al Chemist escrita por Thiago França


Capítulo 8
Capítulo 7 - Rubrum Lupus


Notas iniciais do capítulo

Doppelgänger = doppel (significa duplo, réplica ou duplicata) e gänger (andante, ambulante ou aquele que vaga).

Pronuncia-se "Dópelguénguer"



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Eles continuaram andando até o anoitecer, quando pararam para descansar.

Ka adormeceu e, então, veio um sonho. Era uma noite clara, cheia de estrelas e com a lua cheia. Os lobos uivavam para sua deusa Lua e as hienas gargalhavam achando aquilo estúpido. Havia uma casa de madeira no meio do deserto. Em volta da casa, havia um pouco de mato e alguns cactos. Um homem gordo e barbudo, vestindo calça jeans rasgada, jaqueta de couro e bandana na cabeça, estava na varanda, fumando. Ele olhava o horizonte do deserto e avistou uma forma negra e esguia vindo em sua direção.

Vários minutos depois, a forma chegou perto da casa. Era humano e usava uma capa negra que cobria o corpo inteiro, e o capuz na cabeça mostrando somente o maxilar quadrado com a barba curta. Ele subiu os três degraus da escada da casa, mas o homem gordo entrou na sua frente bloqueando a passagem. E, então, baixou o capuz, mostrando seu rosto esculpido, branco como giz e olhos vermelhos como fogo. Sua aparência mostrava uns trinta anos de idade.

–Aqui é território dos Anjos. – disse o homem gordo, com o cigarro em sua boca e em seguida jogando fumaça no rosto do ex-encapuzado.

Ele sequer piscou, nem se engasgou com a fumaça em seu rosto. Então, com a ponta dos dedos, pegou o cigarro da boca do gordão olhou atentamente a ponta cor de âmbar, queimando e disse:

–Anjos?– como se estivesse tendo um devaneio.

E tocou o cigarro na bochecha do gordão. A ponta chiava na pele dele. Mas ele já havia sido engolido pelo olhar do homem pálido. Sua pele escureceu como a ponta queimada do cigarro. Seu rosto obteve uma expressão grotesca de pavor. Quando sua pele ficou totalmente negra, seus olhos ficaram totalmente brancos e seu corpo explodiu em cinzas. O homem pálido soltou o cigarro com desprezo e entrou na casa.

Era um bar. Havia algumas mesas redondas com motoqueiros bebendo e um aquário enorme na parede atrás do balcão. A dona do bar, Sandy, era uma garota que deveria ter não mais de vinte e cinco anos de idade e usava uma calça jeans até os joelhos, botas de caminhada, uma blusa preta sem mangas, tatuagens nos braços, cabelos escuros até os ombros, e piercings nas orelhas. O homem pálido entrou com passos lentos e foi até o balcão. Sandy, de longe, conseguia sentir o cheiro de enxofre que vinha do homem. Seus olhos semicerrados viam confusão vinda daquele homem.

–Você não é bem-vindo aqui. – ela disse rigidamente quando ele, finalmente, chegou ao balcão. –O que quer?

–Não é da sua conta, mundana.

Era como se uma bola de lã estivesse se formado na garganta dela, só por ter ouvido aquela palavra. Sua respiração falhou, os pelos de sua nuca se eriçaram e seu corpo estremeceu. Os motoqueiros se levantaram. Ele virou seu rosto para eles e o ar esfriou. Os motoqueiros, agora, podiam ver suas respirações no ar. Eles se assustaram. Um motoqueiro magricela, cheio de espinhas no rosto olhou espantado para um brutamonte e apontando. Ele olhou para as mãos e elas estavam ficando negras. Então, eles olharam uns para os outros e todos eles estavam assim.

