeno sorriso surgiu candidamente em seus lábios junto a um pensamento - mas deixe-me adivinhar. O seu personagem preferido é o Pierre.

– Score! Como você acertou?

– Bem, não se sinta ofendido, mas um personagem que recebe um convite inesperado para caçar um monstro marinho desconhecido e decide em três segundos que fará isso, decididamente, parece com você.

– Aventureiro e heróico? – Alfred moveu suas sobrancelhas galantemente.

– Precipitado e impulsivo. – Arthur corrigiu, fazendo um esforço consciente para evitar um corar - É chocante que ele tenha quarenta anos.

– E desde quando você sabe tanto do meu comportamento, senhor Kirkland? – Alfred perguntou com suas mãos colocadas seguramente nos quadris e Arthur não perdeu o tom provocativo de seu questionamento.

Sentindo-se apanhado em uma armadilha, o primeiro impulso de nosso protagonista foi o de murmurar um termo de baixo calão. Será que Alfred havia descoberto que...? Não, era impossível. Não havia como ele saber que Arthur Kirkland estava o espionando para utilizá-lo como referência na construção de um personagem para um romance. Ele era distraído demais para chegar a uma conclusão precisa como essa. Urgh. Poderia ser pior. Ele podia ter noticiado somente a atenção de Arthur e ter concluído que Arthur era um stalker ou um admirador secreto. Será que era necessário dar uma justificativa para evitar esse engan...?

Antes que o pânico o tomasse, porém, um assomo de racionalidade o encobriu como a sombra de uma árvore frondosa.

“Eu estou sendo ridículo. Ele está brincando comigo.”

Essa foi a conclusão e o alívio de Arthur. E pensar que, por um instante, ele quase agiu como a personagem de um romance, esquecendo-se de que o Alfred não era um senhor Morland. Que erro seria pensar assim. Se qualquer outra pessoa fizesse uma brincadeira similar com Arthur, ele teria uma resposta mordaz à altura para retorqui-lo, então por que agir como se cada detalhe fosse bem mais dramático e romântico tratando-se dele?

Mudando de atitude, Arthur deu um sorriso implicante e respondeu o observando por cima do livro:

– Provavelmente desde que você aprendeu o suficiente sobre o meu comportamento para presumir que eu gostaria mais do Capitão Nemo. – ele falou carregado de uma grande dose de satisfação pessoal com a sua réplica.

A resposta imediata de Alfred foi um titubear surpreso seguido por uma gargalhada repentina que soaria um pouco desconfortável e constrangida, não estivesse Arthur determinado a ser razoável. Ora, vamos, Arthur Kirkland. Que conveniente que você pense que a gargalhada dele está soando constrangida e nervosa. Não tente alimentar o seu ego e os seus sentimentos com a sua imaginação. Diferente da literatura, a vida real não permite múltiplas interpretações corretas para uma cena. Existe a realidade e o engano.

– Ah, sim! É mesmo! Há, há, há! – ele exclamou ainda rindo de uma maneira que parecia nervosa, contudo não poderia ser nervosa aos olhos do nosso protagonista porque isso seria conveniente demais, e ele preferia sair do perfil do herói romântico e enxergar-se como um personagem realista propenso a um amargo destino amoroso. De qualquer modo, nervoso ou não, Alfred subitamente foi tomado de uma significativa vontade de alterar o curso da conversa. - Mudando um pouco de assunto, em que parte do livro você está?

Curiosamente, essa foi a pergunta certa naquele contexto. Ela foi um pouco abrupta, verdade, mas Arthur nunca poderia reclamar de uma questão sobre livros. Era um tema que ele apreciava imensamente e um campo no qual ele se sentia confiante o bastante para expressar suas opiniões.

Ele optou por ignorar momentaneamente suas reflexões sentimentais e concentrar-se em falar sobre o livro. Aquele era um livro muito bom, afinal.

