Os Secretários escrita por S A Malschitzky


Capítulo 1
A escolha




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/347202/chapter/1

– Eu quero ser uma secretária. – digo encarando seus olhos.

Olly me encara com seus olhos castanhos arregalados. Como sempre fez desde que nos conhecemos.

– Como? Enlouqueceu Andy?- ele empurra meu ombro. – Nunca mais diga isso.

– Porque não? – pergunto olhando para o sol alaranjado se pondo no prédio cinza e abandonado na nossa frente. – A escolha é amanhã, quem levantar a mão primeiro é o novo secretário.

– Porque você quer ser secretária da Candice? Ela é a presidente de Greeneland e controla quase todo o planeta, e?- ele olha para o sol e fecha um pouco os olhos. – Podemos ir agora?

Ele praticamente pula do cimento e esfrega as mãos na calça jeans azul. Me levanto do chão e olho para seus cabelos castanhos.

– O que você tem contra o pôr do sol?

Ele me mostra o braço com o relógio preto com os azuis. Três e meia da tarde.

– Quem você acha que fez isso? – ele aponta para o sol que agora quase some no prédio cinza. – Sua querida Candice.

– Eu não conheço a Candice. – coloco meus cabelos loiros e relativamente curtos para trás dos ombros sem tirar o cachecol vermelho do pescoço. – E você também não.

– E nem preciso. Só um maluco mudaria o horário do pôr do sol. E um mais ainda por querer se secretário dela. – ele olha para meu cachecol vermelho enrolado no pescoço. – Como você consegue usar isto em pleno verão?

Dou de ombros tentando disfarçar.

Começamos a andar na direção da porta vermelha desbotada e enferrujada até a escada preta e empoeirada.

– Ah Olly, você já pensou em ser secretário uma vez, mas o acidente te impediu.

Ele para de andar e me encara bravo porque falei do acidente de seus pais.

Quando tínhamos nove anos, ou seja á oito anos, seus pais e ele seu irmão mais novo estavam dentro do carro quando seu pai se distraiu capotou o carro que rolou pelo barranco e caiu dentro do maior rio de Greeneland. Só Olly conseguiu se salvar. Como Alex e ele são melhores amigos desde que eras bebês, Olly foi morar conosco logo depois de minha mãe morrer me protegendo de um pedaço de metal lançado em nenhuma direção, no caso a minha. Minha mãe me abraçou e o pedaço de metal atravessou seu peito e causou uma cicatriz em meu pescoço que eu luto para não mostrar para ninguém. Todos os dias uso um cachecol para me assegurar que ninguém a verá, mesmo esperando vários anos que meu cabelo cresça e eu me livre deles.

Todos os dias tenho que aguentar os comentários das gêmeas ruivas sobrinhas de Candice dizendo o quanto sou louca por usar isso todos os dias do ano. Não importa o clima.

Também tenho uma cicatriz imensa na perna o que me impede de usar short ou algo menor que uma calça. Mas quase todos sabem sobre ela. Outro acidente, mas faz dois anos e não matou ninguém. Eu não me lembro muito bem, foi muito rápido para mim acompanhar. Estávamos eu e Olly em outro prédio que ficava ao lado no que estamos. Estava olhando o pôr do sol e ouvindo Olly reclamar o quanto Candice muda os climas e as coisas da natureza. Não que ele seja fanático por isso. Somente acha errado que a cada semana Candice mude o horário do pôr do sol e meu horário do jantar. De repente o prédio começou a desabar e nós saímos correndo. O prédio desabou em cima de nós. Comecei a tossir até me livrar da poeira dos destroços. Olly ficou com uma cicatriz no braço esquerdo e eu com uma na perna.

Meu pai ainda pergunta o porque de tanta restrição á esta cicatriz, que é uma coisa para se lembrar que conseguimos sair vivos.

– Verdade Andy, mas mudei de ideia. Não quero mais ser um secretário.

