Nirvana escrita por killdream


Capítulo 1
Capítulo Único




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            O oceano de pessoas se espalhava em todas as direções no cruzamento em frente à estação de Shibuya. Ela observava atentamente do último andar do O-Front. Seus olhos fixados em uma única coisa. Aquilo que todos os humanos temem.

            Alguns ousaram chamar de Morte. Outros chamaram de Solidão. Outros, ainda, chamaram de Dor, Escuridão e, até mesmo, Luz. Nenhum deles estava totalmente certo. Nenhum deles estava totalmente errado. O que todos os humanos temem, tentando encobrir com mentiras para não ter que olhar diretamente em seus olhos. O que todos negam para não perder a sanidade. Seu verdadeiro nome era Desconhecido.

            Ela não era uma exceção. Também temia o Desconhecido... quando ainda era humana. Mas uma vez que decidira seguir pelo caminho estreito na encruzilhada, aquela jovem não era mais considerada tal. Não, ela não podia ser considerada nem mesmo uma criatura viva.

            Por um instante, sentiu que todas as pessoas na rua olhavam para ela. Ou talvez, que todas as pessoas do mundo a olhavam. E então, antes que ela pudesse abrir a boca, todos desviaram seus olhares. Um sorriso, discreto e enigmático, se formou em seu rosto assim que ela percebeu.

            E então, seu corpo se moveu involuntariamente. Eternidade se refletiu em seus olhos. Seus cabelos balançavam lentamente, apesar da força insana do vento. Até mesmo o próprio tempo parou. Tudo aquilo demorou um instante — que para ela pareceu eterno. Então, tudo acelerou de vez.

            Um estrondo, e tão logo a calçada do O-Front estava manchada de vermelho. O corpo da garota se abriu, seus ossos rasgaram o uniforme escolar de Aoyama. Algo verde e vermelho despontava pelas aberturas no crânio dela. E mesmo assim, seu rosto, mesmo que deformado, ainda tinha aquele sorriso, discreto e enigmático.

            Os pedestres observaram a cena, assustados. Alguns nem perceberam que toryanse não estava mais tocando, ou que os motoristas buzinavam impacientemente. De uma forma ou de outra, todos eles saíram do transe assim que olharam para os olhos da garota. Os olhos dela emanavam aquele mesmo sentimento de quando falavam sobre Morte.

 

———oOo———

 

            — Nozomi-chan! — A garota de cabelos ruivos gritou, dando um leve tapa no ombro da mais nova.

            — Ah... Shimizu-senpai...? — A expressão efusiva da veterana mudou para uma de completo desagrado. Suspirou, então começou a apertar as bochechas de Nozomi Hirono. — Já disse para me chamar pelo meu nome. Somos amigas, não?

            — ‘Mash... — tentou falar, enquanto a ruiva apertava e puxava suas bochechas.

            — Nada de “mas”. É Momoko. Repita comigo: Mo-mo-ko — abriu um sorriso branco que quase fez Nozomi ficar sem palavras.

            — Mo... Momoko-senpai.

            — Isso — sorriu ainda mais. — Bem melhor, não acha?

            — Un — a mais nova concordou, embora não completamente com a pergunta de Momoko.

            — Aconteceu alguma coisa? — A veterana perguntou ao ver a expressão mais triste do que o comum, se é que aquilo era possível para a normalmente depressiva Nozomi, no rosto da amiga.

            — Eu... acho que estou gostando de alguém.

          Momoko deu um sorriso travesso — Que bom! — E ela parecia realmente feliz. — Qual o nome dele? Como ele é? Estuda aqui na escola? É um veterano? Um calouro? Um... — aproximou tanto seu rosto de Nozomi que as pessoas ao redor davam olhares ainda mais estranhos para as duas. Já era incomum o suficiente ter um veterano na sala de um calouro durante os intervalos. Mas Momoko conseguia levar aquilo para um nível completamente novo.

            — S-sen... pai... — Nozomi disse, embaraçada. Só então a veterana percebeu que estavam próximas demais.

            — D-desculpe — disse, afastando-se rapidamente, com o rosto mais corado do que o normal.

            — Un.

