Céu Noturno escrita por Gui Alves


Capítulo 4
Silêncio




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4. Silêncio

“Virão outras noites.” Conforta Sophie, tocando-a no ombro.

“Eu queria que não.” respondeu Kaya, enquanto caminham pelas ruas escuras. Os postes de luz não não suficientes para a noite tão escura, depois que a lua prateada se escondera por trás das nuvens negras.

“Ah, Kaya...”

“Tudo bem, eu já sei: esse é o nosso trabalho e eu tenho que aceitar.”

Continuaram caminhando em silêncio, ouvindo o som de um carro ao longe, o pio de uma coruja. Kaya teria ficado com medo, se não soubesse que agora trabalhava para a morte.

“Trabalhar para a morte. Que ótimo trabalho.” riu. “Como será que ela é? A morte. Quer dizer, se trabalhamos para ela, ela tem de ter uma forma, não é?”

“James disse que ela pode tomar a forma que quiser. Lobo, corvo, pombo negro, gato, mulher.”

“Como James sabe disso? Sabe, talvez ele seja a própria morte.”

“É, ele sabe de muitas coisas.” disse Sophie, quando chegaram ao prédio. Ela parou, se virando para Kaya. “Mas não acho que ele seja. James é só um ceifador muito experiente.”

“O nosso yoda.” completou Kaya, rindo. Subiram e entraram no apartamento frio e silencioso. “Onde eles estão?” perguntou, se jogando no sofá.

“Trabalhando.” respondeu Sophie.

Logo depois de Kaya deixar o parteiro escapar, Raven, escondendo sua irritação - que James dissera não ser pessoal, mas normal com todos os ceifadores novatos - deixara o hospital com Parker e James, sem dizer para onde iam. Trabalhar, respondera Sophie.

“Quando Raven e Parker aparecem” comenta Sophie da cozinha, enquanto põe a chaleira no fogo “, James começa a sair com eles durante a noite.”

“Boates?” tenta Kaya, mas Sophie não ri.

“Ele sempre volta estranho. As vezes machucado.” diz.

“E você nunca perguntou a ele?”

“Existe um motivo para o apelido dele ser Sr. Mistério. Bem, não é um apelido, mas cairia muito bem.”

Depois do chá foram para a cama. Kaya dormiu mais rápido dessa vez, mas despertou logo após alguns pesadelos. No primeiro, se vira atacando vários parteiros no hospital, mas ao invés de luz eles explodiam em sangue; em outro, se transformara em uma parteira, e Sophie e James estavam atrás dela no parque. No último que se lembrava, havia caído em uma piscina vazia e fria; os cortes nos pulsos começaram a doer, e seu sangue começou a encher a piscina até transbordar, enquanto ela se sufocava. Acordou atônita.

Ainda estava escuro, e Sophie suspirava durante o sono, enrolada em vários cobertores. A pele pálida brilhava na escuridão, enquanto o cabelo que caia por cima dos cobertores se misturava às trevas.

Kaya se levanta, enrolando-se em um cobertor e saindo do quarto. As luzes do apartamento estão apagadas, mas a porta da varanda está aberta, por onde ela vê uma silhueta magra e alta.

“O que faz aqui?” pergunta a James, pondo-se ao seu lado. A noite é fria, e a neblina deixa a vista dali esbranquiçada. Kaya se aperta mais no cobertor, se arrependendo um pouco por ter deixado sua cama.

“Olhando a cidade.” responde ele, apertando os olhos para a vista coberta pelas neblina.

“Onde estão os outros? Raven e Parker.”

“Já se foram.”

“Ah.” Kaya tira os braços para fora do cobertor para se encostar na grade da varanda, mas ela está gelada como gelo. Se enrola imediatamente, tremendo de frio. James usa apenas uma camiseta escura, e mesmo tendo os pêlos dos braços arrepiados, não parece sentir frio.

“Me desculpe por hoje.” diz a garota. Não queria pedir desculpa de verdade, pois sabia que não se importava com seu fracasso. Matar uma pessoa, mesmo que esta fosse feita de luz, não fazia parte das 100 coisas que ela desejava fazer em vida, em sua vida de verdade, no Brasil. “Pelo meu fracasso.”