Voltamos a andar escada abaixo. Saímos do prédio e passamos pelo caminho de terra com grama seca e amarelada até a casa branca de dois andares no final do caminho. Minha casa.

Até chegarmos lá, Olly não diz uma sequer palavra. Ele normalmente não fala muito, a não ser para reclamar de Candice e para agradecer ao meu pai por deixá-lo ficar em nossa casa.

Abro a porta de madeira escura com entalho de flores e folhas. Vejo meu pai e meu irmão Alex ajeitando a mesa de jantar. Alex coloca uma toalha branca sobre a mesa de vidro e armação de metal. Mesmo que sejam menos de seis horas da tarde, já estão arrumando a mesa de jantar.

Meu pai está sempre um passo a frente quanto a horários. Ele trabalha no relógio central, recebendo as ordens do antigo secretário de Candice, mas agora que ele se foi, - quer dizer, não que ele tenha morrido. Não sabemos o que acontecem com os secretários, somente depois de dois anos a escolha é feita para um novo secretário. Em todos os lugares do mundo isso é feito. Os secretários substituem os presidentes em reuniões e festas. – meu pai está de folga até o novo secretário ser escolhido e começar a passar os horários solicitados por Candice para o relógio central.

– Oi. – digo fechando a porta depois que Olly passa por ela. – São quatro horas. – digo olhando para o relógio cuco de madeira na parede da escada com o tapete vermelho de minha mãe. – Não pode ser a hora do jantar.

– Candice mudou o horário do pôr do sol. – completa Olly.

– Sabemos disso. – diz meu pai distribuindo os talheres de prata reluzentes sobre a mesa para quatro pratos. – Mas é tradição Andy, uma hora depois do por do sol, hora do jantar. Sua mãe sempre dizia isso.

Alex segura a cadeira de metal e olha para mim com a cabeça baixa de maneira triste.

– Candice mandou uma carta. – diz Alex. – É para você Olly.

Olly olha estranhamente para Alex que o alcança um envelope azul claro.

Ele abre o envelope e lê a carta.

– Candice e seus sentimentos. Foi ela que escreveu a carta, pelo menos isso ela consegue fazer sozinha. Era o aniversário do meu irmão. – diz Olly deixando a carta em cima da mesa de madeira logo ao lado do cabide com o casaco marrom de Alex e o chapéu preto do meu pai. – Eu estou com fome.

Meu pai volta até a cozinha e trás uma forma prata com pedaços de uma carne que eu não consigo identificar.

Nos sentamos á mesa e nos servimos nos pratos de porcelana branca vida de geração á geração pela família da minha mãe.

Corto um pedaço da carne e aproximo da boca.

– Então, ansiosos para saberem quem será o secretário? – pergunta meu pai e coloca o pedaço de carne na boca.

Olly se sentou a minha frente e agora me encara esperando que eu diga alguma coisa. Alex olha para nós dois com duvida.

– Aconteceu alguma coisa que eu não sei? – pergunta ele.

– Andy quer ser uma secretária. – diz Olly esperando que eu me importe. Alex e meu pai largam os talheres em cima dos pratos e olham boquiabertos para mim.

– O que? – pergunta Alex. – Você sabe o que acontece com os secretários?

Reviro os olhos e nego com a cabeça.

– Isso mesmo! Ninguém sabe o que acontece com eles. Por isso ficamos horas esperando que alguém desista e vá com eles. – diz Alex de maneira assustada e exagerada. Ele olha indignado para meu pai. – Pai você não vai falar nada?

Meu pai suspira e encara seu prato.

– Ela já tem dezessete anos Alex, se Andy quiser ser uma secretária, que seja uma secretária. Mas seu irmão está certo, nunca nenhum secretário voltou para casa.

– Eu vou voltar. – me apresso. – Prometo, eu nunca me enturmei aqui em Greeneland, ando só com Olly naquela escola. As gêmeas ruivas me irritam muito e não á nada que eu possa fazer a menos que eu queira ser presa. Quero...