E todos os motoqueiros, cerca de doze ou treze, explodiram em cinzas, deixando o chão cheio de fuligem. Os olhos de Sandy se encheram de lágrimas e ela se agachou em baixo do balcão, tremendo e abraçando os joelhos. Viu que suas mãos estavam cinza escuro. O que é isso?, pensou. Nesse momento um pequeno turbilhão de poeira se formou em torno de uma das cadeiras próximas à entrada do bar. A poeira começou a tomar uma forma humanoide e a se solidificar até tornar-se um boneco de areia maciça. Então, rachaduras se formaram e caíram como uma casca de ovo mostrando o rapaz por dentro. Aparentava ter uns dezessete anos de idade. Era forte, tinha os cabelos raspados, pele cor de bronze, olhos tão escuros que pareciam ser totalmente negros, usava uma calça e botas do exército, um sobretudo marrom sobre o dorso nu e um cordão de prata com um pingente de moeda.

Logo depois, rachaduras surgiram no aquário. Sandy olhou para cima e se espantou. O aquário estourou e Sandy se encolheu, colocando os braços na frente do rosto. Que diabos esse cara está fazendo?, ela pensava. Centenas de litros de água jorraram ensopando Sandy, o balcão e todo o chão do bar. Agora a água foi se agrupando no centro do bar, em algo disforme até tomar uma forma humanoide e se tornar um boneco de água. Então, a água foi ganhando cores. Uma quantidade razoável d’água se esparramou no chão, como se houvessem jogado um balde d’água vindo de cima. Era um rapaz, de uns dezesseis anos, de pele prateada, com longos cabelos encharcados e até os cotovelos. Seus olhos lembravam os de um tubarão, seus dentes eram pontudos e seu nariz era ligeiramente pontudo e arrebitado. Ele usava calça jeans preta, botas que iam até abaixo dos joelhos, uma camiseta branca e um sobretudo cinza escuro. Ele se sentou em cima de uma das mesas vazias.

Tudo ficou calmo. E então, por último, uma rajada de vento muito forte soprou para dentro do bar e uma forma negra entrou voando, rindo e gritando. Sandy já não sabia se aquilo era um pesadelo ou se era o pior e último dia de sua vida. A forma negra deu várias piruetas dentro do bar, derrubando garrafas e cadeiras. A forma passou por trás do balcão, dando um susto em Sandy e derrubando-a para o lado. Por fim, a forma se tornou um mini ciclone no centro do bar e foi se comprimindo até tomar forma humana. Se tornou um rapaz, também, de dezessete anos de idade, com os cabelos loiro prateados curtos e bagunçados, pele rosada, olhos azuis quase brancos, usava calça azul escura, blusa social branca e sapatos e um sobretudo negro.

–Então vocês realmente vieram?– disse o homem pálido, mais parecendo uma afirmação. –Vocês quatro.– e ele deu uma risada que aparentemente ecoou pelo deserto inteiro.

Ka acordou assustado e com pingos de suor saindo dos poros da testa. A lua estava no auge de sua forma cheia e brilhante. Ele resolveu andar um pouco pela floresta.

Uma sombra surgiu do meio dos arbustos, correndo a toda velocidade. A sombra vermelha, coberta de lama, ofegava enquanto corria. O desespero na sua respiração era certo. Atrás, dois pares de patas surgiram nos arbustos perseguindo a sombra. Ela tentava se afastar, mas o canino estava chegando perto. As sapatilhas, também vermelhas, da sombra, não a deixavam correr mais rápido, o que era um problema.

Ao passar por baixo de uma árvore, um par de braços surgiu e a puxou para cima, pelos ombros. A sombra vermelha soltou um grito contido. Ka havia coberto a boca da sombra com a mão e abraçado-a pelas costas com o outro braço.Sentados num galho daquela árvore, eles observaram o lobo chegar e parar abaixo deles. Havia perdido o rastro?

Ele farejava o cheiro de sua presa, sem a certeza de onde ela poderia estar. Ela mirou seus olhos verde claros, com cílios grandes, para Ka. Era um olhar de “Caramba, vamos morrer!”. Ele, que ainda estava tapando sua boca, sentia a respiração pesada, passando em sua mão. Quando o lobo subiu o focinho, Ka e a sombra prenderam a respiração. Ele a abraçara com mais força. Mais um pouco e eles estavam no campo de visão do lobo.

