Filhos Da Supernova escrita por MiHonig


Capítulo 10
Abandono


Notas iniciais do capítulo

Phew! Esse foi o maior até agora! Apresentando a Sra. Muntz, ops, quer dizer, a mãe da Ellie, hehehehe



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Minhas costas estão me matando.

Nesse exato momento, eu sinto como se tivesse levado uma surra. De uma bola de demolição. A noite inteira. O que também não ajuda é o fato de eu estar sentada em uma cadeira superdesconfortável na salinha dos fundos da loja de Rob, brigando com um circuito TTSD com metade dos transistores queimados.

Suponho que isso seja castigo, pois apesar de parecer que foi há uma eternidade atrás, foi ontem que eu coloquei a área B e o Mercado inteiros em pânico e quase fui pega pelo Arco. Tenho certeza que Rob vai me fazer pagar com um punhado de circuitos irrecuperáveis, então já me conformei de ficar longe do “trabalho de campo” por uns tempos. O que não é de todo ruim, pois agora tenho um interrogatório para fazer. A parte mais complicada é não deixar que o interrogado perceba que está sendo, afinal, interrogado.

Todos os lugares no meu corpo, até os que eu não sabia que tinha, estão doendo hoje. Paro novamente o trabalho inacabado na minha frente, e mais uma vez tento esticar as costas. Péssima ideia. Juro que ouvi um estalo tão alto que tive quase certeza que tinha quebrado uma vértebra. Ao mesmo tempo, o hematoma no lado esquerdo do meu rosto também briga por uma atenção dolorida. Contudo, esse dói mais por uma razão totalmente diferente.

Essa última noite definitivamente tinha passado longe da classificação “agradável”. Quando estava voltado de refeitório com Aggi e Tom, eu tinha ousado esperar que Arianna iria simplesmente levar os filhos embora e tudo voltaria ao normal. Não que eu goste muito do “normal”, mas depois de tanta loucura começar a acontecer, passei a valorizá-lo muito mais. Ah, mas nada é tão simples, não é?

Qual foi a minha surpresa, quando entrei pela porta do compartimento, me deparei com a figura da minha mãe, sentada em uma cadeira, sozinha, olhando perdida para uma ponto distante na parede, apreciando um copo da imitação de vodca que se bebe no Complexo.

Deixei a porta aberta para que Aggi e Tom entrassem depois de mim, e eles o fizeram, ficando ambos calados, escondidos atrás das minhas pernas. Isso era novidade no caso de Aggi. Fui eu quem perguntou:

– Onde está a sua irmã?

– Foi embora – Laura respondeu, sem nem sequer desviar o olhar para mim. Aquela mancha na parede devia ser muito interessante.

– Como assim “foi embora”? – eu disse, tentando entender a situação surreal que meu dia tinha virado. – Ela por acaso não esqueceu os filhos?

– Não, eles ficam aqui. – Laura explicou, antes de tomar mais um gole de sua bebida. Pelo cheiro no ambiente, não era o primeiro copo.

O silêncio se instalou na sala, enquanto minha mente tentava processar essa informação. Esse era o motivo da visita inesperada de Arianna? Ela queria se livrar dos filhos? Mas por quê? E o mais estranho: eles não estavam protestando. Bom, Tom não protestaria de qualquer jeito, mas isso era o mínimo a se esperar de uma criança como Aggi. No entanto, ela estava calada, olhado para o piso de concreto queimado.

Eu me abaixei e olhei nos olhos dela.

– Você já sabia disso? – perguntei.

Aggi apenas balançou a cabeça em confirmação. Seus olhos brilhavam, ela estava se segurando para não chorar. Tenho que admitir, é uma garota corajosa. Ela segurou a mão pequena do irmão, que parecia tão abatido quanto ela, mas também resignado.

– Ei, - eu disse aos dois – porque vocês não me esperam ali dentro? – apontei para a porta do meu quarto - Já, já eu vou lá, o.k.?

Sem dizer uma palavra, eles marcharam até lá, os passos pesados e as cabeças baixas. Fui atrás deles e fechei a porta depois que eles entraram. Esfreguei as mãos no rosto, para ver se podia espantar o sentimento de frustração, mas foi inútil.

– Tá bom, agora pode começar a me explicar que merda é essa. – eu disse, tentando controlar ao máximo a voz para que os irmãos no outro quarto não ouvissem.

– O que tem mais pra explicar, Ellie? – minha mãe rebateu com uma boa ponta de irritação na voz. – A ingrata da minha irmã despejou os seus pestinhas nas minhas costas. Se eu tivesse escolha, acha que eu teria concordado com isso?

– E por que motivo você não tinha escolha?