– Ser uma pessoa que você não é. - diz Olly. O encaro friamente por interromper meu discurso. – Eles mudam a pessoa completamente para ficar irreconhecível e mentem sobre quem você é. Serio Andy, não entendo você.

– Não precisa. – digo. – Nunca entendeu mesmo.

Olly me olha com desprezo.

– Andy, - começa Alex. – Tem certeza disso? Você sabe que não vai voltar e ninguém sabe para onde você vai.

– Parem de pressioná-la. – meu pai bate com o punho na mesa. – Se ela quer ser uma secretária, será no momento em que levantar a mão antes de outra pessoa. Vocês dois parem de irrita-la quanto a isso.

– Obrigada pai. – murmuro. - Perdi o apetite.

Arrasto a cadeira par trás e subo as escadas direto para meu quarto. abro a porta branca e lisa. Diferente de todas as outras.

Abro a porta e olho para meu quarto. As paredes azuis com desenhos e nuvens feitas por minha mãe. Ter uma menina sempre foi meu sonho. Ela sempre disse isso para mim. Todas as noites. As roupas de cama brancas e com cheiro de lavanda. A janela pintada de azul. As cortinas brancas e um tanto transparentes. A mesa e o guarda roupas de madeira escura. O tapete branco e felpudo. O cabide de madeira com entalhos de flores, cheio de cachecóis coloridos.

Tudo obra da minha mãe. Tudo escolhido por ela. Não que eu me importe, gosto de ter mais uma lembrança dela além da cicatriz em meu pescoço. Deixo minha mochila verde no chão ao lado da cama e puxo o cachecol para meu lado esquerdo, movendo o cabelo e deixando meu pescoço de fora. Me viro de lado virando a cabeça um pouco mais e consigo ver uma parte dela. Como um risco. Uma má lembrança. De como sobrevivi e ela não. De que tudo foi culpa minha. Penduro o cachecol vermelho no cabide e ajeito a blusa branca de seda. Solto uma risada. Nenhuma garota em sã consciência usaria uma blusa como essa com um cachecol vermelho.

Me jogo na cama e olho para o pássaro azul de olhos castanhos escondido atrás de uma nuvem, me observando. Quando eu era pequena, morria de medo dele. A noite principalmente. Aqueles olhos castanhos e redondos me olhando como se me conhecesse. Em uma noite, minha mãe se levantou da cama e veio até mim, a garotinha chorando desesperada por causa de uma pintura no teto. Ela me fez observar bem os olhos dele e perceber que eram os meus olhos. Que o mais importante é reconhecer os próprios olhos. Eu nunca entendi muito bem o que isso significava. Até hoje penso todos os dias sobre isso. Nas aulas de literatura principalmente. Mas nunca descobri.

Minha mãe me dizia muitas frases, mas somente algumas sobreviveram ao fenômeno chamado tempo.

O tempo cura tudo.

Muitos dizem isso. Eu não acredito. Faz nove anos que minha mãe morreu e a cada vez que falam dela tenho vontade de sair correndo e me trancar em uma caixa do tamanho do meu pé.

Toda vez é isso. Não sei porque quando meu pai falou aquilo não me senti assim.

Alguém bate na porta. Me jogo para fora da cama e visto o casaco preto de gola alta que esconde meu pescoço.

– O que foi? – pergunto com os olhos arregalados e os cabelos provavelmente despenteados.

Sou eu. – diz Alex. Reviro os olhos e vou até a porta. Sempre que saio correndo e me tranco no meu quarto, ele me pergunta o que houve. Abro a porta morrendo de calor com o casaco preto. Ele ri. – Eu já sei da sua cicatriz, não precisa escondê-la de mim Andy. - olho para o chão. – Ok, só estou dizendo que não precisa e que você está começando a suar.

Concordo com a cabeça.