Ela engoliu sua saliva e eles puderam ver que as orelhas do lobo fizeram um movimento rápido para trás. Ka a olhou com expressão de reprovação. Então ao longe se ouviu um farfalhar de folhas e o lobo saiu em disparada atrás de sua presa. Ka e a pessoa de vermelho esperaram alguns minutos, certificando-se de que o lobo não voltaria. Mas aparentemente estavam enganados, pois o farfalhar de folhas surgiu novamente. Eles esperaram o lobo sair de trás das moitas, mas não era o lobo, era Lulua e Rehena.

–Já podem sair.– Rehena disse para lugar nenhum.

Ka pulou da árvore e estendeu as mãos para frente para que a garota (ele já sabia que era uma) de vermelho pudesse pular, que ele a segurava. Ele a colocou no chão e Rehena e Lulua foram ao seu encontro.

–Nossa! Vocês estão péssimos.– comentou Lulua.

A garota de vermelho se virou para Lulua e Rehena e retirou o capuz.

–Obrigada pela ajuda. – ela disse com uma voz doce.

–Agradeça ao Ka.– Rehena respondeu apontando para Ka.

A garota se virou e Ka, finalmente, a viu melhor. Tinha quase a sua altura, a pele clara, cabelos extremamente pretos e lisos até os ombros, boca perfeita e avermelhada (que provavelmente fazia covinhas, quando ela ria, ele percebeu), bochechas perfeitamente rosadas e pequenos brincos em forma de maçã. Era como se o cérebro de Ka tivesse sido batido no liquidificador.

–Hã... Dãh...– foi tudo o que ele conseguiu dizer.

–De nada?– a garota tentou concluir a frase de Ka, mas sua voz era tão doce que o cérebro dele estava escorrendo pela boca.

–Ka, você está babando.– Rehena disse e rapidamente ele levou a mão à boca.

–Desculpe.– ele finalmente respondeu. A garota deu uma risada contida. –Por que aquele... lobo estava perseguindo você?

A garota ficou com uma expressão triste no rosto.

–Há uma semana eu cheguei em casa e ele... ele... estava trucidando a minha avó. Ele arrancou suas entranhas na minha frente.

Lulua sentia um embrulho no estômago só de pensar.

–Que horror.– disse Rehena.

–O mais estranho.– a garota continuou. –É que ele não parecia um animal, era como se fosse humano.

Ka olhou para Rehena e Lulua.

–Lobisomem.– Ele disse.

–Espera.– a garota o interrompeu. –Você está querendo me dizer que uma espécie de... mutante de homem lobo matou a minha avó e agora está quer me matar?

–Sim. E temos que descobrir o porquê.

–E você acredita que essa coisa de lobisomem exista mesmo?

–Você não?

–Eu... não sei.

–Onde você mora?– Lulua perguntou intrigada.

–Numa casa que fica no meio da floresta, mas nunca ouvi falar de uma alcatéia por perto.

–Mundana.– Lulua resmungou.

Ka deu uma cotovelada na costela dela querendo dizer para se comportar, mas lhe veio na cabeça o sonho onde o homem de capuz havia chamado Sandy do mesmo nome e depois havia olhado dentro de seus olhos.

–...vingança.– a garota falava enquanto Ka não estava prestando atenção.

–O... o que?– ele perguntou.

–Vocês podem me ajudar a matar aquele lobo, lobisomem ou seja lá o que for?

–Mas nós não sabemos onde fica a alcateia.– Rehena disse.

–Talvez eu saiba de alguém que saiba.– Ka disse.

Nesse momento eles ouviram um uivo ao longe. Sabiam que o lobo havia percebido sua perda.

–Temos que ir. Eu explico no caminho.

Eles foram a noroeste, tentado achar o início do deserto no fim da floresta, enquanto Ka explicava o sonho que tivera.

