Teoria Do Romance Literário escrita por Mayumi Sato


Capítulo 1
01. Prólogo


Notas iniciais do capítulo

"Bufando aborrecidamente, Arthur deu um último relance para as costas do garçom em mais uma falha tentativa de que os olhares dos dois se encontrassem, desistiu, inspirou e cerrou firmemente suas pálpebras, para tomar os vestígios de capuccino em sua xícara. Nesse exato instante, o impensável aconteceu.

O garçom o noticiou."



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01.

– O protagonista -


Arthur Kirkland, um homem que possuía um relacionamento difícil com a sua cozinha, preferia almoçar em lanchonetes e foi praticamente por acaso que ele escolheu fazer essa refeição em um café, naquela tarde.


Como é um fenômeno natural que o acaso seja o responsável pelo destino da maioria dos personagens principais do cinema e da literatura, esse será o início dessa estória.

Era uma fria e dourada tarde no início de novembro, quando Arthur, nosso desajeitado personagem principal, deixou que seu almoço fosse completamente consumido pelo fogo e ficasse em tal estado de carbonização que se tornou impossível reconhecer qual alimento ou matéria possivelmente terrestre havia originado aquilo.

Tendo em vista que esta é uma comédia romântica, estou certo de que vocês estão pensando em um desfecho interessante para essa cena. Teria esse incidente ativado o alarme de incêndio e atraído, para a residência de Arthur, um bombeiro que se tornaria o grande amor de sua vida? Chamas da paixão. Oh, esse enredo parece promissor. No entanto, lamento informar que o destino ainda não havia agido e que Arthur não poderia jamais se tornar um protagonista sem a sua influência.

A verdade é que o incidente de queimar ou estragar sua refeição a esse ponto era algo relativamente comum na rotina de Arthur Kirkland. Isso acontecia três ou quatro vezes por semana, devido à insistência de Arthur em aprender a cozinhar combinada com a sua completa inaptidão a fazê-lo. Concluindo que todos os homens recém-divorciados tinham essa dificuldade, ele continuava a tentar preparar suas refeições, ignorando prontamente o fato de que poucos homens recém-divorciados são forçados a desativar seu alarme de incêndio para não serem visitados pelos bombeiros semanalmente.

Curiosamente, apesar de insistir em suas tentativas de cozinhar, Arthur não era tão insistente em consumir aquilo que ele preparava. Quando suas experiências gastronômicas realmente não davam certo, em vez de degluti-las a qualquer custo por uma questão de orgulho, ele simplesmente resmungava uma ou duas palavras ofensivas do seu vasto vocabulário de injúrias britânicas, dava de ombros e se preparava para comer em um local próximo ao seu apartamento. Nem tudo ocorre conforme queremos, ele pensava, e ele já estava interessado em comer algo menos caseiro de qualquer forma, então não era como se ele tivesse colocado tanto empenho no preparo daquela refeição e não era como se ele precisasse consumi-la. Essas eram as desculpas que Arthur dizia para si mesmo, enquanto trajava seu casaco e se retirava de seu apartamento, deixando as janelas abertas para que a fumaça escapasse.

Arthur Kirkland gostava muito de batatas fritas e de sanduíches e ele tinha, portanto, uma inevitável queda por fast-foods. Essa queda não condizia com o seu perfil, o perfil de um homem sério e obsoleto que provavelmente deveria gostar de vinhos e de pratos com nomes longos e difíceis, mas era um dos elementos que moldavam sua rotina. Ele gostava de pratos rápidos, práticos e saborosos e, por conseqüência dessa preferência, estava bem familiarizado com as lanchonetes de sua vizinhança. Quem pagaria por um almoço em um restaurante, quando poderia comprar algo mais barato e apetitoso em um Mcdonalds? Essa seria uma escolha terrivelmente estúpida, a seu ver. Nesse caso, por que, no início de nossa estória, Arthur Kirkland não entrou em uma lanchonete ao queimar seu almoço, como ele sempre fazia? Que circunstância especial ocorreu naquela tarde? Para entendermos essa mudança, temos que ir um pouco mais a fundo na personalidade e no cotidiano de nosso protagonista.