            Momoko respirou fundo — então... vamos almoçar? — recebeu um olhar desinteressado da mais nova. — Não aqui, quero conversar com você em um lugar mais reservado.

            — Se-senpai...!

            — Ora, ora. Vamos — disse antes que a jovem pudesse fazer objeções, arrastando-a para a cobertura.

            — Shimi... Momoko-senpai! É inverno!

            — Eu sei. Mas esse é o melhor lugar para conversar, já que ninguém vem aqui nessa época do ano.

            — Existem métodos menos torturantes para cometer suicídio.

            Sentaram-se em um dos bancos da cobertura. Nozomi pensou em reclamar do frio que fazia ali, mas parou ao ver a expressão estranhamente séria no rosto de Momoko.

            — O que está acontecendo? Você parece mais triste ultimamente — a veterana disse, realmente preocupada.

            — Não é nada — forçou um sorriso para Momoko.

            A veterana suspirou — Por que você sorri assim, mesmo que no fundo esteja mais triste do que eu? — Por alguns instantes o rosto de Nozomi demonstrou uma surpresa que Momoko nunca imaginaria. Então ela voltou à sua expressão usual, uma mistura de apatia e profunda depressão, desviando o olhar, vazio. — Está assim de novo por causa de seus pais... não é?

            — Não...

            — Já faz quase três anos, Nozomi! Você não pode ficar depressiva assim para sempre. Um dia você vai ter que aceitar que seus pais mo... — a palma da mão de Nozomi estava marcada em vermelho no rosto da mais velha. Ela levou a mão à boca assim que percebeu o que tinha feito. — Desculpe. Eu não...

            — Tudo bem. Eu que não deveria ter feito isso, senpai.

            Silêncio. Por algum tempo nenhuma das duas sabia o que falar.

            — Por quê...? — A caloura foi a primeira a quebrar o silêncio. — Por que você continua sendo minha amiga? Eu... não tenho nada para te oferecer em troca. Depois de tudo, humanos são apenas seres estúpidos que se relacionam com os outros em troca de alguma coisa, não é? Se é assim, então... por quê?

            — Porque eu gosto de perder meu tempo com você. Você é uma chata, antipática, cabeça-dura, maníaco-depressiva e, mesmo depois de tantos anos, você continua me chamando pelo meu sobrenome. Mas apesar de tudo isso, eu... — a mais velha parou, e pensou um pouco. — Já passamos por tantas coisas juntas, e você sempre esteve ao meu lado. Você sempre foi a amiga com quem eu podia contar, não importa o que acontecesse. E... porque eu ainda quero ver seu sorriso, Nozomi.

            A ruiva enxugou as lágrimas, que insistiam em escorrer pelo seu rosto, mesmo que ela tentasse segurá-las.

            — Haha — riu, meio sem jeito. — Por que eu estou chorando?

            — Momo... ko...? — pensou em abraçar a veterana, dizer que ficaria tudo bem. Mas ela não sabia se tudo ia realmente ficar bem. Então tudo o que ela fez foi olhar o sofrimento da amiga.

            — Por que... eu sinto como se estivesse a perdendo? Por quê? — as palavras com um toque de frustração, enquanto ela tentava inutilmente parar as lágrimas.

            Nozomi abraçou a ruiva. E por um tempo elas ficaram ali, em silêncio. Ambas sabiam que perderiam uma a outra em breve, mas queriam aproveitar o momento, e mentir. Sim, mentir. Era por isso que Nozomi abraçava a mais velha com tanta força, mesmo sabendo que amanhã, provavelmente, as duas não poderiam mais se ver.

            Foi por isso que as duas não perceberam quando Hikari Maeda, uma veterana da mesma sala que Momoko, abriu a porta que dava para a cobertura. Os olhos azul e vermelho se abriram completamente quando viu sua amiga abraçando a caloura. Às vezes duvidava de que a relação entre Momoko e Nozomi era só amizade, e essa era uma daquelas vezes. Arrumou uma das mechas de seu cabelo loiro e rosa e se preparou para brigar com Momoko por ser tão desligada.

            Por sorte, Nozomi percebeu a garota e se separou de Momoko antes que qualquer coisa pior acontecesse.