– Hm. Na parte em que o monstro marinho finalmente é encontrado pelos marinheiros... – ele respondeu, pondo uma mão abaixo do queixo e franzindo as sobrancelhas em concentração, enquanto analisava suas memórias - Como o Capitão Nemo não apareceu até o momento, eu suponho que eles perderão para o monstro e o governo usará o Capitão Nemo e seu submarino como um recurso secreto para derrotá-lo.

Uma curva enigmática surgiu em um dos cantos da boca de Alfred. Os olhos dele adquiriram o brilho de uma diversão secreta como se ele soubesse algo que Arthur não sabia e estivesse se contendo ao máximo para não contar.

– Eu não sou o tipo de cara que dá spoilers, Kirkland, mas eu acho que você vai se divertir com o que verá no futuro. - ele assegurou e a sua exagerada tentativa de fazer sua frase soar misteriosa quase provocou um pequeno riso em Arthur. Quase.

Arthur estava prestes a comentar com certo divertimento que Alfred não deveria agir como se tivesse acesso a um segredo milenar por saber o desfecho de um livro inegavelmente popular, quando uma voz feminina e impaciente chamou a atenção de ambos.

– Alfred, duas mesas estão pedindo por você, seu idiota! – gritou a senhorita Madeleine do outro lado do cômodo com toda a amabilidade que os laços familiares permitem.

Foi nesse instante que Arthur noticiou as duas mesas ao seu redor com mãos erguidas. E pelo modo como as sobrancelhas de Alfred quase saltaram do seu rosto, tornou-se óbvio que também era a primeira vez que ele notava esse movimento.

– Ok, ok! Eu estou indo! – ele respondeu apressado, organizando-se para voltar ao serviço desajeitadamente. Ele já havia dado as costas para sair, todavia de súbito voltou-se novamente para Arthur como se tivesse esquecido alguma coisa, acrescentando com um sorriso e com um piscar deveras charmoso - Tchau, senhor Kirkland! Nós nos vemos daqui a pouco!

Assim saiu de cena o nosso personagem.

Depois que pôde finalmente vislumbrar as costas de Alfred, o senhor Kirkland inspirou fundo e lentamente começou a absorver os últimos acontecimentos. Ele havia tido uma conversa com Alfred. Uma conversa divertida e agradável. Sobre livros.

Curioso. Não havia sido um diálogo emocionante, revelador ou excepcional. Ele não pensava que aquela conversa conduziria os dois a uma ardente paixão ou ao crescimento de raízes amorosas na terra úmida de seus corações. Ele não achou isso em momento algum. E justamente por essa despreocupação, ele conseguiu interagir normalmente com Alfred pela primeira vez e entreter-se genuinamente em seu diálogo em vez de preocupar-se sobre como cada ação sua seria interpretada ou se o Jones mostraria pistas de interesse correspondente quanto a ele.

Falar com Alfred foi... aprazível? O resultado foi um tipo de conversa que ele gostaria de repetir e que, no entanto, não atormentaria as suas noites de sono com devaneios. Hm...

Oh. Então era esse o melhor jeito de se proceder em relação a Alfred F. Jones. Deixar de idealizá-lo, deixar de querê-lo, deixar de afastá-lo, deixar de responsabilizá-lo pelas suas inseguranças e solidão e conviver normalmente com ele. Uma amizade e uma inspiração eram ótimas recompensas para uma relação casual como a deles.

No fim, se Alfred em algum momento o interpretasse mal, qual seria o problema nisso? Depois de ter interagido com Alfred e experimentado aquilo que ele via com tanto suspense em suas expectativas, Arthur finalmente superou o último elemento que tornava Alfred F. Jones um ser tão idealizado e inalcançável. O seu medo da rejeição.

Embora retirada de um contexto inteiramente diferente, Arthur não pôde deixar de se recordar alegremente da declaração de Conseil de que se parar de arregalar os olhos, você verá melhor. De fato.