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Arthur Kirkland era um escritor. Ele fora um advogado em um passado próximo, todavia esse detalhe é insignificante no presente. Ele era um escritor, agora. E ele tinha contos recém-publicados em uma revista de literatura e um prêmio literário para comprovar isso. A popularidade e o reconhecimento dos contos de Kirkland, ou melhor, do senhor "William Wilde", fizeram com que a editora da revista em que seus trabalhos foram publicados insistisse para que ele permitisse a produção de um livro com uma reunião de seus contos e que ele escrevesse um romance para ser publicado dentro de um ano.


Arthur Kirkland era um mero autor principiante, embora ele mesmo se visse como uma das poucas mentes notórias de sua geração, e havia riscos em apostar tanto nele. A editora, entretanto, estava disposta a assumi-los. Eles deveriam se aproveitar ao máximo da febre que os contos dele estavam sendo e da fama possivelmente temporária de seu nome para venderem e lucrarem mais e, bem, romances sempre foram mais lucrativos do que contos. Arthur talvez não fosse uma das poucas mentes notórias da sua geração, mas ele era um ótimo autor e ele certamente poderia se tornar um ótimo autor de best-sellers. Que diabos. Autores piores escreveram best-sellers.

No fim, esse foi um arranjo bom para as duas partes. Arthur Kirkland ficou bastante feliz com a proposta de ter um romance seu publicado, por ver o convite como um reconhecimento de suas habilidades como escritor, e a editora ficou bastante feliz em pensar no merchandising que teriam, anunciando o primeiro romance do conhecido escritor de contos românticos, William Wilde.

É um pouco triste informar que essa felicidade geral não durou muito.

Não, não. Ela não foi interrompida por uma fatalidade repentina. Arthur Kirkland teria se tornado um protagonista de imediato, caso uma tragédia pessoal houvesse ocorrido. O que houve, nesse caso? Pois bem. A rotina e a realidade entraram em ação, retirando todo o brilho que havia na perspectiva de Arthur quanto à sua nova realização como autor. William Wilde logo descobriu que escrever um romance - com uma estória longa e cuidadosamente estruturada - não era uma experiência tão espontânea e prazerosa quanto ele imaginava. Era cansativo e complicado arquitetar o enredo, mediar o comprimento dos capítulos, equilibrar o fluxo da estória e dos acontecimentos principais, lidar com mais personagens do que ele estava habituado.

Arthur era um escritor de contos curtos e introspectivos. Normalmente, as suas estórias eram algo como "X e Y são desconhecidos que trocam olhares em um elevador e desejam se conhecer melhor. Um oceano de questões emocionais se passa pela mente deles, mas o elevador chega ao andar de um deles, antes que eles possam interagir e eles nunca mais se encontram".

Um roteiro simples e conciso, um único cenário e apenas dois personagens: essas eram as condições ideais para o trabalho de Arthur. Ele sabia muito bem que seria praticamente impossível escrever um romance nesses moldes, embora ele não soubesse, até iniciar o seu, quantas complicações as suas necessárias mudanças de estilo trariam.

Para piorar sua situação, William Wilde descobriu também que escrever dentro de seu próprio prazo e de suas preferências, para eventualmente enviar seu texto a uma editora, era uma experiência completamente diferente de ter que escrever com um editor ao seu lado, exigindo que você seja rápido, eficaz e adaptável às preferências da editora. Afinal, um autor pode ser original, claro. Apenas não excessivamente original. "Nós não queremos espantar os leitores, queremos?".

Arthur teve dificuldades em se adaptar a rotina de um escritor com um contrato. Era mais cansativo e estressante do que ser um autor free-lance. É horrível ter alguém perguntando quantas páginas você escreveu a cada dia ou lendo o que você escreveu e dizendo diretamente "Mude esta e essa parte". Ele teve brigas tão grandes com o seu primeiro editor, Francis Bonnefoy, que a editora se viu obrigada a trocá-lo por sua irmã mais nova, Mona Bonnefoy, apesar de ela estar envolvida na organização de uma coletânea de crônicas e muito ocupada com essa tarefa. A mudança de editores certamente tornou o trabalho de Arthur um pouco mais tranquilo, porém não mais deleitável. A rose by any other name would smell as sweet. Um editor, por mais simpático que seja, ainda é um editor.

As semanas se passaram com uma lentidão torturante e, quando finalmente terminou de elaborar o plot de seu livro, Arthur estava frustrado, exausto e extremamente nervoso. Esses sentimentos foram aumentando gradualmente e ele os ignorou com todas as suas forças, até alcançar uma determinada cena no terceiro capítulo e a mente dele simplesmente não suportar mais produzir.