– Isso não é da sua conta, garota. – Ela esvaziou o copo, e foi até o armário de metal no canto da sala e se serviu mais um pouco de vodca. O cheiro forte do álcool não tardou a chegar ao meu nariz, e eu me senti enjoada.

– Claro, que novidade. – eu expirei, cheia de sarcasmo. – Mas ela vai voltar para buscá-los, não vai?

– Não sei – imediatamente ela virou o copo que tinha acabado de servir, sem nem se sentar novamente. Ela estava definitivamente determinada a ficar bêbada.

– Não sabe? – eu repeti

– Não foi o que eu acabei de dizer, garota?- ela resmungou, irritada.

Minha mãe já não é flor que se cheire em seu estado normal, mas quando bebe... bom, digamos que você não quer irritá-la nessa situação. Mas o problema é que eu também estava muito, muito irritada.

– Tá bom. E como é que você pretende cuidar deles? Suponho que você ainda trabalhe no Bar23.

– Ah, isso é problema seu.

Eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo.

– Espera aí, eu ouvi direito? Você está dizendo que eles são minha responsabilidade? Eu nem sequer fui consultada! Eu... eu não posso! Eu tenho o trabalho na loja, não posso!

Laura ficou alguns segundos de costas para mim, calada. Ela colocou o copo no armário, e bateu a porta com força. Ela se virou para mim, um olhar assassino estampado no rosto.

– Não me interessa o que você faça, por mim você pode largá-las no Mercado. Você não tem noção da quantidade de problemas que eu tive que enfrentar por você, e é justamente esse monte de problemas que você causa eu tenho que resolver. A verdade é que você não seria nada sem mim. Ouviu, NADA! Mas eu já devia esperar isso, Ellie, porque você uma ingrata egoísta, e não pode nem sequer fazer nada pela sua mãe.

Eu definitivamente não conseguia acreditar que ela estava dizendo isso.

– Mas o que isso tem a ver comigo?

– Tudo, mas eu não espero que você vá entender todos os sacrifícios que eu faço por você.

A raiva borbulhou dentro de mim, e eu já não pude mais controlar a minha língua.

– Sacrifícios! Claro, ficar uma noite sem um homem na sua cama deve ser um sacrifício tremendo, não é? – exclamei, me certificando que havia a dose certa de veneno em cada palavra.

Ela foi rápida, rápida demais; tanto que eu nem cheguei a ver. Só me dei conta quando senti um punho ossudo acertar o meu rosto, e no momento seguinte eu estava no chão. Antes que eu pudesse sequer respirar, senti um pé envolto em um sapato acertar o meu estômago, uma, duas três vezes. Quando finalmente consegui devolver ar aos meus pulmões, tudo o que consegui fazer foi gemer de dor.

– Espero que isso lhe ensine o seu lugar de direito, garota. – ouvi uma voz ébria dizer acima de mim, e logo depois ouvi a porta bater. Eu simplesmente não tinha força para me levantar naquele momento, então fiquei no chão frio, e a única coisa quente no mundo era a lágrima solitária que escorria pelo meu rosto.

Não sei exatamente quanto tempo fiquei ali, mas o que me trouxe de volta à realidade foi uma mão pequena que segurava reconfortantemente o meu ombro. Me virei, esperando ver o rosto de Aggi, mas ao invés vi os olhos castanhos de Tom. Minha visão ainda estava embaçada, mas eu vi algo naqueles olhos... compreensão? Eu não sabia ao certo. Mas, por algum motivo, mesmo que ele tivesse a capacidade de falar, eu sabia lá no fundo que aquele momento não precisava de palavras.

Depois disso, eu coloquei Aggi e Tom para dormirem na minha cama. Eu queria muito descobrir se eles sabiam o motivo de a mãe deles os ter abandonado, mas eu simplesmente não tinha cabeça para isso. Eles não demoraram mais que cinco minutos para estar em sono profundo, e logo depois eu estava estendendo um cobertor velho no chão ao lado (já que, pelo bem da minha integridade física, eu não ousaria entrar no quarto de minha mãe). Me deitei no chão duro, mas o sono custou a vir, minha cabeça girando ao redor dos tantos acontecimentos do dia. Não ouvi minha mãe voltar.

Pela manhã, eu silenciosamente desloquei um painel solto que fica sob a minha cama, onde eu guardo as minhas economias, e com uma dor no coração tirei um punhado de Ferros. Um dia eu havia sonhado em conseguir o meu próprio compartimento, onde finalmente eu podia ficar longe de Laura, mas o sonho esfriou um bocado quando eu fiquei sabendo quanto custa um compartimento no Setor 3. Sem falar da lista de espera. Em seguida, eu levei Aggi e Tom até o compartimento duas portas abaixo do meu, onde mora dona Modine.