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Logo após a constatação de Arthur de que ele havia sido um tanto, apenas um tanto drástico ao colocar todas as suas frustrações e expectativas na figura de um garçom, o qual era tão somente um indivíduo normal com uma boa aparência e personalidade, Alfred F. Jones, o miserável, conseguiu surpreendê-lo e bagunçá-lo completamente com um único movimento terrível.

Alfred passou a aproximar-se dele.

No início, essa aproximação foi sutil e espontânea. Na tarde seguinte à conversa deles sobre o Julio Verne, ele aparentemente reparou que Arthur estava mais avançado na leitura do romance de ficção de científica. Por esse motivo, quando teve uma oportunidade, ele indagou, colocando as suas mãos sobre a mesa, com um enorme sorriso:

– O que você está achando do capitão Nemo?

Como ele parecia verdadeiramente animado e repleto de curiosidade com a mera perspectiva de saber mais sobre a experiência de leitura do seu cliente, o senhor Kirkland não conseguiu realmente ficar aborrecido com a violação de seu espaço ou com a vibração de sua mesa com o impacto das palmas de Alfred. Ele não estava acostumado com esse tipo de atenção. Houve espaço apenas para contentamento dentro de si.

– Você! – Arthur exclamou, fingindo indignação e não conseguindo evitar um sorriso de diversão e perplexidade, no entanto - Como você ousou fazer aquele ar misterioso quando sabia que a minha teoria estava completamente errada? Eu sequer estipulava que o monstro já era o submarino!

– É, eu reparei. Mas não era como se eu pudesse dizer a verdade para você. – Alfred deu de ombros e agitou seu rosto para os lados - Eu detesto dar spoilers. Além disso, eu achei um tanto bonitinho ver como você realmente não sabia nada sobre a estória e precisava recorrer a teorias.

Arthur corou ligeiramente, espantado com aquele comentário que era tão parecido com um elogio. Parecido e nada mais. “Bonitinho”. Humpf. Era visível que o Jones tencionava implicar com ele, dizendo linhas assim, contudo Arthur Kirkland nunca ouvira esse adjetivo específico sendo dirigido a ele e escutá-lo foi um susto inacreditavelmente lisonjeiro.

– Em resposta à sua questão, devo dizer que eu adorei o capitão Nemo. – Arthur comentou com uma calculada naturalidade, decidido a ignorar a parte embaraçosa dos argumentos de Alfred. Por sorte, ele descobriu certa facilidade em fazê-lo ao tratar de um tema que ele adorava - Um solitário que aprecia o mar, os livros e sabe falar várias línguas? Eu não poderia estar mais deslumbrado.

– Não é como se eu não entendesse do que você está falando. Eu gosto muito mais do Pierre porque cientistas aventureiros são o máximo, mas o capitão Nemo tem seu charme. – Alfred declarou com uma sombra inexplicável de malícia surgindo em seu semblante risonho - Digo, caramba, se eu estivesse no submarino dele, as minhas calças iriam para o chão em um segundo.

O queixo de Arthur também foi para o chão em um segundo.

Certo. Alfred F. Jones estava falando de uma atração hipotética por um personagem masculino fictício e isso não era um indício de orientação sexual ou algo do gênero. Também não era como se Alfred estivesse dizendo “Ei, Arthur! Eu sou gay. Além disso, eu acho você bonitinho, então que tal tentar sair comigo?”. Ou pelo menos, não era essa a tradução realizada por Arthur Kirkland.

De qualquer modo, Arthur ficou mais chocado com a inesperada natureza sexual da afirmação de Jones do que com o gênero do personagem em questão. Em todas aquelas semanas de visita e observação constante, ele nunca havia escutado Alfred fazer uma menção à sua sexualidade, então definitivamente não esperava escutá-la em uma conversa sobre um livro de ficção científica, tratando-se de um capitão velho e amargurado. Foi um golpe inesperado o qual trouxe instantaneamente memórias de algumas noites solitárias de imaginação que Arthur estava prestes a esquecer. Oh, droga.