Ele teve um bloqueio de escrita.

Ah, os bloqueios de escrita... Eles são os arquiinimigos de qualquer escritor e batalham inúmeras vezes com eles. Autores experientes conhecem bem seus bloqueios. Eles sabem que bloqueios podem vir sem motivo e partirem sem acenar. Bloqueios podem durar alguns dias, uma palavra, um capítulo ou vários anos. Esses são conhecimentos compartilhados por todos os autores veteranos. Todavia, como foi mencionado, William Wilde era um mero autor principiante. Popular e talentoso, verdade. No entanto, inegavelmente, um principiante. E, naquela tarde no início de novembro - aquela que mencionamos no começo do capítulo, lembram? - estava fazendo uma semana, desde que seu bloqueio de escrita começara.

Arthur Kirkland não tinha qualquer ideia de como deveria lidar com ele e estava esperando impacientemente que ele terminasse.

Argh. Aquilo era angustiante. Arthur queria escrever, mas as palavras não se ajustavam como ele queria no papel! O que diabos ele deveria fazer? Ele precisava escrever, ele ansiava por escrever e ele simplesmente não conseguia escrever.

Em suas tentativas de ajudá-lo, a sua nova editora havia aconselhado que ele tentasse relaxar mais, para que a sua inspiração retornasse, e chegou a convidá-lo a participar de uma partida de gamão que ela faria em sua casa, porém Arthur gentilmente declinou o convite. Ele concordava que era necessário que ele relaxasse, para conseguir prosseguir a escrever, no entanto uma partida de gamão não era exatamente uma atividade que ele considerasse relaxante. O que ele considerava como uma “atividade relaxante”? Bem, se ele soubesse disso, tudo já estaria resolvido, não é?!

O diferencial, portanto, entre aquela tarde de novembro e todas as outras em que Arthur havia queimado seu almoço era esse novo problema que o atormentava: como conseguir relaxar, recuperar a sua inspiração e concluir o terceiro capítulo de seu romance.

Essa diferença parece muito modesta, mas ela teve um efeito singular no destino de nosso protagonista, pois, naquela data, quando Arthur saiu para almoçar em uma lanchonete como o habitual, ele reparou na existência de um café ao lado de sua lanchonete preferida e pensou "Ah, esse ambiente é um ambiente apropriado" e decidiu entrar no recinto, para tentar superar seu bloqueio de escrita com o auxílio de um bom capuccino e de um espaço tranquilo e devidamente decorado. Ele nem teria visto o café em um dia normal.

Este era outro traço singular de nosso personagem principal: Arthur Kirkland gostava da comida de lanchonetes, porém odiava o ambiente em si. Nada era mais irritante do que as barulhentas, lotadas e desorganizadas lanchonetes americanas, com as suas ridículas músicas country ou pop tocando a todo volume, americanos praticamente gritando as suas conversas íntimas e o cheiro de gordura, molho e óleo espalhando-se por toda parte. Definitivamente, uma lanchonete não era um espaço para a criação de uma obra literária e mesmo o genial mestre Shakespeare não poderia concluir nenhuma de suas peças naquelas condições.

Um café, por sua vez, parecia um excelente local para o estímulo da atividade de uma mente criativa. Por que não tentar ir para lá e verificar se valeria a pena, tentar escrever ali?

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Havia cerca de doze mesas no local, mas apenas três delas estavam disponíveis. Aquele pequeno café era mais popular do que Arthur presumira, e ele podia entender muito bem o porquê. O café "Wuthering Heights" era notoriamente um lugar digno de elogios e de recomendações a terceiros. A referência literária, por conta própria, havia conquistado Arthur previamente e o ambiente não deixou a desejar. Aquele era um espaço com dimensões adequadas. Não era grande o suficiente para que parecesse vazio, nem pequeno o bastante para que ficasse apertado. As suas mesas escuras contrastavam agradavelmente com as luzes amareladas das lamparinas espalhadas nele e com o tom carmim das paredes. Aromas amargos e adocicados se misturavam e invadiam os sentidos daqueles que entravam ali. Todo o espaço era perfeitamente limpo e o chão era tão polido a ponto de refletir as pessoas que caminhavam nele. Uma enorme vidraça exibia o exterior do local, permitindo a visão do parque localizado à sua frente.