            — Hikari — a caloura disse, mais para chamar a atenção de Momoko do que qualquer outra coisa.

            E funcionou, já que a ruiva olhou na direção da porta e pôde ver a expressão emburrada no rosto de Hikari. Era engraçado como a menina com as lentes e cabelos extravagantes conseguia se parecer com uma criança do ensino fundamental. E era ainda pior quando ela fazia aquela expressão emburrada.

            — Hi...kki? — Maeda suspirou e Nozomi forçou um sorriso.

            — Céus! Eu procurei você pela escola inteira — antes de terminar a frase, ela já estava puxando Momoko para dentro do prédio.

            — E-Espere aí Hikki!

            A garota extravagante parou e olhou para Momoko, esperando uma explicação. E como a explicação não veio, ela teve que ser mais direta:

            — A presidente do conselho de estudantes, Nanami Hatano-san, quer falar com você.

            — Nana-chan...? — Fez uma expressão pensativa por algum tempo, então olhou de volta para a mais-emburrada-do-que-nunca Hikari Maeda. — Hm, okay. Diga a ela que eu já vou, sim?

            — Não demore, eu ainda quero almoçar — Hikari entrou no prédio. Não parecia muito feliz.

            — Vocês... — Momoko se virou na direção da caloura, esperando o resto da frase. — Não é nada, esquece.

            — Hm, eu acordei um pouco tarde hoje, então não deu para fazer muita coisa. Então eu fiz só arroz e tempura de peixe com alguns legumes. Espero que goste — ela sorriu, entregando as duas marmitas para Nozomi. — Bem, melhor eu ir. Você sabe como a Hikari fica quando está irritada — sorriu novamente antes de entrar correndo no prédio.

            Nozomi suspirou ao ouvir a porta se bater, então colocou as duas marmitas sobre o banco. Decidiu esperar por Momoko para almoçar. No meio tempo, ficou olhando para o céu e pensando sobre a frase que não saía de sua cabeça.

            Por que você sorri assim, mesmo que no fundo esteja mais triste do que eu?

            Aquela era a frase de um conto de fadas que a mãe de Nozomi — Emiri Hirono — costumava contar para ela quando era pequena. Embora a garota nunca tenha pensado naquela história com um conto de fadas. Ela nunca conseguiu entender como uma história com um final tão triste poderia ser considerada um. Afinal, contos de fadas eram aqueles onde os mocinhos ficavam felizes para sempre no final, não é?

            — Preocupada? — Uma voz fria chegou aos seus ouvidos, e como se por hipnose, ela foi forçada a olhar para trás. Um sorriso largo se formou na face do garoto, que conseguia ser ainda mais excêntrico que Hikari, com todos aqueles penduricalhos no cabelo, o vestido elegante que remetia bastante ao vitoriano, e os olhos, brilhando em rosa e verde, e não menos do que tudo aquilo, as inúmeras asas negras que despontavam pelo lado esquerdo de suas costas. — Ultimamente você está realmente perdida em seus pensamentos, não?

            A jovem respirou um pouco, deixando passar a surpresa momentânea. Não esperava vê-lo ali, na escola. E depois, ele mesmo dissera no dia anterior que ficariam um tempo sem se ver. E ela tinha medo de que aquele tempo significasse “para sempre”. Por fim, sorriu para o jovem.

            — Momoko me lembrou daquele conto de fadas — e o sorriso de antes não estava mais na face da garota. Ela voltou seus olhares para o céu, enquanto o estranho passou seus braços pelo pescoço dela, em um pseudo-abraço.

            — Entendo. Mas você não precisa ficar assim só por causa disso — a jovem mordeu o lábio inferior. Queria se virar e bater na pessoa idiota que ousou dizer aquilo, mas não o fez. As palavras que saíram da boca do “idiota” fizeram a garota ficar totalmente sem ação: — Afinal, todos os humanos têm medo de desperdiçar suas vidas. De chegar no final e se arrepender de não ter feito isso ou aquilo. Não é?

            A garota ficou em silêncio, e o estranho riu, um pouco embaraçado.

            — É só uma história idiota — ela disse algum tempo depois. — Não sei porque ainda perco meu tempo com isso.

