O Último Chamado escrita por Guido


Capítulo 1
Capítulo 1




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[Guido POV on] A parte mais difícil foi voltar. Eu me sentia abafado, como se a fumaça de todos aqueles cachimbos tapassem minhas narinas. Eu estava tonto também, dando passos vacilantes para trás, e sem querer arrastei bruscamente o meu braço esquerdo na moldura de madeira de um dos quadros, e senti uma ardência suave no local afetado. Lembro-me de olhar a ferida e ver um pouco de sangue. Depois acordei, suado e desorientado. [Guido POV off]

Confuso e entontecido, Guido percebeu que chovia muito lá fora, trovejava e relampejava. E mesmo suado, ele sentia o frio que atravessava a porta de correr da varanda e penetrava gélido na sala de estar, onde ele estivera dormindo até segundos atrás, antes de despertar de mais um daqueles sonhos obscuros que vinha tendo nas últimas semanas. Levantou-se do sofá, bambo, e caminhou assustado até a porta da varanda, fechando-a. Com frio, esfregou os braços, e depois bocejou. Estava escuro ali, a não ser pela luz pálida do céu nublado de final de tarde que invadia a sala. Guido se jogou novamente no sofá, sentindo-se estranho. Era por causa do sonho, ele sabia. Fez esforço para se lembrar, e de repente, num lampejo, as últimas imagens voltaram a sua cabeça. Ele viu a si mesmo, com lábios ensanguentados, devorando um coração humano, numa sala vermelha, com paredes vermelhas e chão vermelho, e mobília de madeira avermelhada. Tudo era sombreado pela fumaça de alguns cachimbos, e havia risadas sinistras ecoando pelo ar. De repente, seus olhos encontraram-se com seus próprios olhos. Com medo, ele deu passos para trás, afastando-se da fera que tinha sua aparência e que devorava ferozmente um pedaço de carne humana. Um tanto atordoado, arrastou sem querer o seu braço esquerdo em um quadro, e viu um corte pequeno, e viu sangue. E não viu mais nada.

— Que merda é essa?... — sussurrou para si, espantado por todo aquele tom sinistro de seu último pesadelo. Não que os outros não tivessem sido ruins, eles foram. Mas esse era o pior. Viu a si mesmo como um bicho, faminto e sanguinário, que comia pedaços de pessoas e sentia prazer nisso. E ouviu pessoas que riam com satisfação ao redor, mas nunca viu seus rostos. Eram proibidos. Com uma mão, Guido esfregou os dois olhos, e depois soprou o ar. Estava tenso, e sabia disso. Foi só aí que percebeu que sentia algo estranho... uma ardência suave em seu braço esquerdo.

Ele gelou. Ele arquejou. Sua respiração enfraqueceu, e os pelos de seu corpo eriçaram-se. Lágrimas vieram aos seus olhos quando puxou com calma a manga de sua camisa, como se não quisesse ver aquilo que sabia que estava ali: um pequeno corte, com sangue vivo brotando em doses raras, mas num vermelho muito vivo por cima de sua pele branca.

Guido quis chorar. Por desespero. O pesadelo não fora real, mas o corte que tomou na lateral do braço esquerdo estava ali. Era como se um pedaço do sonho viesse para a realidade, causando um assombro absurdo.

— O quê... — as palavras se perderam num tom choroso. Guido ficou um tempo olhando a ferida, como se estivesse em transe. E tão de repente, num rompante de pânico, ele saltou do sofá e apanhou o celular sobre a mesinha de centro a sua frente. O número para o qual ligou chamou umas duas vezes, e logo atenderam.

— Thomas? — disse Guido, abrupto, em seguida contendo-se para não despejar tudo de uma só vez.

— Guido, você tá bem? — a voz do outro lado da linha soou com estranheza. — Tá tudo bem? — enfatizou.

— Tudo sim... — respondeu Guido. Depois soprou o ar, passando a mão livre pelos cabelos. Estava desconcertado e sua voz transparecia isso. Nem adiantava fingir... ele olhou novamente o ferimento no braço esquerdo, e não conseguiu dizer mais nada... limitou-se a andar de um lado a outro pela sala.

Do outro lado da linha, Thomas pareceu soltar um riso.

— Aposto que não está tudo bem. — disse ele, com a voz mais calma. — Eu vou aí...

— Não! Onde você está? Eu vou...

—... Não mesmo! — interveio Thomas, apressadamente. — Você não vai dirigir assim. Eu conheço você muito bem pra saber que não está em condições...

—... Thomas, eu quero sair um pouco da minha casa, se não eu surto... eu pego um táxi, prometo.

Thomas fez silêncio.

— Vem pra cá. Vamos conversar. — disse ele, com uma profunda respiração. — Mas não dirija... — acrescentou rapidamente.

— Tá. Eu to chegando. — Guido encerrou a chamada.

Vinte minutos depois estava estacionando seu carro em frente à casa onde Thomas morava. Chovia muito, mas Guido não usava guarda-chuva. Estava molhado, e um pouco transtornado. Subiu os poucos degraus que conduziam a porta de carvalho da residência, e tocou a campainha. A porta se abriu rapidamente, e a sua frente apareceu Thomas. Ele era um homem muito bonito, em seus trinta anos recém-completados. Cabelos escuros, e olhos profundamente azuis sombreados por grossas sobrancelhas. O corpo era atlético, e a pele clara. Thomas era psicólogo, e um antigo namorado de Guido. Ao fim do relacionamento, restou a amizade. E eles eram grandes amigos.

Guido entrou rapidamente.

— Você veio dirigindo? — disparou Thomas, franzindo o cenho ao vislumbrar o carro de Guido parado na calçada oposta. Guido o encarou, como se não entendesse nada do que lhe diziam. Thomas fechou a porta. — Você me prometeu...

— Thomas! — berrou Guido, e agora suas lágrimas desciam pelo rosto. Era como uma criança grande, uma criança de vinte e oito anos. Um menininho sem alguém que o protegesse... Thomas apiedou-se, e o abraçou, sentindo todo o frio do corpo molhado de Guido.

— Não chora, Gui... eu to aqui. — disse ele, com ternura. — O que aconteceu? — Guido se afastou do abraço tão inesperadamente que Thomas mal teve tempo de abaixar os braços. — Você não vai me contar o que aconteceu?

Em silêncio, Guido se despiu do casado, atirando-o ao chão. Depois enrolou a manga esquerda da camisa. Thomas observava tudo, com a expressão bem calma, mas muito séria. Finalmente, Guido esticou o braço para ele, mostrando-lhe a ferida que já não sangrava mais. Thomas olhou-a, meio incerto. Não sabia o que dizer, porque simplesmente não entendeu a situação. Era algo um pouco maior que um arranhão, era corte fino. O silêncio pairou.

— Eu me cortei num pesadelo, que eu tive mais cedo. — disparou Guido, seco. Mas ainda havia lágrimas em seu rosto...


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Notas finais do capítulo


>> Esse capítulo é apenas um teste, se a história conseguir pelo menos um leitor, ela continua rs. Se você o leu, obrigado! :]