O Príncipe Cinza escrita por Micaela Salvya


Capítulo 14
Nostalgia




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Minha pele estava brilhante com o suor que escorria em rios pelo meu corpo franzino. Herdado de minha mãe, minha pele parecia quase translúcida de tão branca. Como mármore.

– Agora golpeie direto e em seguida os movimentos que te ensinei, feche os pulsos sobre o rosto, mantenha a guarda levantada na altura da bochecha. Mais para cima. Isso, de novo.

Repeti os movimentos. Na centésima meu corpo não aguentava mais.

– Levante os pulsos, sua guarda está baixa. De novo.

Soquei o boneco de pano de novo sempre mantendo minha guarda. Quando possível. Meus braços pesavam uma tonelada e estava ficando difícil mantê-la.

– Mais força no soco. Equilíbrio. Mantenha o seu equilíbrio. E levante a guarda.

Fiz mais uma repetição. Se eu pudesse cairia no chão naquele momento. Minhas pernas já tinham passado da dor, começaram a ficar pesadas e dormentes. E eu sabia que se hesitasse somente um segundo não teria mais força para me levantar, eu desmaiaria.

– Muito bem, filha. Antes de descansar me diga sobre a minha essência.

Mesmo sem que meu pai me pedisse fiz mais uma sessão de repetições, me dando tempo de analisar sua essência. Era brilhante, mas era difícil de achar uma palavra certa para descrevê-la como um sentimento, a palavra era muito difícil de achar.

– Orgulho, você sente orgulho de mim papai.

– Muito bem, Laura. Descanso, se você desmaiar na terra suja sua mãe vai me matar.

Como invocada pelo seu nome, mamãe apareceu na janela que dava pro quintal.

– Meu querido, é melhor essa menina estar com forças para me dar um abraço antes de ir tomar banho ou você é quem vai encarar a terra suja.

Papai deu uma gargalhada e me pegou no colo me levando para dentro.

–---

Este foi um dia e tanto. Lembro-me de estar andando no quintal colhendo pedras para jogar no lago quando percebi que Fin não estava ao meu lado. Na verdade ela não estava em lugar nenhum. Corri pela terra largando minhas pedrinhas desesperada. Uma pegada menor do que a minha estava impressa na terra lamacenta, levando para dentro da floresta. Usei as habilidades que a mamãe me ensinou para “rastrear” alguém. Essa era a palavra estranha que ela usava.

Entrei na selva, as pegadas seguiam na trilha. De repente ouvi um grito, me apressei em direção a ele.

– Fin! – corri até encontrar minha irmã de frente a um cervo.

– Você é tão bonitinho! – ela disse dando uma gargalhada enquanto acariciava o pescoço esguio do cervo.

– Você me assustou! Você sabe que a mamãe disse sobre desaparecer assim. – repreendi usando o tom que minha mãe usava.

– Mas eu não entendo. Eu venho visitar os meus amigos, da ultima vez o senhor urso foi muito caridoso e me trouxe morangos. O senhor cervo me trouxe flores amarelas, viu só?

Gargalhei e depois me lembrei do rosto da mamãe e me conti levantando as mãos a boca. Ela não ia gostar disso. Mas afinal esse era o nosso segredinho com o papai.

–--

– Respirem fundo. Isso. Agora exalem. Imaginem qualquer coisa.

O papai estava sentado concertando um relógio de parede gigante. Isso era o que ele adorava fazer nas horas livres e eu e Fin adorávamos esconder algumas pecinhas, o que deixava ele maluco.

Imaginei bolinhas de sabão, papai odiava bolinhas de sabão também, ele começava a espirrar por algum motivo estranho.

– Laura, eu sei que é você, solte esses ponteiros agora mesmo. – disse ele num tom serio.

Abri um olho espiando. Mamãe estava segurando o riso. Mãos imaginárias seguravam três ponteiros de diversos tamanhos no ar longe do alcance do papai. Minhas bolinhas estavam o fazendo espirrar loucamente.

– Não sou eu! – disse sem segurar a risada.

– Ania. É você?! –mamãe começou a gargalhar alto.

Fin estava brincando de estourar as bolinhas translúcidas, pulando pela sala. Diversos passarinhos, de variadas cores entraram pela janela e a ajudaram no trabalho. Aquela foi uma das ultimas boas memorias que eu tinha.

–--

Me lembro especificadamente de um acontecimento muito estranho um mês depois da mamãe e o papai falecerem. Serafina e eu ainda estávamos nos acostumando com o novo ambiente e a nova rotina, quando num certo dia o entregador trouxe um pacote.

Com carinho da mamãe e do papai.

O pacote estava envolto em plástico bolha e nenhum recado ou mensagem viera em anexo.

Dentro só haviam duas coisas. Um colar de ônix e uma bussola de bronze.