            — Talvez porque você seja a fada que perdeu sua razão de viver — os olhos da garota se abriram completamente. Por um instante, o mundo inteiro pareceu congelar. O estranho riu diante da reação da jovem.

            — Você é um estúpido, sabia? — Ela disse, com raiva. — Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

            — Não mesmo? — O tom extremamente provocativo arrancou uma risada discreta da jovem. Ele parou. — De qualquer forma, esta será a última vez que poderemos nos encontrar.

            Os dois ficaram em silêncio, por um bom tempo. Ela, com uma expressão mais depressiva do que antes, e ele, com uma atípica expressão vazia. Uma expressão digna apenas daqueles que não tem mais nada pelo que viver. E ele percebera há muito tempo, desde que conheceu aquela garota, que viver era diferente de existir. Por isso, mesmo alguém como ele podia carregar aquela expressão.

            — Eu... por que eu não me sinto sozinha quando você está por perto? Eu me sinto tão só, mesmo quando estou rodeada por pessoas, mesmo quando eu estou com a Momoko — Ele pensou em responder, mas percebeu que a pergunta não era direcionada a ele. Tudo o que pode fazer foi transformar o pseudo-abraço em um abraço, de fato. — Por que isso? Eu... não deveria sentir isso por você... não é?

            — Não — ele disse, friamente. — É por isso que não podemos mais nos ver — ele fez uma pausa, que pareceu durar pela eternidade. — Antes de dizer adeus, eu gostaria de te contar uma história... posso?

           Ela riu, por fora. Sabia exatamente qual história ele ia contá-la. E não gostava nem um pouco da idéia. Mesmo assim, não conseguiu achar forças para pará-lo, afinal, mesmo que por poucos minutos, eles poderiam ficar juntos um pouco mais. Ela poderia senti-lo um pouco mais. E foi assim, o estranho começou a contar a história:

 

———oOo———

 

            Em uma distante floresta, ao norte da Grécia, existia um lirista solitário chamado Orpheus. Costumava andar pela floresta, observando a natureza e cantar. Suas músicas, sempre solitárias e sombrias que pareciam desafiar o mundo ao seu redor. E ambos — tanto Orpheus quanto a Natureza — se odiavam. A Natureza odiava o lirista por ser obrigada a ouvir aquelas canções que pareciam destruí-la aos poucos, e o lirista odiava a Natureza por esta não refletir o mundo em sua mente.

            Naquele dia, porém, a Natureza parecia mais calma. Ele não sentia toda aquela atmosfera de ódio pelo lugar. E foi então, quando se preparava para sentar e tocar mais uma de suas canções depressivas, que ele a viu. A fada, Metis, se banhava no rio Cocytus, e parecia triste. De fato, ele pode ver que a aura da fada se parecia com a dele.

            Sem perceber, começou a tocar a lira. Uma melodia diferente, ainda que fosse de certa forma depressiva, a música que tocava não era um ataque direto à Natureza. Era uma canção que refletia tanto a alma dele quanto a da fada que se banhava. E talvez por isso, ela parou o que estava fazendo e olhou na direção do estranho, com um sorriso enigmático no rosto. Afinal, nem a própria Natureza fora capaz de decifrar a alma dela, ela nunca imaginara que um humano fosse capaz de tal.

            O lirista parou assim que a fada se aproximou dele, despida. Ela tinha um largo sorriso no rosto. Queria saber mais sobre aquele homem, e foi o que pensou em perguntar. Mas suas palavras morreram assim que ouviu o lirista falar:

            — Por que você sorri assim, mesmo que no fundo esteja mais triste do que eu?

            E nenhum dos dois disse mais nada naquele dia. O lirista continuou a freqüentar o rio Cocytus, em busca da fada. E ela estava sempre lá, observando, ouvindo, morrendo. Sim, morrendo, com aquela expressão vazia que só as pessoas sem mais nenhuma razão para viver podem carregar. Ele sabia disso, afinal, ele carregava aquela expressão também.

            Um dia, o lirista não foi ao Cocytus tocar para a fada. E ela estranhou, e foi lhe perguntar o motivo. Ele respondeu com a última coisa que Metis esperava ouvir.

            — Por quê?