–Mais cedo.– a garota começou a falar com Ka. –Sua amiga me chamou de algo... não lembro o quê.

–Mundana.

–Isso! O que significa?

–Mundano é um humano do mundo que não possui nenhuma ligação mágica.

–E isso é ruim?

–Não. Claro que não.

–Acho que me sinto um pouco excluída.

–Não sinta. Todo mundo tem o seu valor e propósito no mundo.

Ela sorriu e o coração de Ka se derreteu.

–Belas palavras.– ela disse.

–Eu... hã... obrigado.

Até que chegaram numa parte da floresta onde as raízes das árvores saiam da terra, a névoa era densa e não havia caminho para seguir onde tiveram que passar pelas raízes grossas e musgosas. A garota, então, sentiu um calafrio percorrer suas costas. E olhou para trás, mas não havia ninguém.

–O que foi?– Ka perguntou.

–Nada. Só achei que estávamos sendo seguidos.

Lulua e Rehena diminuíram o passo até ficar perto deles. Então, a garota ouviu algo e olhou para trás novamente.

–Fique calma.– disse Rehena.

Eles continuaram andando um pouco mais rápido.

–Ei.– a garota disse. –É normal ouvir barulho de água no meio de uma floresta onde não se vê um rio?

–Algumas pessoas dizem que é um mal presságio.– Ka respondeu.

A garota engoliu em seco e seu coração acelerou. Ela parou e se virou para trás. Ka, Lulua e Rehena a imitaram, mas não havia nada. Eles olharam em volta e só havia névoa. Voltaram-se para frente, mas atrás se ouviu um farfalhar de folhas.  Os quatro se viraram para ver e ao longe no limite da visão que a névoa permitia, ao lado de uma árvore, estava uma forma humana.

–Uh-oh!– disse Ka.

–“Uh-oh?”– perguntou Rehena.

–Como assim “uh-oh”?– perguntou Lulua.

–Você disse “uh-oh”! Por que ele disse “uh-oh”?– disse a garota.

–Corram.– ele disse.

–Mas o quê?– as três disseram em uníssono.

–Corram!!– ele gritou enquanto as empurrava.

Os quatro correram como o vento, desesperados. A forma sequer saiu do lugar, a garota podia ver.

–O que é aquilo?– ela perguntou.

–Ouvir barulho de água é um mal presságio.– Ka disse.

–Por quê?

–Doppelgänger.– Lulua respondeu.

A garota olhou para trás, para se certificar que não estavam sendo seguidos, porém, quando se virou o Doppelgänger estava à sua frente, parado. Os quatro pararam a quinze metros de distância. Agora ela podia ver que ele não possuía uma forma definida e sem detalhes. Era um ser humanoide com o corpo aquoso que possuía todas as cores possíveis. Ela podia, também, ver seu cérebro e o coração. Pelas curvas do seu rosto, ela percebeu que ele estava sorrindo.

–Espalhem-se!– Lulua gritou.

Cada um correu para um lado, deixando o Doppelgänger para trás. O coração da garota estava saltando furiosamente em seu peito. Que coisa estranha é aquela? Será que pior que o lobisomem?

Ela correu a ponto de seus pés formarem bolhas. Até que chegou à uma árvore grande, onde deu a volta em seu tronco e se agachou ali na árvore tentando se esconder. Lágrimas se formavam em seus olhos. Algo estava entalado na garganta e seu corpo todo tremia. Depois de uma semana fugindo do lobo, ela não poderia morrer para uma gelatina que nem sabia o que poderia fazer com ela.

Nesse momento um par de sapatilhas vermelhas surgiu à sua frente. Percebeu que conhecia essas sapatilhas. Ela subiu o olhar e viu que era: ela mesma. Como poderia estar vendo a si mesma desse jeito? A cópia agarrou seu pescoço e a ergueu.

–Morra, mundana.– disse a cópia.