James dá de ombros, se virando para ela. Seus olhos estão cerrados de sono, e ele parece completamente cansado. Seus ombros estão curvados como se ele pudesse cair a qualquer momento, mas ele se mantém firme com os cotovelos sobre a grade gelada.

“Tudo bem.” diz ele. “Ninguém renasce um ceifador perfeito. Haverão outras noites.”

Kaya assente.

“A quanto tempo você está aqui? Como ceifador.” pergunta ela, lembrando-se de repente do que Sophie falara sobre ele não responder perguntas; aquilo atiçara ainda mais a curiosidade de Kaya.

“Não quero falar sobre isso.” James abaixa a cabeça, deslizando uma unha curta sobre o braço arrepiado. Ele não falara bruscamente; falara quase em tom de desculpa, como se aquilo o entristecesse. Era óbvio que sim.

“Como você sabia que eu iria... renascer naquele dia, no parque?” Lembrou-se ela. Ainda sentia a confusão que sua cabeça estava naquele momento, o frio intenso como se tivesse tomado banho gelado.

“Depois de um tempo é fácil saber.” Ele quase ri, apontando para o céu escuro. “O tempo fica estranho, e uma nuvem negra se forma em cima do local. Quase ninguém percebe, mas quando se é do ramo é fácil notar coisas do tipo...”

“Já ouve alguém que voltou do coma? Que deixou de ser ceifador?” Kaya sente o peito se aquecer com a esperança de tal fato; mas é apenas coisa de sua cabeça. Seu sangue é gelado.

“Você faz perguntas demais.” James ri, mostrando os dentes perfeitos. “Parece até a Sophie, mas um pouco menos insistente.” Kaya ri também. “Já ouve um garoto que voltou. Mas não sei se ele voltou bem.” O sorriso desaparece de seu rosto, e ele deixa a cabeça cair de novo.

Kaya suspira.

“Eu quero voltar logo. Não aguento mais me sentir um cadavér.” Ela faz uma careta, e ambos riem de novo.

“Você não parece um cadavér.” diz ele. “Só precisa de um pouco da maquiagem da Sophie. Se bem que você parece ter usado pó de arroz demais.” As risadas ficam mais altas, e Kaya finge dar um soco em seu braço.

Mas a apenas alguns milímetros do toque, os pêlos do braço de James se arrepiam ainda mais, e ele se afasta bruscamente. Kaya também sentira algo com o toque: sentira calor, como se o sangue dele fosse quente. Como se ele fosse humano.

James pigarreia, coçando a cabeça.

“Amanhã vamos levar você para o pub onde trabalhamos.” Ele tenta sorrir, mas o meio sorriso se esvai rapidamente.

“Uau.” diz ela, surpresa. “Vocês trabalham? Quer dizer, a morte não paga pelos serviços? Ela deveria, não?” Apenas sua risada parece verdadeira agora. Kaya fica séria, em silêncio, enquanto James observa as nuvens negras que se juntaram no céu. Uma brisa fria sacode seus cabelos negros, e ela trinca os dentes.

“A quanto tempo você é ceifador?” pergunta novamente, quase suplicante. James molha os lábios, mordendo o inferior ligeiramente, como se tentasse impedir algo de escapar. Ele se vira para ela, fitando-a nos olhos, e deixando a cabeça tombar de novo. Kaya também fica cabisbaixa, bufando.

“Eu só queria saber quanto tempo vou me sentir assim. Como um cadavér.” tenta. Mas James não ri. Ele se endireita, e depois de alguns segundos entra, sem se despedir. Kaya se vira, observando as cortinas esvoaçarem com o vento, fitando a escuridão dentro da casa. James já devia estar no quarto, em sua cama quente.

Ela entra também, mas estava gelada demais para conseguir dormir.

Logo cedo, enquanto a neblina desaparecia com os primeiros raios de sol, Kaya ajudou Sophie a preparar o café, arrumando-se em seguida para visitar seu lugar de trabalho, o pub ao qual James falara. Kaya não se lembrava se já havia trabalhado alguma vez em sua outra vida; também não conseguia pensar num trabalho em que se sairia bem.