            A pergunta de Orpheus não tinha nenhuma relação com a pergunta feita pela fada. E ela sabia disso. O que ele queria saber era o porquê daquela expressão no rosto dela.

            — Eu perdi algo... neste rio — o lirista sorriu, falsamente, e foi embora.

            Metis tentou pará-lo, mas não conseguiu. Ela sabia que aquilo era um adeus. E isso foi confirmado nos dias seguintes: o lirista solitário não apareceu. Por algum motivo estranho, ela sentia como se uma parte de si estivesse faltando também, desde o dia em que o lirista se fora.

            Muito tempo depois, os dois se encontraram de novo, no mesmo rio. E sorriram, um sorriso largo e superficial. Ambos sabiam que nenhum dos dois conseguira outra razão para viver, e por isso ela não teve objeções quando o lirista pediu para que Metis fosse morar com ele. Eles não estavam gostando um do outro. Na verdade, matariam um ao outro se pudessem, só para não olhar para o fundo de suas almas a cada encontro.

            Apesar de tudo, Orpheus não conseguia esquecer do momento em que Metis lhe dissera que havia perdido sua razão de vida no Cocytus. Assim como ela não conseguia esquecer do momento em que ele a esfaqueara com a mais dura realidade que podia imaginar.

            E todas as noites, depois de certificar que Metis estava dormindo, o lirista ia até o rio das lamentações e mergulhava, por horas e horas, tentando encontrar algo que nem mesmo imaginava o que era. No fundo, ele só queria mentir dizendo que fizera tudo o que podia, mesmo sabendo que não estava fazendo nada.

            Um dia, porém, Metis estava acordada quando ele voltou. Ele pensou no que ia dizer, mas a fada foi mais rápida:

            — Vai pegar um resfriado se ficar aí — e nenhum dos dois disse mais nada naquela noite. Metis estava estranhamente preocupada com o lirista. E ele também estava preocupado com a fada. Mesmo assim, eles não conseguiram entender o que tudo aquilo significava.

            As presunções de Metis se tornaram verdade no dia seguinte, quando voltou do Cocytus e encontrou Orpheus na cama. Com um olhar, ela percebeu que ele não viveria muito tempo. Tossia sangue, e ela sabia o que aquilo significava, para um humano. Afinal, ela era uma fada, de muitos anos, profunda conhecedora de tantas coisas na natureza.

            — No dia que o ouvi, pela primeira vez, eu estava procurando por minha irmã, Dione — se aproximou do lirista, sentando-se ao lado dele, na cama. — Ela... morreu... afogada — Orpheus pensou em confortá-la, mas a fada balançou a cabeça. Ele entendeu, pela primeira vez. — Ela era tudo o que eu tinha, minha raison d’entré, mas... um dia as pessoas vão, não é? — o lirista assentiu. — E você percebe que poderia ter passado mais tempo com elas, poderia ter aproveitado mais se não fosse um idiota reclamando das coisas mais simples. E quando elas se vão... é isso, não tem mais volta. Você tem que encontrar outras coisas e... — ela parou e Orpheus sabia que não era hora de falar ainda. — eu encontrei você.

            Metis abriu o sorriso mais bonito que Orpheus vira na vida. Um sorriso que o fazia se perguntar se ela não era uma deusa. E ele sorriu também. Depois de tanto tempo, percebeu que sua razão de vida sempre esteve à sua frente. E aquele sorriso continuou em seu rosto, mesmo com seus olhos fechados, e de certa forma contraídos de dor. Metis também se esforçou para manter o sorriso, mesmo com suas lágrimas caindo sobre o rosto do lirista.

            Ele riu. Ou tentou, já que cada músculo que movia parecia deixá-lo um passo mais próximo da morte. E mesmo assim, sua mão se moveu involuntariamente para enxugar as lágrimas no rosto de Metis. E ela segurou a mão, gelada, do lirista. Não queria deixá-lo ir, não sem antes contar a ele.

            — Eu... estou grávida.

            O lirista sorriu ainda mais, e Metis sentiu que a mão dele só continuava tocando seu rosto porque ela estava segurando. Sua cabeça recriava aquela canção que ouvira pela primeira vez, e não pretendia soltar a mão do lirista tão cedo.