Talvez esse fosse o fim da garota da capa vermelha. Com o pescoço sendo estrangulado, o ar esvaindo de seus pulmões e lágrimas correndo em seu rosto, as duas se olhavam nos olhos. Talvez fosse imaginação ou as lágrimas, mas a garota percebeu que os olhos da cópia possuíam múltiplas cores como o Doppelgänger. A cópia apertou o punho, fazendo a cabeça da garota ficar vermelha como um tomate e um filete de sangue escorrer pelo nariz. Seus pés já não tocavam o chão, eles se moviam inutilmente no ar. A garota tentava se libertar, apertando o punho da cópia o máximo possível.

A cópia olhava intensamente em seus olhos. Então, uma forma vermelha surgiu de sua esquerda dando um chute com os dois pés no lado direito da costela da cópia. Era Ka. A cópia voou para o lado e batendo em uma árvore enquanto Ka tocava os pés no chão.

–Você está bem?– ele perguntou erguendo a mão para ajudar a garota a se levantar.

–Sim.– ela respondeu tossindo enquanto se levantava e limpava o sangue do nariz. O rosto estava voltando à sua cor normal.

Eles foram até a cópia, que estava encostada de frente para uma árvore e com um galho grosso e pontudo atravessando seu peito. Os pés não tocavam o chão e a cabeça pendia para o lado, caída.

–Você... Como...?– ela não conseguiu terminar a frase.

–É o Doppelgänger.

A pele da cópia ficou parecida com a mesma solução gelatinosa do Doppelgänger. Então ela começou a derreter e a ficar com o corpo sem forma e colorido até se tornar uma poça no chão. Então, Ka se agachou tocou a poça com as pontas dos dedos da mão direita e a poça adquiriu pequenas bolhas de ar iguais as de refrigerante. Ele se levantou e pôs a mão no ombro da garota.

–Vamos.– disse Ka. –Antes que ele volte a sua forma.

–O que aconteceu? O que você fez?

Ka respirou fundo e expirou o ar.

–O Doppelgänger é um ser que se torna uma cópia idêntica da pessoa a quem ele escolhe.– eles começaram andar à procura de Lulua e Rehena. –Ele imita em tudo a pessoa copiada, até mesmo as suas características internas mais profundas. Fazendo isso, ele se torna uma representação acentuada do lado negativo da pessoa.

–Mas ele é tão perigoso assim?

–Ver o Doppelgänger é um sinal de morte iminente, pois a pessoa está vendo a sua própria alma projetando-se para fora do corpo para assim embarcar para o plano astral.

–Um momento. Você está tentando me dizer que esse Doppelgänger não é deste mundo?

–Exato. E não há como derrotá-lo, pois ele não cansa, não dorme, não come, não sente medo e não se fere.

–Você o matou, não foi?

–Não. Eu apenas o fiz retornar ao seu original e desestabilizei seu corpo para que não pudesse tomar forma humana... por enquanto.

–Mas...

Nesse momento a garota foi interrompida pela aparição de Lulua, que abraçou Ka pelas costas e alguns segundos depois, Rehena também apareceu.

–Cadê o Doppelgänger?– Rehena perguntou.

–O encontramos, mas conseguimos despistá-lo.– Ka respondeu olhando para a garota de vermelho.

–Temos que sair daqui o mais rápido possível.– Lulua disse no momento em que desceu das costas dele.

–Acho que senti um vento seco por aquele lado.– Rehena disse apontado.

–Então vamos.– Ka decidiu.

Após andar, com passos largos, pela floresta por uns cinquenta minutos, os quatro chegaram a uma parte onde o chão era de areia fofa e depois as árvores acabaram.

Finalmente o deserto.

O céu negro estava limpo de nuvens e cheio de estrelas. A floresta estava mais de trinta e cinco metros acima do nível do deserto. Então eles tiveram que descer escorregando sentados. Lá de cima se conseguia ver o bar de Sandy no limite de onde os olhos podiam ver.