O pub ficava a poucos quarteirões dali, enfiado entre dois prédios velhos que pareciam desertos. Quando chegaram ainda não havia movimento, somente um senhor rechonchudo colocando as cadeiras de madeira em cima das mesas. O lugar era como um bar que Kaya se lembrou de ter visto certa vez, com cartazes nas paredes, uma mesa de sinuca e uma cabeça empalhada atrás do balcão, mas ao invés de um animal essa cabeça pertencia a um homem sorridente, que erguia em um braço saído da parede uma caneca espumante de cerveja.

“Oh-oh, quem é esta mocinha?” o homem rechonchudo vira a última cadeira do pub, alisando o pouco cabelo para trás, e colocando os punhos na cintura.

“Arranjamos alguém para a vaga que faltava.” diz James, tocando Kaya levemente nas costas, e empurrando-a em direção ao homem. “Kaya, este é Mister John.” diz ele, sem olhar para ela.

Mister John se aproxima em passos lentos, erguendo a mão de dedos gorduchos para a garota. Kaya retribuiu o aperto, sentindo sua mão quente de humano.

“Nossa.” diz ele, se arrepiando. “Você precisa de algo para se esquentar. James, pegue uma cerveja para esta mocinha.”

“Ah, eu não bebo.” Se desculpou ela, enfiando as mãos no bolso da jaqueta. Deveria ter se lembrando de usar luvas, como Sophie fazia.

“Então traga um café para ela.” pede Mister John, estufando o peito largo enquanto respira. “Ou você também não bebe cafeina?”

Kaya assenti, sorrindo, caminhando em seguida para o balcão, no encalço de James e Sophie.

“Você deveria ter me lembrado de usar luvas.” sussurrou para Sophie, enquanto iam para trás do balcão, ficando embaixo da cabeça do homem com a caneca de cerveja.

“Tudo bem, ele já é acostumado com nossa estranheza.” Sophie caminha até a máquina de café expresso, grudada a outras máquinas enferrujadas, apanhando um copo de plástico comprido e despejando o liquido escuro e quente nele. Entregou para Kaya, que se arrepiou com a quentura da bebida. Ah, como era bom sentir esse calor pelo menos uma vez! Kaya fechou os olhos e apertou o copo contra as bochechas, contra o pescoço, esfregando-o como sabonete. Inalou o cheiro do café, forte, enquanto sente a pele queimar pelo contato.

Quando abre os olhos, relutante, Mister John a encara do outro lado do balcão. Kaya abaixa o copo bruscamente, fazendo a bebida transbordar e sujar seus dedos.

“Normalmente as pessoas bebem isso.” diz ele, cerrando os olhos, mas mantendo a aparência jovem de quem está prendendo uma risada. “Espero que um dia James nos traga uma garota normal.”

“Tudo bem.” diz Sophie, depois que Kaya termina o café. “Hoje você só vai observar o trabalho. Talvez não seja seguro deixar você fazer algo hoje.”

E assim, o dia de Kaya começa observando James entregar cafés e cervejas para os clientes que começam a encher o pub, e ver Sophie entregar bebidas de mesa em mesa, ou limpar a sujeira delas. De vez em quando alguém parece se perguntar o que aquela garota coberta de roupas escuras faz sentada num banco observando o garoto alto e magro trabalhar, mas Kaya lançava apenas um sorriso.

James trabalhava em silêncio, as vezes murmurando algo para si mesmo, quando algum bêbado derrubava bebida no balcão. Quando deixava a cozinha, as vezes parecia lançar um olhar para Kaya, mas ela não tinha certeza. Só sabia que ele devia estar chateado pela noite passada; ela poderia se desculpar, mas não tinha culpa de querer saber um pouco mais. Talvez James não se lembrasse de nada também, ou estivesse ali a tão pouco tempo quanto elas.