Modine é tão velha que eu juro que ela estava lá no Cataclismo. Ela é magra e tem as costas curvadas, e tem artrite, ou artrose ou alguma doença do tipo, que faz com que ela passe o dia inteiro em seu compartimento assistindo televisão enquanto lista todas as dores terríveis que sente em cada parte do corpo. Sério, me dá dor só de falar com ela. A priori, ela não ficou muito feliz com o meu pedido de cuidar de duas crianças de seis anos, mas logo mudou de ideia quando viu a cor do dinheiro em minhas mãos.

– Mas porque eles não estão na escola? – ela perguntou, mas pegou o dinheiro mesmo assim.

– É só temporário – eu respondi, evasivamente.

– Sei. – ela parecia pouco convencida – Achei que a sua mãe só tinha você.

– E só tem – eu não estava gostando nenhum pouco das perguntas dela. Então enfiei a mão no bolso e tirei mais uma moeda. Dona Modine a obervou com cobiça. – Sem perguntas.

– Sem perguntas – ela repetiu. Mas não duvido que ela tenha interrogado Aggi logo depois que eu parti.

Me virei para Aggi e Tom, que esperavam atrás de mim.

– Vocês vão ficar com a Dona Modine hoje. Quero que vocês se comportem, entenderam?

Eles confirmaram com as cabeças.

– Mas você vai voltar, não é? – Aggi perguntou, meio chorosa. Esfreguei a os cabelos dela, tentando reconfortá-la. Me odiei por deixá-los pensando que eu os abandonaria também.

– Pode apostar que eu volto.

ooo

Frustrada, eu atiro minha chave de fenda contra a parede.

– Ouch, o que essa pobre ferramenta fez pra você? – ouço uma voz vinda detrás de mim.

Eu me viro na cadeira, e vejo Rob despojadamente apoiado no batente da porta, uma pinta de divertimento em seu rosto. Ah, que bom que ele está se divertindo com o meu castigo. Eu tinha planejado tentar tirar as informações dele assim que cheguei, mas mal dei um passo para dentro da loja e ele já enfiou uma caixa cheia de circuitos queimados para que eu os recondicionasse.

– Eu estaria de melhor humor se você não tivesse me dado uma caixa cheia de lixo para que eu os consertasse. Sabe, eu não sei fazer mágica, se é isso que você quer.

– Mágica eu não sei – ele disse – mas acho que com um pouquinho mais de carinho tenho certeza que você consegue.

– Carinho! – eu bufei, sob a minha respiração

– Ou... também é uma boa maneira de te deixar longe dos problemas.

– A-há! Eu sabia que isso era castigo por causa do negócio do alarme de incêndio.

– Ellie, eu tenho cara de professora de escola para ficar dando castigos?- ele disse, seu rosto ficando mais sério – Não que não tenha sido uma grande bobagem o que você fez ontem, mas acho que você aprendeu a sua lição com aqueles agentes do Arco.

– Então você ficou sabendo.

– E você duvida da velocidade da fofoca no Mercado? Tenho certeza que o dia que medirem esse negócio a teoria da relatividade vai pro beleléu.

Não pude evitar de rir com o comentário. Só Rob pode me fazer rir numa hora dessas.

– De qualquer jeito – ele continuou – acho que não vai fazer mal você sair de circulação por uns tempos.

– Mas... – eu comecei, porém Rob ergueu a mão, me impedindo de continuar.

– É uma ordem.

– Sim chefe!- eu disse, e fingi que batia uma continência. Ele sorriu de volta para mim. Bom, pelo menos ele não está tão furioso assim.

Nesse momento eu sinto minhas costas ficarem rígidas novamente, e eu me levanto tentando esticá-las. Não consigo evitar que um pequeno gemido de dor escape à minha boca.

– Noite ruim?- Rob me pergunta.

– Nem me fale.

Eu atravesso a sala e vou até o outro canto, onde há uma pia. Eu pego um copo que há ao lado e me sirvo um pouco de água. Não tinha percebido que estava de garganta seca até agora. Eu tenho que puxar o assunto, mas não sei como.

E nem dá tempo, pois no instante seguinte eu sinto a mão de Rob sobre o meu rosto, bem no lugar onde está o hematoma deixado por minha mãe. Eu tinha feito questão de cobri-lo com os meus cabelos, mas pelo jeito não funcionou muito bem.

– Eu caí – me apressei em dizer.

– Sei, caiu exatamente sobre o punho fechado da sua mãe, não é?

Não havia sido a primeira vez, apesar de fazer muito tempo desde a última vez que Laura tinha tocado em mim. Toda vez que Rob via as marcas no meu corpo, ele ficava furioso, e dizia que ia acertar as contas com minha mãe, e eu sempre tinha de impedi-lo. Não ia adiantar nada, afinal.