Ao chegar em baixo, ainda tiveram que andar por mais dois quilômetros. A pedido de Ka, os quatro cortaram os poucos cactos que encontraram no caminho. A sede deles não podia esperar até chegar ao bar.

Quando estavam há uns cinco metros da frente da casa velha, eles pararam.

–O que houve, Ka?– Rehena perguntou.

–Está quieto.– ele respondeu.

Quando ele resolveu dar um passo, um som de tiro foi ouvido e a bala foi acertada na frente do seu pé, fazendo um pequeno buraco na areia. Ele parou o pé no ar por um segundo e foi andando em frente. As três o acharam louco, mas ele sabia o que estava fazendo. Quando chegaram ao pé da escada, uma garota saiu pela porta e parou. Era Sandy com uma espingarda nas mãos.

–Quem são vocês?– ela perguntou. Ainda parecia estar assustada.

–Sei o que houve aqui.– ele respondeu.

–Como sabe?– ela segurou a espingarda com firmeza.

–Isso mesmo. Como sabe?– disse uma voz conhecida atrás deles.

Sandy ficou pálida e imóvel como uma estátua. Seus olhos estavam esbugalhados e suas mãos tremiam. Ka e as garotas se viraram e viram o homem de capuz. Elas sentiram medo só em estar perto dele.

–Você.– disse Ka.

–Vocês... se conhecem?– Sandy, finalmente, conseguiu dizer.

–Diga a elas, Ka, como nos conhecemos.– o homem disse.

Ka não parava de olhar nos olhos dele. Eram olhos que aparentavam ter milênios. Estava pronto para qualquer movimento.

–Uma vez.– Ka começou. –ele veio à minha cidade, procurando uma alma para roubar. Estava numa situação difícil, pois tinha que arrumar uma de qualquer jeito, então estava disposto a fazer um acordo.

O homem prestava muita atenção a Ka e se divertia ouvindo a história.

Ele encontrou Ka, que tocava guitarra sentado embaixo da árvore rosa. Sentou num galho alto e disse: “Garoto, deixa eu te falar. Creio que não saiba, mas sou guitarrista também. E se não se importa em aceitar um desafio. Eu farei uma aposta com você. Toque sua guitarra com vontade. Eu apostarei minha guitarra de ouro, porque acho que sou melhor que você.” Ka respondeu: “O meu nome é Ka. Aceito sua aposta e você vai se arrepender, pois sou o melhor que já existiu.” Ka se levantou e tocou sua guitarra. Quando terminou, o homem desceu do galho com sua guitarra dourada e disse: “O show vai começar!” Fogo saiu pela ponta de seus dedos e faiscava a cada palhetada. Quando ele terminou, Ka disse: “Você é bom mesmo, para um velho! Mas sente-se ali e me deixe mostrar como se faz.” Ka tocou a ponto de seus dedos sangrarem e ficarem dormentes. O homem baixou a cabeça, pois sabia que havia perdido. Então deixou a guitarra dourada aos pés de Ka, que disse: “Volte quando quiser tentar de novo!” O homem se desfez em cinzas e foi embora procurando outra alma.

–Isso quer dizer que...– a garota de vermelho pôs-se a dizer. –você é um... é o...– ela estava assustada.

–Sim.– o homem respondeu. –Muitas religiões me conhecem por muitos nomes, mas podem me chamar de Lou.

Ao ouvir isso, ela e Sandy ficaram tremendo mais ainda de medo, diferente de Lulua e Rehena que não demonstravam.

–Sabe algo sobre os Devoradores de Almas?– Ka perguntou.

–Não sei nada sobre essa raça nojenta que rouba meu trabalho.– o homem respondeu. –Mas sei de alguém que pode ajudá-los.

–Quem?

–Ela se chama Kitsune.

No fundo de sua mente, Ka sentia que já ouvira aquele nome antes.

–Onde a encontramos?

–Vocês não a encontram. Ela que encontra vocês.

–Como assim... espere! O que veio fazer aqui?

–Vim avisar-lhe que dessa vez levarei sua alma.– então, ele se desfez em cinzas como da outra vez.