Quando o dia estava perto de escurecer, o sol lançando manchas laranjas pelas janelas cinzentas, e o pub ficando com gente suficiente para ocupar apenas algumas mesas, Kaya se sentou ao balcão, enquanto James lia um panfleto qualquer. Ele não ergueu os olhos por longos minutos, até empurrar o panfleto para longe e pigarrear.

“Precisa de ajuda?”

“Não, é só que...” Kaya não consegue terminar, pois não sabe o que dizer. “Me desculpe por ontem.”

“Tá ok.” diz ele, girando uma caneca suja que havia ali.

“James, é que eu quero saber.” diz ela, colando-se no balcão de madeira e escura e quase caindo do banco onde estava sentada. “Eu quero saber quanto tempo vou ficar assim, quando vou poder voltar para casa.” Ela havia dito alto o suficiente para chamar atenção de alguns caras que passavam perto dali, e James arqueou uma sobrancelha, cerrando os lábios. “Desculpe.” Kaya se sentou no banco, aquecendo as mãos nuas entre as pernas. “Eu quero saber o que sou. O que eu sou de verdade.” Aproximou-se mais dele, quase sussurrando. “E por favor, não me venha com essa história de anjo da morte; isso não existe. A morte não é uma pessoa, não é uma forma, é só... a morte. O destino de todos nós.”

Os lábios de James se arquearam levemente, e ele esfregou o rosto com as mãos, cansado. Agora ela percebia que ele estava ficando com olheiras escuras.

“Kaya.” começa ele, apoiando a cabeça entre as mãos, sem olhar para ela. “O conhecimento não se aplica a tudo.” Kaya ri.

“Você parece um velho falando. Está quase com a cara de um.”

Ele sacode a cabeça, sem rir.

“Como eu posso te explicar sem parecer clichê? Alguém já te disse que as coisas mais verdadeiras são aquelas invisíveis?”

“Já, mas eu consigo me enxergar muito bem. E estamos falando sobre morte, entregadores da morte e pessoas que explodem em luz.”

“Então. Somente expanda essa frase para tudo no mundo, e você vai entender que nem tudo é o que você vê. Acredita em Deus?”

Kaya se agarra ao balcão, mordendo o lábio.

“Acho que sim.”

“E você pode vê-lo?”

“Essa não é uma boa comparação.” diz ela.

“Eu só estou dizendo para você acreditar. Acreditar que existe mais coisas que você não pode ver. Ainda. Você não precisa ver o dragão de cômodo para saber que ele existe. Você não entende, não é?” Um cara barbudo estilo motoqueiro apareceu no balcão, e James não voltou a falar no assunto.

Dois dos funcionários haviam faltado naquele dia, e James e Sophie tinham que cobri-los. Assim, Kaya voltou sozinha para casa, remoendo dentro de sua cabeça que já começava a doer, a conversa com James e o fracasso de sua primeira 'caçada'. Não queria ter ido bem, sabia que não, mas queria mostrar a James que era capaz de suportar aquilo, ser um bom anjo da morte. “Quer dizer, ceifadora.” se corrigiu, enquanto caminhava pelas ruas escuras em direção a sua nova casa.

Iria mostrar a eles que era capaz. Iria mostrar a James, e principalmente a ardilosa e nada adorável Raven.

Depois de um banho fumegante, vestiu um jeans preto de Sophie, camiseta de manga longa preta, um suéter e sua jaqueta de gola justa. Calçou as botas de cano alto que mais esquentavam, e caminhou até o espelho, observando seu reflexo. Saiu do banheiro e voltou segundos depois, com o estojo de maquiagem de Sophie; para sua surpresa, usou a maquiagem como se já fosse expert nisso.

Agora, seus lábios azuis de frio estavam pintados de coral, e ela conseguira dar uma cor em seu rosto pálido. Penteou o cabelo negro, desfazendo os nós do cabelo e prendo-o num rabo-de-cavalo.

Entrou, pela primeira vez, no quarto de James, sentindo o perfume selvagem que impregnava cada canto. Era como se ele estivesse ali. O quarto era simples como o de Sophie, mas haviam algumas peças de roupa jogadas aqui ou ali. Kaya não demorou para encontrar o estojo de punhais em baixo da cama.