Justamente por conhecer minha mãe, eu sabia que aquele colar pertencia a ela. Não houvera um dia em sua vida em que ela não usasse a joia. Assim também foi como eu e Fin fomos capazes de identificar o trabalho do papai. Ele possuía um certo fascínio por coisas que mexiam sozinhas. Como relógios e instrumentos de navegação.

No dia seguinte um único recado fora deixado em minha porta.

Nunca use o Artefato a não ser que queira mudanças.

Na porta de Fin algo semelhante apareceu.

Era assustador pensar que alguém tivera a habilidade de passar pela segurança e os grossos portões para chegar a nossa porta. Se essa pessoa podia fazer isso, o que faria se nos encontrasse? Era muito perigoso.

Nunca contamos a ninguém, e depois nada de estranho voltou a ocorrer, então deixamos para lá.

–---

Aquele foi o pior dia das nossas vidas.

E incrivelmente um dos que menos me lembro.

Não houve muito o que lembrar a não ser os sentimentos tumultuosos que me assaltaram naquele dia. A angustia, a solidão, a raiva, a negação e a dor eram tão sufocantes que não me lembro exatamente quem estava lá, ou com que ordem os acontecimentos se realizaram.

Talvez tenha sido estupidez, falta de atenção, negligencia, ou mesmo falta de respeito. Não me importei em ser atenciosa, em entender, porque isso requereria uma forca tamanha dentro de mim que não valeria a pena gastar com algo que eu não teria respostas.

Tia Claudine me disse que se eu não quisesse ver os caixões eu não precisaria.

E eu não sabia o que realmente queria.

Me lembro de ficar parada olhando a porta da sala que continha tudo o que eu já não tinha mais. Qual era o intuito de ver, de chorar sobre algo que não estaria mais lá para te consolar, para entender a sua dor?

Eu me recusava a abri-la. Eu não queria sofrer mais, meu coração estava tão apertado no peito que eu tinha certeza que não aguentaria mais nada.

Nada mesmo.

Incrivelmente frio de minha parte, sim eu admito, eu não chorara quando recebera a noticia. Eu queria, mas não conseguia. Fin chorou tanto que eu percebi que o que estava acontecendo comigo não era normal.

Alguma peca não se encaixava, eu pensava. Tem algo de errado nessa historia, mas depois de tantas e tantas vezes que me foi dito "foi um acidente", eu começara a acreditar. E esse acreditar me levara a um outro estagio.

O de negação. Acho que o estagio anterior já era de negação, mas havia algo mais profundo do que isso. Porque naquele momento encarando a porta, eu não queria entrar, porque sabia que eu quebraria minhas defesas e choraria.

Se antes eu não conseguia, agora eu não queria.

Virei e caminhei sem me importar para onde eu ia, desde que fosse o mais longe possível daquela porta. Encontrei uma sala vazia e empoeirada. Longe o suficiente que eu já não ouvia mais o murmúrio nem o choro das pessoas.

Um quarto pequeno, sem moveis, sem adornos, sem muito pintura também. A tinta descascava em diversas partes e uma janela aberta mostrava o fim da tarde. Os raios rosados davam um clima estranho a sala. Não era bonito, era algo simplesmente fora do comum. Uma única lâmpada estava pendurada no teto, seus fios eram visíveis para fora de onde deveriam estar. Teias de aranha ocupavam os cantos do cômodo e a maldita lâmpada tinha vida própria. Piscava incessantemente iluminando quando bem queria.

O mundo parecia muito feliz quando eu não estava. Me sentei no chão de perna de índio e apoiei minha cabeça nas mãos. Meu mundo estava desmoronando e o mundo afora estava feliz. Eu não sei, esperava que algo maior acontecesse. Que a Terra parasse de girar, que as flores não florescessem hoje. Que o céu não estivesse rosa e sim preto.

As pessoas que eu mais amava mereciam algo mais do que isso. Eles mereciam mais do que o monótono.

E foi simples assim que eu comecei a chorar. Chorar de doer o peito, de soluçar tanto que eu não conseguia falar, não conseguia me levantar porque minhas forcas estavam sendo drenadas pela minha dor que pela primeira vez eu deixava fluir, parando de negar. Era a primeira vez que eu tirava minha perda do pacote tão pequeno que eu mesma a tinha confinado.

Poderiam ter se passado horas, dias, meses ou só minutos. Como eu dissera eu perdera a noção do tempo. O dia lá fora se transformara em noite. Nenhuma estrela se mostrava no céu. Nem mesmo a lua deu as caras.

E o céu parecia estar em tão mal estado como estava eu.

A tempestade torrencial ocultava toda a visão de onde eu olhava a janela. Eu estava congelando. Olhei para mim mesma e percebi que estava encharcada, a chuva me alcançara.

E então eu comecei a chorar de novo. Era como se o céu soubesse o que eu estava sentindo, sofrendo pela primeira vez em meses. Chorando comigo.


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