–Você está bem?– Ka perguntou a Sandy.

–Sim, mas ainda não me responderam quem são.

–Mais cedo tive uma visão desse lugar. Sabia que encontraria algo aqui.– ele se virou para suas amigas. –Vamos. Temos que ajudá-la antes de encontrarmos essa Kitsune.

Ela se virou para Sandy.

–Sabe onde encontro lobisomens por aqui?– ele perguntou.

–Lobisomens?

–Sim. Sabe onde tem alguma alcateia por aqui?

Nesse momento eles ouviram um uivo vindo do meio da floresta.

–Obrigado!– disse Ka.

Ele se virou e foi correndo em direção de volta à floresta. As garotas o seguiram e Sandy ficou no bar refletindo em tudo o que havia acontecido naquela noite.

–Onde estamos indo?– Lulua perguntou.

–Aposto que aquele lobisomem de antes, nos viu aqui e uivou para chamar nossa atenção.– ele respondeu.

–Mas como vamos voltar para a floresta?– a garota de vermelho perguntou. –Aquele Doppelgänger ainda deve estar lá.

–Você vai nos meter em confusão, garoto.– Rehena disse.,

Eles estavam subindo de volta à floresta.

–Acho que sinto minhas pernas ficando saradas agora.– Rehena disse quando eles chegaram no topo.

–Viu, subir escadas foi bom.– Ka comentou.

Eles correram adentro da floresta.

–O que vai fazer quando o encontrarmos?– Lulua perguntou.

–Não sei.– Ka respondeu.

–Não falei com você, bobão. É com ela.

A garota de vermelho olhou confusa para Lulua.

–Eu, bem... não sei.– ela respondeu já ofegante.

Eles, então, ouviram uma risada de criança, mas não sabiam de que direção. Pararam de correr no mesmo instante.

–Será ele?– Lulua perguntou, sem saber se estava referindo-se ao lobisomem ou ao Doppelgänger.

–Eu não sei.– Ka respondeu. –Mas vamos continuar.

Os quatro andaram por mais quinze minutos pela floresta escura e cheia de neblina.

–Acho que estamos perdidos.– Lulua disse como se sentisse muita vontade de bater em Ka.

Outra vez ouviram a risada de criança vinda do ar. Então, eles fizeram um circulo fechado de costas um para o outro. Lulua e Rehena, que estavam de costas uma para a outra, estavam ao lado de Ka, que estava costas para a garota de vermelho.

–Se não sabem aonde vão, não podem estar perdidos.– dessa vez a criança disse.

–Quem disse isso?– Ka perguntou alto ao vento.

–Sigam em frente e façam o que tem de fazer que eu respondo. Não estão muito longe.

–Você é Kistune?

–Há uma árvore caída ao lado de uma grande pedra. Em baixo da pedra há uma caverna. O que procuram pode ou não estar lá.– sua voz foi ficando distante até sumir.

–O que acham?– Rehena perguntou.

–Acho que está falando a verdade.– a garota respondeu.

Lulua e Rehena olhavam nos olhos de Ka, que olhava para os da garota.

–Vamos.– ele disse, sem pensar duas vezes e os quatro foram em frente.

Rehena sacou sua espada prateada, que brilhava à luz da lua.

–Invadir o covil dos lobos raivosos? Vamos mandar ver!– ela disse.

Eles só precisaram passar por uma colina e encontraram a caverna em baixo da grande pedra com a árvore caída.

–Como a garotinha disse.– Lulua sussurrou impressionada.

Nesse momento, dezenas de pares de olhos surgiram na escuridão, cercando-os. Uma atmosfera sombria se formou e rosnados eram ouvidos em todos os lados. Ka, Lulua e Rehena cercaram a garota, formando um escudo humano.