O hospital tinha o movimento comum de todas as noites. Algumas pessoas erguiam os olhos para a garota de preto que passava, mas só por alguns segundos.

Kaya não sabia exatamente como começar. Caminhando pelo prédio, não encontrou ninguém que parecesse um parteiro. E também tinha medo de ferir alguém errado; será que James e os outros a perdoariam?

Caminhou pelos corredores gelados onde ficavam os quartos, mas não estava preparada para aquilo naquela noite. O frio era como uma parede de concreto por ali; quanto mais andava mais se sentia presa a ele.

Desceu para o segundo andar, impaciente, disposta a passar a noite ali se fosse possível. Com as mãos dentro dos bolsos da jaqueta, apertou o cabo do punhal que havia escolhido – um pequeno, mas afiado, com o cabo de madeira escura -, e trincou os dentes. Foi então que a viu.

Estava sentada na sala de espera, ao lado da saída onde Kaya e os outros haviam estado na noite passada. Ela não era loura, como o primeiro parteiro que vira, mas tinha o cabelo castanho curto que estava despenteado como o de uma boneca bagunçada. Usava um vestido claro, com barra de renda, e estava com as mãos enfiadas entre as pernas, mas não era de frio. Mesmo com a brisa fria que fazia os outros ali se encolherem, a garota olhava interessada para um senhor sentado metros a sua frente, que usava uma camisola branca do hospital e tinha os olhos fixos e embaçados na direção para onde a enfermeira havia ido.

Qualquer um podia perceber que ela irradiava uma luz, nos olhos, na pele, no cabelo. Não era o tipo de coisa que se podia chamar de sobrenatural, talvez uma luz divina, mas Kaya sabia que ela não era normal. Não era humana. Pelo menos não em sua forma de parteira.

Era um favor, pensou, observando o rosto frágil da garota. Continuava admirada, olhando para o senhor com seus olhos verdes. Se Sophie estivesse ali, ou James, pensou, com um aperto no peito, falariam que ela estava pensando em trazer o homem de volta a vida, quando ele morresse. Mas o ar ali não estava gelado, e Kaya sabia que a hora do senhor ainda não havia chegado.

Usaria a técnica que Sophie fizera.

“Com licença.” pediu, se aproximando da garota. Ela ergueu os olhos, sorridente, irradiando calor, como fogo. Kaya se engasgou com as palavras que tentava dizer, pois sentia que aquela garota era capaz de ler sua mente, com a intensidade de seus olhos verdes. Ergueu o braço, apontando para fora. “Minha mãe passou mal.” disse, quase sussurrando. “Por favor.”

A garota se ergueu, caminhando para a escuridão lá fora. Kaya olhou ao redor, mas ninguém dava atenção a elas. Atravessaram as portas, enquanto as folhas das árvores farfalhavam com o vento que erguia o cabelo de ambas; mesmo com o vestido fino, a parteira caminhava como se andasse ao sol.

Kaya engoliu em seco, enfiando a mão no bolso e deslizando o punhal para fora. Caminhou para fora da luz do poste, enquanto a parteira caminha para a viela escura em direção a rua.

“Onde ela está?” pergunta, com a sua voz infantil. Poderia ter 11, 12 anos. Kaya apertou os olhos, tentando mentalizar o que Sophie dissera. Já estão a alguns metros da porta, onde ninguém pode vê-las. Mesmo com a luz da lua, que ilumina a cidade mais do que qualquer poste de luz, ninguém vai notá-las ali.

A viela é escura, por causa das árvores ao redor. Quando elas farfalham, Kaya se encolhe de frio, erguendo o punhal. A garota vai se virar a qualquer momento, quando perceber que não há ninguém ali para ajudar. Talvez ela não seja capaz de perceber que se trata de uma armadilha. E quando estiverem fora da viela, será perigosa demais fazer.

Com as botas fazendo barulho sobre as folhas no chão, Kaya caminha até a garota, apertando os lábios numa linha curva e erguendo o punhal. Ela acerta suas costas, sentindo a carne se abrir e o osso impedir a passagem completa da arma.