Ah, aquele era um recanto para um escritor, constatou Arthur, maravilhado com o que via. Seria ridículo que uma obra literária fosse concebida em um Burguer's King e a imagem de um autor produzindo em um café relativamente desconhecido era muito mais plausível e apreciável... Ele quase podia ver a placa de "William Wilde frequentava esse estabelecimento" nas paredes do local.

Se a sua inspiração não havia retornado ainda, o seu ânimo indubitavelmente retornou. Ele estava deveras entusiasmado com a perspectiva de escrever ali - céus! A música-ambiente era um jazz! Jazz! - e assim que sentou-se em uma mesa, apanhou imediatamente o bloco de notas que sempre carregava em seu casaco para começar a rabiscar a cena em que havia parado.

A cena do primeiro encontro entre Emily Dashwood e Mr. Morland.

A editora pediu que houvesse algumas variações no estilo habitual de Arthur Kirkland, para que as novidades atraíssem mais leitores, e, dentre as suas escolhas de mudanças, ele abandonou o cenário moderno que predominava em seus contos e optou por escrever um romance que se passasse na Inglaterra do século dezoito. A Inglaterra austeana, não a Inglaterra de Dickens, ele deveria deixar claro. Emily Dashwood, a personagem de William Wilde, era uma jovem de uma família da baixa nobreza. Sendo a mais nova de uma família de cinco filhos, ela nunca recebeu pressão para se casar e nem teve vontade de fazê-lo, o que resultou na permanência de seus status civil como solteira, quando todas as suas irmãs haviam se casado e ela havia alcançado a maturidade dos seus vinte e seis anos. Diferente dos clichês, ela não se opunha a casamentos ou ao amor e, inclusive, considerava-os muito atraentes nos romances. Ela era apenas centrada demais em seus próprios interesses para permitir-se compartilhar sua vida com alguém. Emily Dashwood apreciava muito a sua solidão e não gostaria que nenhum cavalheiro a interrompesse. Essas eram suas razões para não se casar. Nada mais, nada menos.

No terceiro capítulo, Emily estava em um baile promovido por seus novos vizinhos, uma família americana que acabara de se mudar para Bath. Apesar de estar apreciando a música e suas companhias, ela está cansada de dançar e de interagir com tantas pessoas em um curto espaço de tempo e quer ir embora. Ela está sentada, acenando com um sorriso amarelo para o seu irmão mais velho, tentando chamá-lo para resgatá-la, quando Mr. Morland, o outro personagem principal, aparece e...

E...

Essa era a cena em que Arthur fora interrompido por um bloqueio.

Ele tentara escrevê-la três vezes e não aprovou nenhum dos resultados. A sua primeira tentativa resultou em uma Miss Dashwood tão sarcástica que nenhuma fagulha de romance pôde ser despertada na interação dos dois. A sua segunda tentativa resultou em uma Miss Daswood tão dócil a ponto de tornar todo o plot desnecessário, visto que ela dava a impressão de que poderia aceitar o pedido de casamento do Mr. Morland imediatamente. A terceira tentativa ficou tão repleta de enrolações e de eventos paralelos que cansou a mente de Arthur e ele perdeu o controle do que estava acontecendo.

Aquela seria a sua quarta tentativa.

Emily Dashwood estava sentada em uma cadeira, profundamente cansada, e os seus olhos se encontrariam com os de Mr. Morland, gerando um efeito intenso nos dois. Como escrever essa situação?

Ele queria uma cena que tivesse algum impacto. Não um impacto avassalador, mas grande o bastante para anunciar a relevância do encontro entre os dois. Ele não queria faces avermelhadas ou corações disparados. Ele somente queria que o encontro entre os olhos dos dois causasse uma impressão marcante em ambos, como se eles se comunicassem silenciosamente e declarassem...

– O senhor gostaria de fazer seu pedido?

Foi a pergunta da garçonete perante Arthur, ao reparar que seu cliente ainda não havia noticiado a sua presença.

Essa sentença fez Arthur ter um pequeno sobressalto e arregalar seus olhos. Ele estava muito concentrado em seus devaneios e não havia reparado que havia uma sorridente senhorita de vestido branco e avental verde à sua frente. Em sua percepção, ela apareceu tão repentinamente quanto os espíritos de "Morro dos Ventos Uivantes". O nome do café tornou-se dez vezes mais irônico, após essa experiência.