– É complicado.

– Não importa, me conte. Foi por causa da confusão no mercado?

– Não. – eu admiti. Resolvi contar a verdade. – O que aconteceu foi que recebemos uma “visita inesperada”.

– Vou adivinhar: outro namorado da Laura.

– Dessa vez, não. – respirei fundo – Era a irmã dela, Arianna.

Eu percebi que, repentinamente, todo o corpo de Rob ficou tenso, e seus olhos verdes dobraram de tamanho. Essa com certeza não é uma reação normal de alguém que ouve o nome de um estranho. Essa é a minha deixa, então.

De qualquer jeito, ele tentou desesperadamente disfarçar a reação.

– Sua mãe tem uma irmã, é? – ele perguntou, mas a voz desigual entregou a mentira.

– Tem. Achei que você soubesse, já que trabalharam tantos anos juntos.

– Hum, tenho que admitir nunca dediquei atenção suficiente às besteiras que ela dizia. Vai ver ela pode ter mencionado.

– Sim, ela veio do Setor 4 e...

– Espera, - Rob me interrompeu – mas como ela conseguiu as permissões? Ouvi falar que são bem difíceis de conseguir.

– Não tenho a mínima ideia. Posso continuar? – ele assentiu – Enfim, elas tiveram uma conversa particular e sinistra à qual eu não fui convidada, e basicamente, ela foi embora e deixou os filhos lá.

– Espera aí, filhos? – Rob perguntou bruscamente, segurando com força no meu braço.

– Sim, dois. Gêmeos. Isso é importante?

Eu podia jurar que Rob, naquele momento era um fantasma, pois ele ficou pálido como papel. Talvez ele tenha notado o próprio espanto e a estranheza de sua reação, pois logo voltou a parecer desinteressado.

– Não, continue. – ele disse.

– Enfim, no final eu acabei perdendo minha cama e tive que dormir no chão.

– E quando foi que isso aqui aconteceu? – ele apontou para o meu rosto.

– Quando eu protestei.

– Sinto muito, Ellie – o Rosto de Rob estava sombrio, como eu o vi pouquíssimas vezes. Eu fiquei genuinamente preocupada por um momento, aí então me lembrei que há um bocado de informações que ele está escondendo de mim, além do fato de que eu sei que, ao menos uma vez ele iria me vender a um traficante. Talvez ainda o faça.

Rob já estava se virando para se afastar de mim, mas eu o impedi.

– Sabe, eu achei que você podia conhecê-la. Mas não pela minha mãe, mas pelo marido dela. Parece que ela é casada com um tal de Faraday.

– Você se enganou. – ele disse, já pronto pra fugir de mim, mas eu fui mias rápida e me interpus entre ele e a porta.

– Mas esse não é o cara para quem você vende a energia?

– Onde você ouviu esse nome, Ellie?

– Sabe, Rob, eu não sou surda, e as suas negociações não são assim tão silenciosas.

– Mesmo assim, pode ser outro. Você não sabe se é o mesmo homem. – Notei que Rob estava cada vez mais desconfortável a cada pergunta minha, o que apenas me encoraja a seguir nesse caminho.

– Mas é um nome meio incomum, não é? Talvez não seja, até porque você deveria saber se ele tem família ou não. Vocês são amigos, não é?

– Quem lhe disse um absurdo desses?

– Eu achei que...

– Achou errado. Eu nunca nem sequer vi esse homem pessoalmente. Nossa relação é apenas de negócios.– eu fiquei chocada com a capacidade de Rob de me olhar nos olhos e mentir assim tão descaradamente. Apertei as unhas contra a palma da mão com força para me impedir de jogar na cara dele que eu sabia muito mais do que ele pensava.

Resolvi forçar a barra um pouco.

– Bem, eu não sei se devia lhe contar isso, então...

– O quê?

– Quando Arianna foi até o nosso compartimento, ela disse que esse tal de Faraday queria muito me conhecer, - eu blefei, - e disse que quando ela voltasse pelos filhos, ela queria me levar ao Setor 4 para que eu o conhecesse. Eu só queria saber se era uma boa ideia ir com ela. - tive que me segurar para parar de tremer. Eu sentia que estava bem perto de uma grande descoberta, mais isso dependia muito da minha capacidade de manter uma boa mentira.

Rob me segurou com força pelos dois braços, e me sacudiu de um jeito nada gentil.

– Escute bem, Ellie. Se você quer um conselho, mantenha a maior distância que puder dessa gente. Eu me preocupo muito com você, e eu detestaria ver você envolvida nessa maldita revolução deles.

Revolução? Isso é muito, muito pior do que eu poderia imaginar.


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