– Você não se sente embaraçado em falar sobre a sua hipotética atração por um personagem masculino bem mais velho do que você? – ele perguntou com um riso forçado que não conseguiu disfarçar inteiramente o seu espanto, sendo forçado a colocar o seu rosto praticamente dentro do livro para ocultar a sua vermelhidão.

– Ela não é tão hipotética, sabe. – os cantos da boca de Alfred subiram.

– Por que você já teve suas aventuras sexuais com o Capitão Nemo? – Arthur ergueu uma sobrancelha, formando uma expressão desconfortável entre a ironia e a dúvida. Ele não fazia ideia do que esperar em resposta.

– Nah. Quem me dera. – ele riu, dando um relance para o teto como se a ideia lhe parecesse tão engraçada quanto improvável. - Não é tão hipotético porque eu me sinto atraído por homens mais velhos.

Huh...

– D-De qualquer modo, eu sinto um tanto de inveja da biblioteca do capitão Nemo. – Arthur Kirkland comentou muito vermelho. O seu olhar desviou-se para o lado por instinto.

O contexto da conversa não permitia ter certeza de que o Jones estava sendo honesto, tendo em conta que havia a possibilidade tangível de que ele estivesse o retrucando com sarcasmo. Era mais seguro ignorar a sua última linha. Aquela não era a melhor hora para se pensar na orientação sexual de Jones e muito menos na possibilidade de que ele gostasse de homens mais velhos.

– Doze mil livros? – Arthur continuou, alargando o seu sorriso e lutando contra os pequenos movimentos involuntários de seus traços que insistiam em formar uma expressão nervosa - Não é à toa que o Pierre concordou alegremente em abdicar à sua vida na superfície ao vê-los. Combinando-se a biblioteca com o quanto ele é naturalmente ingênuo e impulsivo, não foi exatamente um fenômeno fisgá-lo.

– Ou talvez ele também tivesse uma queda pelo Nemo.

“Oh, céus! Pare de falar desse assunto, seu grandessíssimo idiota!”

– Bom, não há teoria inteiramente descartável na literatura. – Arthur replicou, engolindo em seco o seu desconforto, e transparecendo certo profissionalismo em seu lugar - Uma vez, um crítico comentou sobre como o elevador que era o cenário de um dos meus contos retratava o atual ambiente sufocante de proximidade física e afastamento emocional das relações humanas, e eu juro que nunca havia pensado nisso, mas fez tanto sentido que eu acabei descobrindo um novo aspecto da minha própria obra.

–Ohh. Você é um escritor?

Pelo modo como sorriu, arqueou as sobrancelhas e inclinou seu rosto para o lado, Alfred F. Jones pareceu genuinamente surpreso e maravilhado com a descoberta. Seria uma reação bastante amável, não fosse a sua surpresa tão injustificável e consideravelmente revoltante para o nosso protagonista.

Não culpemos Arthur Kirkland – bem, não o culpemos agora – por sua indignação. Para uma pessoa que conhecia os gestos, o andar, o perfume e as manias de alguém, era praticamente uma injúria descobrir que o outro não sabia nem ao menos o elementar sobre ele.

– O que você achou que eu estivesse fazendo com um caderno nessas semanas? – ele questionou exasperado, fitando Alfred de maneira acusatória.

Alfred F. Jones reagiu a isso com inesperado nervosismo. Os seus ombros ficaram tensos e o seu rosto ficou confuso e um pouco perturbado.

– Eu não havia reparado... – a voz dele soou um pouco mais baixa do que o habitual e ao aumentar soou bem mais aguda do que o costume - Eu não notei que você estava com um caderno. Vamos lá! Eu tenho outros clientes para servir! – ele começou a rir. Aquele mesmo riso que parecia nervoso, mas não poderia ser nervoso. - Eu não posso ficar encarando você o tempo todo!