– Hum? Ah, e-eu gostaria. - ele respondeu um pouco ruborizado e incerto se deveria constranger-se mais com a sua distração ou com a reação assustada que tivera diante da garçonete - Muito obrigado. Um capuccino grande e waflles com patê, por favor.

– Um capuccino grande e waffles com patê? - ela conferiu.

Ele respondeu com um rápido meneio de cabeça.

– O seu pedido sairá em alguns minutos, senhor. Por favor, aguarde.

Ela saiu e Arthur deu um suspiro de alívio, fechando os olhos para apreciar melhor a Cry me a river que ressoava suavemente naquele recinto.

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Pensando em um desfecho para a sua cena, Arthur não poderia deixar de achar engraçada a sua constatação do quanto ele não possuía nenhum potencial para tornar-se o protagonista de uma estória. Arthur Kirkland, que havia acabado de se divorciar, de perder seus dois pais em um acidente de carro e de mudar completamente a sua carreira e seu estilo de vida, estava bastante calmo e contente por ter a oportunidade de escrever em um adorável café de sua vizinhança, enquanto Emily Dashwood estava com os nervos à flor da pele por estar em um baile monótono e por sofrer as pressões sociais de uma mulher solteira com idade relativamente avançada. Sigh. O que se fazer? Ele era demasiadamente racional e acomodado para se tornar um personagem principal ou para desejar tornar-se um. As grandes paixões deveriam ser reservadas para pessoas desocupadas como o seu ex-editor, aquele bêbado dos vinhos. Arthur tinha anseios moderados, pouca disposição e uma mescla indissociável entre pessimismo e resignação que o tornavam um indivíduo absolutamente comum.


Arthur não era desiludido com o romance, como alguns poderiam supor. Ele o via como uma chuva que aumenta gradualmente e, em seguida, diminui até ser cessada. Naturalmente, os seus personagens não compartilhavam dessa visão ou não haveria uma estória. O seu novo personagem, o Mr. Morland, era particularmente ingênuo, tratando-se do amor.

Um americano ingênuo, alegre, infantil e excessivamente honesto. Esse era o seu novo protagonista. Diferente da senhorita Dashwood, ele estaria ansioso por se casar e acreditaria firmemente em ideias bobas como "amor verdadeiro" e "finais felizes". Ele adoraria clichês de livros de aventura e gostaria de se tornar um herói, como aqueles dos romances. A sua personalidade chocaria e conquistaria a reservada e cética senhorita Dashwood.

Personagens assim não eram realmente o tipo de Arthur Kirkland - nem o tipo de suas protagonistas - e a presença de Mr. Morland no romance se devia principalmente aos pedidos diretos da editora para que William Wilde tentasse incorporar um novo tipo de personagem principal às suas estórias, visto que todos os seus contos tinham personagens masculinos sombrios e amargos. Por que todos os homens deveriam ser tão carrancudos? Eles queriam ver mais sorrisos e menos passados trágicos. Um pouco de variação seduziria os leitores de William e os convenceria a comprarem sua nova obra.

Confiando nas recomendações de Mona Bonnefoy, Arthur criou esse novo perfil de personagem. Mr. Morland era uma nova personalidade em suas criações. Jack Morland estava praticamente concluído em sua elaboração, mas agora Arthur Kirkland via que ele tinha dificuldades em pôr o personagem em ação. A cena na qual ele havia parado era a primeira cena em que Mr. Morland aparecia e Arthur descobriu que, às vezes, incorporar um personagem à trama é um processo mais difícil do que criá-lo.

Que tipo de impressão uma pessoa como Mr. Morland poderia causar em alguém como Emily Dashwood? Como poderia ser a primeira interação entre os dois? Como seriam os gestos, os movimentos, o sorriso e os olhares de Mr. Morland? Ele não conseguia decidir-se.

Bem, quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor, concluiu Arthur, recebendo seu capuccino e seus waffles. Se ele estava detendo-se tanto nessa cena, quando ela finalmente fosse concluída, ele demoraria a encontrar dificuldades em lidar com Mr. Morland. Um aumento de empenho poderia significar um aumento na qualidade dos resultados. Provavelmente.