Então, uma forma negra com olhos vermelhos e presas enormes saiu da escuridão e foi de encontro à Rehena. Ele vinha em alta velocidade e pulou, mas ela o acertou com a espada jogando-o para o lado. Era um lobo preto e havia soltado um gemido quando fora atingido. O lobo caiu no chão e se levantou percebendo que estava com o peito sangrando. Revoltados, os outros se revelaram e se prepararam para atacar. Era uma alcateia de mais de vinte enormes e raivosos homens-lobo. Cada um deles deveria ter quase um metro de altura e em torno de um metro e oitenta de comprimento, incluindo a cauda.

Quando cinco deles iriam iniciar seu ataque, uma voz rapidamente interrompeu-os.

–Esperem! Parem!– era uma voz feminina, firme.

Uma mulher saiu andando de dentro da caverna. Ela vestia a pele de um lobo de pelo cinza e seu capuz era uma cabeça de lobo verdadeira.

–Eles não são ameaça.

Os lobos se afastaram.

–Bradock, entre e cuide desse ferimento.– ela disse ao lobo que estava ferido. Ele mancou até ela, que lhe jogou uma pele de urso que segurava.

Os pelos de Bradock foram caindo aos poucos, enquanto ele tomava a forma humana de um homem de quase quarenta anos. Enrolado na pele de urso, Bradock entrou na caverna seguido por alguns outros lobos. Ka e as outras olhavam atentamente tudo o que acontecia.

–Você está bem, cavaleira?– a mulher perguntou a Rehena.

Rehena piscou os olhos como se estivesse saindo de um transe.

–Hã?... Ah, sim. Desculpe. Estou bem.

–Ótimo, pois você não é bem-vinda aqui.

–O quê? Por quê?– Ka interveio.

–Saia daqui, ou terei que matá-la.– os lobos que ainda os cercavam, se aproximaram rosnando.

–Espere!– disse Ka. –Só queremos que respondam algumas perguntas.

–Sejam rápidos, não vou poder controlá-los por muito tempo.

–Certo. Primeiramente quem é você?

–Sou Peeira, a fada dos lobos. Tenho o poder de me comunicar com lobos comuns e o de liderar os licantropos.

–Há uma semana.– a garota de vermelho saiu de trás de Ka. –Um de seus lobisomens atacou minha avó e tentou me matar também.

–É de nossa natureza.

–Mas não fizemos nada a vocês!

Os lobos se aproximaram um pouco mais. Peeira levantou sua mão dizendo que ficassem.

–Ousa me desafiar, mundana?– Peeira aumentou o tom de voz.

–Seu lobisomem não tinha o direito de fazer isso!

–Lobisomem? Era somente um?

–Sim.

–Impossível! Atacamos em bando. Assim nossas chances da presa fugir são menores. Talvez tenhamos um intruso em nosso território.

Nesse momento, Bradock saiu da caverna, porém dessa vez estava vestindo roupas (na verdade era só uma calça jeans) e seu peito estava enfaixado. Ele vinha com passos lentos e a mão ao peito. Rehena achou que seria melhor continuar calada.

–Talvez seja aquele inútil que expulsamos há tempos.– Bradock disse.

–Athos?

–Quem é Athos?– Lulua perguntou.

–Athos é um Corredor.– Bradock respondeu.

–Corredor?

–Corredor é o licantropo que tenta correr do fardo de ser lobisomem.

–Isso é ruim?

–Uma vez transformado.– Peeira disse. –Não há mais como voltar a ser humano.

–Ele sabe disso, não sabe?– Ka perguntou.

–Ele não quer acreditar nisso. Acha que existe alguma forma de voltar.– Bradock respondeu.

–Isso já não é problema nosso.– Peeira disse. –Vão embora agora mesmo.

–Tudo bem, mas sabe onde podemos encontrá-lo?– disse Ka.

–Não. É da natureza dos lobos serem seminômades.

–Certo.

Eles saíram sem dar as costas para os lobos. Depois de certa distância, correram até sentirem que a atmosfera sombria havia sumido.


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Notas finais do capítulo

Irá melhorar!

—--
Revisado por Magdalena Cunha



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