Era verdade. Alfred não podia dedicar a Arthur a mesma atenção que ele recebia. Por mais de uma razão. Pois bem, aquela era uma defesa legítima e razoável, o que não impedia Arthur de sentir-se um pouco aborrecido com ela. A despeito de intenções ou emoções, era sempre chato perder um embate ou descobrir que a balança das atenções entre duas pessoas estava desequilibrada.

– N-Não é como se eu quisesse que você fizesse isso, seu prepotente. – ele replicou rispidamente, deixando seu rosto pesado e quente cair um pouco para o lado.

– Claro que não! – Alfred praticamente cantarolou e o modo como ele alongou o “a” não sugeria que ele estivesse muito convencido disso. Cretino egocêntrico. - Ei. Em que parte do livro, você está agora?

– O capitão Nemo está explicando o funcionamento do submarino para o Pierre. – respondeu o senhor Kirkland erguendo sua postura com alegria e conforto em retornar para o campo dos livros. Ele tinha um domínio vergonhoso em outros campos, pelo visto. - Eu estou deveras impressionado com o quanto o autor adiantou-se ao seu tempo quanto a esses aspectos tecnológicos.

– Não é? Julio Verne é totalmente incrível nessas coisas científicas, cara. – os olhos de Alfred literalmente brilharam com a menção a essa habilidade do autor. - Vinte mil léguas submarinas foi lançado nove anos antes do lançamento da primeira lâmpada elétrica comercializável.

Arthur não pôde conter um pequeno riso, abafado somente pela palma de sua mão. Era deveras amável e um tanto engraçado ver como Alfred era aficcionado por Julio Verne. O pobre garoto visivelmente não compreendeu o que estava o entretendo tanto, considerando-se que ele mostrou pela primeira vez uma expressão vulnerável e confusa.

– O... O que foi?

– Você realmente adora esse autor! – Arthur exclamou impressionado. Em seguida, ele acrescentou sorrindo com uma terna implicância - Se ele estivesse vivo, eu aposto que você seria um daqueles fãs que passam o dia inteiro em uma livraria para receber um autografo.

– Um dia inteiro? O que você pensa de mim, Arthur? – Alfred cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha, fingindo um ar ofendido - Eu passaria a semana inteira lá. – ele corrigiu, sorrindo amplamente.

– Alfred! Olhe para a mesa oito, seu irresponsável!

O desfecho dessa cena não foi exatamente previsto por nosso protagonista. Em vez de defrontar-se com um agitado Alfred pedindo desculpas à sua irmã e apressando-se para voltar ao trabalho, ele deparou-se com uma rara e inexplicável cena de impaciência do garçom.

– Você não precisa ficar tão brava, Maddie! – o Jones gritou em resposta com uma indignação bastante expressiva em seu tom, feições e gestos. Arthur ficou estupefato com aquilo porque o usualmente animado senhor Morland nunca ficaria tão impaciente com uma mera interrupção. Será que havia uma lacuna na sua interpretação ou nos seus conhecimentos do contexto? Ou será que o Jones era simplesmente o tipo de pessoa que ficava chateada ao ser interrompida ao falar de seus interesses? Era a única hipótese aceitável para Arthur. - Você só está descontando a sua raiva em mim porque o seu namoro com o filho da senhora Braginsky finalmente acabou!

Bom, a julgar pela forma como ela deixou de cobrar o seu irmão, exclamou um “Cale a boca, seu idiota!” e apressou-se para a cozinha, a acusação recebida devia ser legítima.

Nossa. O garoto realmente gostava daquele livro.

– É aceitável que você revele detalhes sobre a vida pessoal da sua irmã no meio de um café? – Arthur perguntou de imediato, encarando a porta da cozinha com alguma apreensão. Ele era um cavalheiro e não se sentiria confortável em ignorar um comportamento rude de sua companhia.

Alfred apenas bufou e deu-lhe um olhar muito franco e direto:

– Você tem irmãos?

Aquela era a observação de uma pessoa que sabia exatamente como era a experiência de ter irmãos. Como alguém que também tinha tolerado bastante dessa experiência, Arthur Kirkland sentiu uma empatia instantânea ao reconhecê-lo e uma sensação de maior compreensão sobre a relação dele com Madeleine.