Arthur tomou lentamente o primeiro gole de seu capuccino e apreciou o gosto vagamente doce em sua boca. O bloco de notas tinha algumas palavras riscadas, nenhum parágrafo elaborado. Os seus dedos batiam na mesa, acompanhando o ritmo da versão do Frank de Sinatra de The way you look tonight.

Ele estava esperando por um momento de inspiração e Emily Dashwood estava esperando pelo fim do baile. Esses acontecimentos viriam mais cedo e de maneira mais estranha do que os dois poderiam imaginar

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Um café lotado tem o poder de convencer os seus visitantes da qualidade de seus serviços e, mais secretamente, o poder de aborrecê-los até a alma, uma vez que eles sejam devidamente capturados.


Arthur tentava pedir a conta há quase vinte minutos e ainda não havia sido atendido. A essa altura, ele podia sentir a sua paciência sendo reduzida, como se a sua respiração liberasse cinzas vulcânicas. Honestamente. Que situação revoltante. Um cliente menos cortês e complacente teria se indignado com ela e, no mínimo, deixado de pagar a conta. Entretanto, para a sorte dos funcionários do estabelecimento, o senhor Kirkland era um cavalheiro e não perderia sua compostura, mesmo que o estúpido, imbecil, completamente cego e inútil do garçom não houvesse reparado em nenhuma das malditas tentativas óbvias de Arthur de contatá-lo.

Aliás, o que diabos havia com aquele garçom? Ele permanecia tanto tempo nas mesas onde passava que parecia que ele tendo conversas casuais com os fregueses ao invés de atendê-los! Parecia. Arthur recusava-se a acreditar que alguém teria descaradamente uma postura tão pouco profissional e ele não faria acusações infundadas. No entanto, se ele não poderia acusar o garçom de estar conversando com os fregueses em vez de fazer o seu trabalho – o que o faria processar o cretino imediatamente – ele poderia muito bem acusá-lo de estar passando tempo demais em cada mesa que atendia, quando não havia qualquer necessidade disso.

Certo, certo. Ser atendido por um funcionário simpático era inquestionavelmente algo agradável. E Arthur podia ver o charme que havia nos diálogos entre um freguês habitual e um velho funcionário de um estabelecimento como aquele. “O pedido de sempre, senhor Kirkland?”, “Claro, James.”, “Os preços mudaram. O novo gerente é um terror.”, “Eu acredito nisso, James. Esse lugar não é mais como antigamente.”, “Sim, as coisas mudam em trinta anos, senhor.”, “Verdade, James. Verdade. Que triste verdade. Oh, droga, James. Agora eu estou nostálgico e sentimental. Peça para o Sam tocar a As times goes by. ”, “De novo, senhor Kirkland?”, “Sempre.”. CAHAM! ENFIM, ele conseguia compreender o apelo desses pequenos momentos de interação social! Entretanto, há limites para tudo e era injustificável que um garçom gastasse tantos minutos com boas maneiras, quando havia tantos clientes esperando por ele! Nesse ritmo de atendimento, Odisseu retornaria para Ítaca três vezes, antes que a conta de Arthur fosse servida!

Francamente, Arthur Kirkland não se considerava como alguém mal-humorado – sim, o seu ex-editor o considerava mal-humorado, mas a opinião dele nunca era relevante e, de qualquer modo, Arthur não desperdiçou seu bom humor com ele – e não queria causar problemas a um pobre rapaz que deveria precisar de seu salário para pagar o aluguel de seu apartamento e os seus débitos com o banco. Ele estava decidido a não reclamar com o gerente nem deixar de pagar a conta, contudo, a despeito dessa decisão, Arthur não conseguia entender ou aceitar como um café conseguia manter um funcionário tão lerdo e ineficiente. O capitalismo realmente deveria estar em crise se um local de trabalho deixa que um empregado seja tão despreocupado quanto às suas funções. Havia pessoas – leia-se: ele – querendo dar dinheiro para o café e o garçom estava deixando de recebê-lo para rir de um comentário sobre as abóboras do Hallowen! Era impossível esperar eficácia de um sujeito como aquele.

Bufando aborrecidamente, Arthur deu um último relance para as costas do garçom em mais uma falha tentativa de que os olhares dos dois se encontrassem, desistiu, inspirou e cerrou firmemente suas pálpebras, para tomar os vestígios de capuccino em sua xícara. Nesse exato instante, o impensável aconteceu.