Não há sangue, como previu.

Apenas luz e um calor fumegante que banha sua mão e seu braço, quase queimando-a. A garota se curva com o golpe, enquanto os olhos emitem jatos de luz celestial. Dura apenas alguns segundos, e então ela cai e desaparece numa explosão de luz. Mesmo com os olhos apertados, Kaya sente o calor queimá-la e pode quase vê-lo.

Quando abre os olhos, não há mais nada, apenas seus punhal erguido no ar, enquanto a luz da lua reflete sobre ele. Suspira, deixando o braço cair.

A porta do apartamento se abre, e dedos cobertos por renda preta tocam o interruptor, derrubando luz sobre as trevas que cobrem o lugar. Sophie entra primeiro, dando um gritinho ao ver Kaya sentada no sofá, pernas cruzadas, enquanto balança o punhal.

“Saí para caçar.” diz ela, fitando os olhos desconfiados de James. Era estranho dizer 'caçar', sentia-se algum tipo de predador. Mas gostava do efeito que causa em seus colegas, surpresos. “Encontrei uma parteira no hospital e outros dois no English Garden.” Pousou o punhal que balançava na perna, deslizando um dedo pela lâmina.

“Você está bem?” Sophie deslizou a bolsa preta pelo ombro, jogando-a numa poltrona perto da porta da varanda. Sentou-se ao lado de Kaya, agarrando sua mão. Kaya se arrepiou com seu toque gelado, lembrando-se da sensação de quentura que fora apunhalar a parteira. Dava até vontade de caçar mais.

“Não foi tão difícil quanto imaginei.” sorri, se virando para James. Ele a encara, e ela acha ver seus lábios quase se arquearem em um sorriso, mas fora tão rápido que ela não pôde ter certeza. James assenti, caminhando para seu quarto em passos largos.

Kaya escorrega para uma cadeira, curvando-se para o jornal sobre a mesa. Ela sabe que está em inglês, mas consegue entender cada palavra. Ela começa a repeti-las em voz alto, rindo.

“O que foi?” pergunta Sophie, sentando-se ao lado dela, com uma tigela de cereais.

“Não é nada.” ri Kaya, tentando prestar atenção na matéria de capa.

Grupo religioso faz fama após trazer criança da morte

“Isso é sério?” pergunta a Sophie, mostrando-lhe a manchete. A outra assenti.

“É o que os parteiros fazem.” diz. “Trazer pessoas da morte para que outros ganhem fama por eles.”

“Sabe, eu nunca entendi porque vocês chamam eles assim.” Kaya afastou o jornal, erguendo-se e buscando uma xícara para o café. Sophie dá de ombros.

“Porque eles trazem as pessoas à vida. E eles tem toda aquela luz, que achamos que seria um bom nome.”

“Poderíamos chamá-los de anjos.” sugeri Kaya, enchendo sua xícara de café fumegante, enquanto Sophie torce o nariz e volta para seu cereal. “Seria um bom nome.”

James aparece, sentando-se a mesa e puxando o jornal. Enche uma xícara de chá, sem olhar para Kaya. O que ele tinha? Ficara tão irritado assim só porque ela havia feito algumas perguntas?

“Tem uma coisa que eu queria saber.” começou ela, e Sophie ri.

“Você faz perguntas demais.”

Kaya olha para James, que sorri por trás do jornal. Kaya volta a falar.

“Por quê nos tornamos ceifadores e não parteiros? Quer dizer, seria muito melhor ser um deles, ser quente e andar por aí falando com os outros, sem precisar usar roupas e mais roupas e ter que sair para caçar.” Sophie abre a boca para falar, mas James é mais rápido que ela.

“Talvez tenha a ver com essa linha nos seus pulsos.” diz, encarando-a. Kaya abaixa os olhos para os cortes nos pulsos, engolindo em seco. James se volta para o jornal, e ela ergue os olhos para os pulsos dele. Em cada um há uma linha fina e branca, mas quase transparente. Precisaria de muito tempo para isso. 


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