 

———oOo———

 

            — Ei... você... estará lá para enxugar minhas lágrimas também? — Nozomi disse, para o estranho. Os olhos um pouco mais úmidos do que o normal.

            — Está falando sozinha Nozomi-chan? — A jovem se virou na direção da voz. Momoko estava parada ao lado de Hikari, olhando fixamente para a caloura.

            — Ah... n-não. Eu... só estava pensando alto — ela disse embaraçada.

            — Que seja — Hikari suspirou, então se sentou ao lado direito de Nozomi, forçando Momoko a sentar-se ao seu lado direito também. Nozomi riu diante da, segundo a caloura, crise de ciúmes da garota excêntrica. — Vamos almoçar, ne? Não temos muito tempo até o sinal tocar, então...

            — Vamos comer! — Momoko disse, abrindo a marmita e cortando a fala de Hikari. Os olhos azuis e vermelhos a fitaram por um instante, então desistiu do que ia dizer e começou a comer também.

 

———oOo———

 

            Quando ela abriu os olhos, a estação de Shibuya e todas as pessoas que andavam por ali não estavam em lugar algum para se ver. Tudo o que se estendia diante de seus olhos agora era um jardim, que parecia infinito. Não muito longe, ela podia ver uma igreja, imponente, que mesmo com uma arquitetura — ao menos, até onde ela podia dizer — gótica, parecia ter sido construída para abrigar a escuridão ao invés da luz.

            Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, então se levantou, suportando a tontura súbita que lhe atacara. Foi então que viu duas borboletas azuis passando por ela. As duas seguiam a trilha de pedras douradas, cercada por flores, em perfeita sincronia. Até finalmente atravessar a grande porta de madeira da igreja, adornada com cruzes e anjos. Certamente, a boca da garota não estaria tão aberta agora se as borboletas não tivessem passado por dentro da porta.

            — O que... — parou ao ver outras borboletas azuis passando por ela, na direção oposta à igreja. Só então percebeu o quase apagado som de órgão, em uma melodia beirando a depressão.

            Virou-se na direção para onde seguiram as borboletas e começou a andar pelo jardim. O som cada vez mais claro a cada passo que dava. Tinha a impressão de ter ouvido aquela melodia antes, mas não conseguia se lembrar aonde. Ou talvez, aquela fosse apenas mais uma das sensações de déjà vu que lhe atacaram recentemente.

            Passou por uma floresta até finalmente parar, em uma clareira. Um pequeno senhor de cabelos longos, brancos, vestido — julgou ela — uma batina, sentava ao órgão e parecia perdido na melodia. A música parou, e o senhor olhou para ela. Tinha uma grande cicatriz em volta do pescoço, parcialmente coberta pelo cachecol. Lembrava um pouco a cicatriz do lirista do conto de fadas que sua mãe costumava contar. Estranhou o fato da criatura, tão bem vestida, ter um rosto que a lembrava um macaco. Definitivamente aquilo era um macaco, pensou ela, e não pôde deixar de pensar em um filme que assistira muito tempo atrás.

            O estranho se curvou, formalmente — Eu sou Monkey, o guardião das chaves do templo — a criatura olhou nos olhos da garota, e por um instante ela pensou que aqueles olhos poderiam matá-la se quisessem. Sentiu medo, mesmo que fosse estranho cogitar que um morto pudesse morrer novamente. — Você não é uma visitante bem vinda por aqui. Mas se ele a aceitou, creio que não posso fazer muita coisa — o macaco sentou-se novamente ao órgão, ignorando completamente a garota, e começou a tocar aquela mesma melodia.

            — Essa música...?

            — É chamada Orphe. A última poesia que Orpheus cantou, antes de se enforcar com as cordas da lira, por não conseguir resgatar sua amada Eurydice do mundo inferior — ele parou de tocar a melodia novamente, suspirou, então olhou de volta para a garota. — Você realmente não deveria estar aqui — ela desviou o olhar, e o organista se levantou, caminhando até a garota e desferindo mais um daqueles olhares que parecia destruir até o último resquício da alma. — De qualquer forma, ele deve estar esperando — estendeu a mão, segurando uma grande chave dourada que a garota prontamente aceitou — aonde a escuridão nunca se apaga.