– Ah, sim. Um dos meus irmãos já mandou mensagens para um dos meus... interesses amorosos, fingindo que era eu e conseguiu traumatizá-lo tanto que eu demorei três dias para convencê-lo de que era uma brincadeira. – ele recordou-se, suspirando com as pálpebras cerradas, e congratulando-se internamente por ter conseguido ocultar a tempo o gênero do seu interesse amoroso. - Eu sei bem como essas relações fraternais funcionam.

– Nossa. – Alfred arregalou os olhos com notável diversão e espanto - Os seus irmãos conseguem ser piores do que eu.

– E eu sou o pior de todos. – Arthur declarou confiante, cruzando os braços e erguendo seu rosto com o ar de superioridade de um vilão contemplando seu inimigo destruído - Como vingança, eu troquei um DVD romântico que ele estava levando para assistir com a namorada por uma certa gravação que ele havia feito com a anterior.

– Você é horrível. – novamente o insulto de Jones tinha um tom de admiração calorosa irrefutável.

– O pior. – o senhor Kirkland inclinou-se para frente, dando um meio-sorriso orgulhosamente perverso.

De todos os momentos de silêncio entre eles, aquele foi o mais alegre e confortável. Houve uma amável troca de sorrisos ligeiramente travessos entre eles, comunicando sutilmente a origem de um sentimento de simpatia mútua, talvez acompanhado pelo início de uma nova amizade e...

– Alfred, a mesa oito!

– Eu estou indo! Eu estou indo!

Alguns dias seguiram-se com pequenos diálogos dessa natureza, cotidianamente interrompidos por gritos da senhorita Madeleine a qual estava precisando tolerar atrasos cada vez maiores de seu irmão. Alfred F. Jones adorava Julio Verne e, pelo visto, ele não tinha ninguém para conversar sobre os livros, considerando-se que Arthur não podia dar um relance para a capa de Vinte mil léguas submarinas sem que o garçom aparecesse diante de si. Repleto de perguntas e de curiosidades a dizer sobre a estória.

Arthur Kirkland também tinha as suas paixões literárias, então não era como se ele não compreendesse os sentimentos de Alfred. Ele tantas vezes teve vontade de puxar a manga de uma senhora que lia Balzac no metrô e perguntar o que ela estava achando da obra ou qual era o seu personagem favorito. Ele quase deu uma cotovelada não-tão-acidental em um rapaz na fila de um banco apenas para iniciar uma conversa sobre o Ana Karenina em suas mãos. Ele tinha ciência de que faria o mesmo, estando na situação de Alfred, e não colocava muitos pensamentos sobre o que estava ocorrendo.

Humpf. Protagonistas.


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Notas finais do capítulo

Olá, adoráveis leitores!

Primeiramente, eu peço desculpas pelo meu imperdoável atraso. Imprevistos acontecem. Eu tenho diversas ocupações e uma saúde delicada, o que torna o meu ritmo de escrita bastante instável. Eu tentarei evitar anunciar que postarei algo, quando o trabalho não estiver cem por cento completo! Gomen. Gomen.-_-º

Esse provavelmente foi um dos capítulos mais difíceis de escrever e eu peço que vocês não sejam demasiadamente rigorosos com ele. Bom, apesar dos pesares, eu me diverti com ele e fiz o meu melhor! Vocês não fazem ideia do quanto essa estória é complexa e detalhadamente trabalhada.