O garçom o noticiou.

Arthur não saberia dizer precisamente quando ou por que o garçom o percebeu logo no instante em que ele desistiu temporariamente de contatá-lo. Talvez ele tenha bufado mais alto do que pretendia ou talvez, por coincidência, o assunto com a senhora das abóboras tenha acabado exatamente quando a espera de Arthur acabou.

Outra pergunta que Arthur não poderia responder seria como o garçom aproximou-se de sua mesa. Ele estava com os olhos muito bem fechados, quando esse deslocamento aconteceu e ele apenas o percebeu no último segundo possível. Ou seja, quando o garçom falou com ele.

– Ei, você é um cliente novo, não é?!

Aquela voz repentina causou um pequeno susto em Arthur e intensificou em muitos níveis a sua irritação. Ele abriu sua boca e seus olhos para gritar severas ofensas e ameaças contra o grande imbecil à sua frente, quando uma descoberta o fez perder completamente a fala.

O grande imbecil era terrivelmente atraente.

Droga.


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Notas finais do capítulo

Olá, damas e cavalheiros! Muito obrigada por lerem a primeira parte dessa estória de oito partes e quatro capítulos! Eu sou realmente grata pela sua atenção e espero que vocês estejam gostando dessa estória que ainda tem muito, muito mesmo pela frente! Tecnicamente, nós mal terminamos o primeiro capítulo! Aguardem por mais fluffy, angst, romance, frustração sexual e referências literárias!

Pode não parecer, mas, tendo em conta que essa seria uma estória com metalinguagem, eu fiz um planejamento deveras detalhado sobre a sua composição. Eu não posso explicá-la em detalhes no presente, mas pretendo fazer isso, quando ela estiver concluída! Eu também optei, pelo mesmo motivo, por utilizar amplamente a metalinguagem para tornar bem visível que essa estória é parte de uma ficção criada por alguém, pois a Jane Austen, minha autora preferida, usava essa técnica com frequência e provocou efeitos hilários com ela ao escrever "A abadia de Northanger", uma das minhas maiores fontes de inspiração para essa fanfiction. Vocês logo entenderão os motivos. De qualquer modo, não se preocupem. A metalinguagem não atrapalhará os momentos românticos, pois, apesar dos pesares, pretendo utilizá-la apenas em alguns momentos e contextos. Ela é mais um recurso cômico do qualquer coisa, afinal.

Para que não pensem que tudo será revelado apenas no futuro, eis as referências literárias usadas nessa parte!:3

01. William Wilde - Uma mescla entre William Shakespeare e Oscar Wilde, dois autores britânicos.
02. A rose by any other name would smell as sweet. - Romeu e Julieta, Shakespeare
03. Wuthering Heights - Nome original do "Morro dos Ventos Uivantes"
04. Emily Dashwood - Mescla entre o nome "Emily Brönte", a autora de Morro dos Ventos Uivantes, e "Elinor Dashwood", a personagem que representa a razão no romance "Razão e sensibilidade" da senhorita Austen.
05. Mr. Morland - Morland é o sobrenome da jovem e ingênua protagonista de "A abadia de Northanger" que constantemente confunde sua muito comum realidade com a realidade dramática e misteriosa da personagem de um romance gótico.
07. Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. - Fernando Pessoa
08. Um romance austeano, não um romance de Dickens. - Enquanto Dickens retratou uma Inglaterra repleta de aspectos negativos, através de personagens de baixas camadas sociais, a Jane Austen optou por fazer críticas mais sutis à sociedade inglesa em cenários da nobreza e da burguesia.
09. "Teoria do Romance Literário" - "Teoria do Romance" é um nome comum para trabalhos literários sobre romances. O Bakhtin, por exemplo, escreveu um livro com esse nome.
10. Odisseu retornaria para Ítaca três vezes, antes que Arthur fosse atendido - Em "A Odisseia", Odisseu demorou DEZ anos para retornar à Ítaca. A mesma duração que a Guerra de Tróia teve em "A Ilíada", apenas para constar.

Eu espero sinceramente que vocês estejam gostando dessa estória e que possam continuar a lê-la, apreciá-la e comentá-la! Bai, bai!:3