            — Obrigada — Nozomi se virou, e o guardião a segurou pelo braço, com tanta força que ela já conseguia ver seus ossos se quebrando, se é que aquilo era possível. Ela se virou na direção de Monkey novamente, um olhar diferente no rosto dele. Aquele mesmo olhar vazio de quem perdera sua razão de viver.

            — Você... me lembra ela — ela não soube o que dizer, então o homem com cabeça de macaco continuou. — De qualquer modo, você poderia vir aqui depois. Gostaria de cantar algumas canções para a senhorita — e dizendo isso ele a deixou ir.

             

            Alguns minutos depois os passos dela ecoavam pela nave da igreja. Sua atenção roubada pelos detalhes — pinturas que fariam mesmo trabalhos de mestres como Leonardo da Vinci brincadeira de criança — da igreja. Ou ao menos, até ele aparecer. O excêntrico garoto que vira pela última vez no telhado da escola, na hora do almoço. Trajava aquele mesmo vestido negro, que se confundia com as asas despontando apenas para um lado. Ele fitou a garota, que parecia hipnotizada, com aqueles olhos, rosa e verde.

            O sorriso dela morreu assim que viu a expressão de completo desagrado no rosto dele. Preparou-se para falar alguma coisa, mas ele sorriu, e ela não conseguia pensar em mais nada. Mesmo sabendo que o sorriso no rosto do excêntrico garoto era falso.

            — Então esse é o céu...? Ou...

            — Esse é o lugar além da matéria. Poderia dizer que é um passo além do sonho. Muitos nomes já foram dados a este lugar, embora ele não precise realmente de um. Afinal, classificar as coisas é algo necessário apenas para fingir que a mente humana consegue compreender o complexo mundo em que vi... — ela inclinou a cabeça e ele riu, discretamente. — Você pode pensar neste lugar como um sonho eterno. O paraíso que existe dentro de cada alma. É por isso que esse lugar não tem uma forma definida, assim como não precisa realmente de um nome.

            — Entendo — ela disse, ironicamente.

            — De qualquer modo, existem lugares melhores para se conversar do que dentro de uma igreja — ele disse, encurtando a distância entre os dois. — Podemos ir...? — ela concordou com a cabeça.

            Azrael segurou a mão da garota e os dois caminharam para fora da igreja. Passaram por uma trilha, cercada por flores que fizeram Nozomi repensar se deveria ou não continuar seguindo o excêntrico garoto. As flores mudaram de camélias, vermelhas e amarelas, para glórias-da-manhã. Ela olhou para o garoto, ainda com aquele sorriso falso, e por um instante teve medo de encontrar tulipas amarelas no caminho.

            O que se abriu diante dos olhos dela, no entanto, foi um belo jardim, rodeado por rosas vermelhas. Foi a vez de Nozomi puxar Azrael para debaixo da pérgula, que ficava no centro do jardim. Um sorriso de todo o coração no rosto dela, que parecia ofuscar o excêntrico garoto. Ele sorriu também, de verdade, embora seu sorriso não chegasse nem perto do sorriso dela.

            — É lindo! — Ela disse, efusiva, e ele a abraçou com força.

            — É — a voz do garoto parecia um pouco apagada. — tão lindo quanto você — ele sorriu, em uma mistura de extrema felicidade e extrema dor, então a abraçou ainda mais forte, como se a fosse perder se a soltasse por um instante sequer.

            E devia ser por isso que as lágrimas não pararam de escorrer pelo rosto do garoto.

            — Azra... el...?

            — Eu te amo — ele disse, em um tom levemente embargado. — Eu te amo muito. Eu... sou um idiota por não ter percebido isso antes. O quanto você é importante para mim. O quanto... — engoliu as lágrimas.

            — O que você está falando?! É como se... — a voz dela parou quando viu as rosas vermelhas dando lugar aos lírios — lycoris radiata, mais especificamente — até onde seus olhares alcançavam. E só então ela entendeu o porquê de tudo aquilo.

            — Desculpe... eu... só queria estar com você...