Há DEZENAS de referências literárias nesse capítulo, então eu convido quem tiver paciência a ler minhas explicações:

* "A pompa inesgotável de um poema barroco". - Para aqueles que não sabem, o barroco foi um movimento literário no qual houve, digamos, um enorme exagero dramático tanto nas palavras quanto nas ideias. A linguagem podia ser bastante solene e difícil de ser entendida, pois o movimento se baseava no conceptismo - jogo de ideias - e no cultismo - um jogo de palavras, assim digamos. Os temas, de modo geral, eram também carregados de fortes emoções por serem centrados no drama humano da época.
* "Ele não sabia se tudo transcorreria extremamente bem ou extremamente mal". - Na verdade, as duas perspectivas do barroco eram pessimistas. O homem vivia em agonia porque ele estava começando a entrar em contato com o racionalismo e com o conhecimento científico, mas mantinha uma forte religiosidade, então ele começou a ter dúvidas sobre como deveria encarar a efemeridade de sua vida. Ele deveria entregar-se a prazeres tendo em conta que era possível que não houvesse nada após a morte? Ou seria melhor que ele não fizesse nada, considerando-se que ele poderia ser castigado por seus pecados após a sua morte? Eis o drama fundamental do barroco.
Essa parte, na verdade, encarregaria-se de apontar outra característica fundamental do barroco que seria o uso de contrastes. A dualidade "religião" x "razão" se expandiu em várias outras formas na arte como "luz" x "escuridão", "amor espiritual" x "amor carnal" e etc. O uso do adjunto adverbial "extremamente" também foi usado propositalmente para apontar os exageros já mencionados do barroco, o qual era bastante marcado pelo uso de hipérboles.
Há uma certa ironia no fato de que eu comparei o Arthur a um eu-lírico barroco, quando as duas possibilidades do homem barroco eram sombrias ~
*"Perdesse suas esperanças, a terra tremeria, uma luz lampejaria e Arthur Kirkland cairia sem sentidos" - Referências à Divina Comédia de Dante! Essa é a reação do personagem principal ao chegar no inferno, colocada praticamente com as palavras usadas no resumo que introduz o canto III. Além disso, o portão do inferno contém a mensagem "Deixai toda esperança, ó vós que entrais"! Muito amável.
* "Aristóteles dizia que não deve haver um meio-termo na ficção". É verdade, meus caros. Está na "Arte Poética" dele, um dos primeiros trabalhos do mundo sobre a literatura. Na opinião do velho Aristóteles, as tragédias deveriam enfatizar os bons aspectos dos personagens e as comédias deveriam enfatizar os maus aspectos, não podendo haver um meio-termo em nenhum dos casos. É engraçado pensar que esse maniqueísmo é considerado como um defeito sério, atualmente!
* “Amadis de Gaula não lutaria tanto por sua amada Oriana se em vez de a 'Sem-Par' ela fosse a ‘bela-porém-comparável-a-outras-damas’!” – Referência à novela de cavalaria portuguesa "Amadis de Gaula" que conta a estória de um cavaleiro lutando para merecer a sua amada Oriana, chamada por ele de a Sem-Par (a despeito da cômica similaridade com “senpai”, isso significa a “Sem igual”)!
* “Nós poderíamos passar páginas e páginas descrevendo detalhadamente os dias de visita ao café de Arthur Kirkland com todas as suas esperanças frustradas, lampejos de inspiração e nervosismo constante.” – Referência indireta a uma parte em um dos livros da minha querida Jane Austen em que ela fala que poderia passar páginas e páginas falando sobre o sofrimento da personagem, mas que bastaria dizer que ela sofreu muito e que a situação foi muito chata, porém superável(não exatamente nessas palavras, mas com o mesmo sentido)! A metalinguagem da Jane Austen era épica.
* DEZ MIL REFERÊNCIAS À VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS QUE VOCÊS SOMENTE ENTENDERÃO, CASO LEIAM OS CAPÍTULOS INICIAIS DO LIVRO.

Bom, é isso! Eu agradeço pela paciência e compreensão de todos! Os seus comentários são maravilhosos e me motivam muito a continuar escrevendo essa estória! Eu espero que vocês tenham se entretido com ela e possam deixar mais reviews estimulantes, pois eles me deixam sinceramente feliz! Por favor, continuem a ler, apreciar e comentar esse trabalho!

Bai, bai!:3



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