            Assim como as folhas morriam ao dar lugar às flores, vermelhas, Azrael desaparecia, lentamente. Como na lenda, eles pareciam amaldiçoados para nunca se encontrar novamente. As lágrimas pararam de cair sobre o ombro da garota, e logo ela não sentia o corpo do garoto perto do seu. Ele não estava mais ali, e ela não conseguia mais se manter de pé. Seus joelhos foram ao chão, enquanto tentava entender porquê aquilo tudo estava acontecendo.

            E depois de tudo, ela não conseguiu chegar a lugar algum. Assim como no conto de fadas que sua mãe costumava contar, ela era o príncipe desiludido que terminou sozinho por amar demais.

 

———oOo———

 

            O som agudo do despertador ecoou pela sala. Ele se levantou, os olhos úmidos por causa daquele sonho que insistia em atacá-lo todas as noites, desde que podia se lembrar. Desligou o aparelho e foi até o banheiro, lavar o rosto, tentando acordar. As olheiras mais do que visíveis se refletiam no espelho. Deu um jeito rápido no visual, pegou um casaco e saiu.

            Era inverno em Tóquio e, apesar da dor de cabeça insuportável que sentia, precisava continuar com aquela mesma rotina. Afinal, coisas mais importantes primeiro, como ela costumava dizer. Sorriu, discretamente, quando o rosto dela apareceu em sua cabeça, belo como sempre. Talvez por isso seus pés pareceram se apressar um pouco. De fato, o garoto queria vê-la o mais rápido possível. Ele prometera que sempre estariam juntos, e odiava aqueles contratempos estúpidos que continuavam a aparecer.

            Um dia — o dia, de fato, já que ele costumava acreditar em destino — eles ficariam juntos, para sempre. E ele poderia ver o sorriso dela sem ter que recriá-lo em sua mente.

            Olhou mais uma vez para sua mão, se certificando de que o presente para ela estava ali. Sim, trazia flores para ela. Não teve tempo para perguntá-la se ela gostava de rosas brancas ou não, mas elas representavam o sentimento dele no momento. Ele era como um devoto da garota.

            Sorriu para ela, e seu sorriso cresceu ainda mais quando ela sorriu de volta. Então pôde entregá-la, gentilmente, o bouquet.

            — Estaremos sempre juntos... não importa o que aconteça. Eu prometo.

            O garoto abriu os olhos, olhando bem para ela. Precisava se certificar de que entenderia aquela simples frase. Sua boca se abriu um pouco, ao ver uma borboleta azul pousar sobre o túmulo dela. Esforçou-se para segurar as lágrimas, como sempre. Nunca poderia chorar na frente dela.

            Então, outra borboleta apareceu, passando por ele, seguida pela anterior. Seu rosto acompanhou as duas, sem conter o sorriso que se formou ao virar naquela direção.

 

 

fin.


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Notas finais do capítulo

———oOo———

Nota 1: Toryanse (通りゃんせ) é uma musiquinha infantil que toca nas faixas de pedestres em alguns lugares do Japão para que as pessoas cegas saibam quando atravessar. É uma musiquinha assustadora até mesmo na letra, que não deve ser difícil de encontrar na internetz. Btw, o título significa “Permita-me passar”, o que explica o uso da música em crosswalks.

Nota 1 ½: Aoyama é uma escola de Shibuya. De verdade =D E o O-Front é um prédio ‘lecal perto do Shibuya 109 e de frente para a estação de Shibuya. Ele é grande, embora não tão grande quanto os prédios de Shinjuku o(^-^)o E sim, a parte de colocar referências à Toryanse e O-Front vieram da minha fanboyisse de Chäos;HEAd (a Visual Novel, já que eu não cheguei a assistir muito do anime lol)

Nota 2: A história de Orpheus foi realmente baseada na história do Orpheus da mitologia grega, mas aquela Metis não é a Metis, mãe da Atena okie? Até porque, ela nem era uma fada (sei lá se existia fadas na mitologia grega, acho que não lol), mas whatever, é só um nome chiquitoso e grego para minha fadinha okie?

Nota 3: Não, as flores não foram usadas ao acaso no texto lolq Eu coloquei essas aí pelo significado no hanakotoba (que é a linguagem das flores do outro lado do mundo, aka Japão ;D).

Nota 4: Tenho que parar de escrever notas .-. –q