– Eu estou bem. Só não sei porque Olly fica me infernizando com esta história. Porque ele não me deixa em paz?

Ajeito a manga dobrada na minha mão.

– Porque ele se preocupa com você. – ele se apoia na porta. Solto uma risada. – Olha, tudo bem se quiser ser uma secretária e tal, mas Olly está certo quando diz que é querer ser uma pessoa que você não é. E se for só por causa da cicatriz...

– Não é só por isso.

– Ok! Mas não sei porque quer ser uma secretária. Quer dizer, eu até sei.

Na escolha no ano seguinte ao ano da morte da nossa mãe, ele foi o segundo a se manifestar. Nunca mais falamos sobre isso, mas ninguém esqueceu.

– Mas isso foi você. – digo. – Você estava em choque quando se manifestou, não estava falando sério. Estou pensando isso á muito tempo.

– Está bem. – ele vai na direção das escadas. – Mas não esqueça que depois de levantar a mão, não tem mais volta.

Ele desce as escadas. Fecho a porta do quarto e tiro o casaco preto jogando-o para qualquer direção. Olho para a janela. As estrelas brilhando. A lua escondida atrás de uma casa á alguns quilômetros daqui. Não sei se onde os secretários ficam, se uma lua aparece nem se noite existe. Candice pode mudar os horários de todos.

Sei que ela não é a melhor pessoa do mundo. Mas há um segredo nela. Eu nunca a vi, mas sei disso. O porque e o motivo das coisas. Porque mudar os horários? Se todos estão livres de trabalho e escola no máximo meia hora antes do por do sol? Ela nunca atrasou o por do sol. Só o adiantou. Isso eu preciso descobrir. Talvez amanhã eu tenha a chance. O relógio cuco começa a tocar. Hora de dormir.

Acerto o despertador para as sete em ponto. A escolha é feita as oito, mas até que todos acordem, já será sete e meia. Até chegarmos no relógio central, quinze para as oito e até nos sentarmos, oito e a cerimônia começará com as treze badaladas do relógio. Logo seguido pela aparição de um holograma com a imagem gravada de Candice.

Coloco meu pijama. Uma calça marrom e uma blusa branca.

Fecho a janela e me tapo com as cobertas brancas.

Caio no sono.

Um barulho estridente me acorda. Caio da cama quando percebo o porque de eu ter colocado o alarme. Coloco uma calça jeans, uma blusa verde de seda e um cachecol verde de lã. Desço correndo as escadas e quase derrubo a xícara de café nas mãos de Olly. Uma camiseta azul marinho de mangas curtas deixa a cicatriz á mostra.

– Calma. Não vamos nos atrasar. – ele suspira e me alcança a xícara de café. – Bom dia.

Olho para a xícara branca e a seguro quase queimando minhas mãos.

– Bom dia. – digo indo para a cozinha. Vejo Alex e meu pai procurando alguma coisa na cozinha.

– Estava aqui! – grita Alex.

– Eu já ouvi, não precisa gritar, agora me responda,– diz meu pai tirando a cara da geladeira. - está vendo-o aqui?

Alex olha para os lados.

– O que estão fazendo tão cedo? – pergunto.

– É um grande dia para você. – diz Alex. – E queríamos nos despedir de você antes de ir, eles não deixam depois.

Concordo com a cabeça ainda não entendendo porque estão me apoiando. Olly não disse nada, mas me pareceu normal. Mais normal do que ontem pelo menos.

– Vamos indo? – diz meu pai. – Candice mandou um email uma hora atrás. A cerimônia será daqui a pouco.

Concordo com a cabeça e vou na direção da porta. Entramos no carro preto e meu pai dirige até o relógio central. Um relógio enorme branco perolado e dourado com quase cem trabalhadores dentro dele aguardando as ordens do secretário. Da secretária. Um aglomerado de pessoas começa a ir na direção do palco na frente do relógio.

Um frio na barriga começa a se formar dentro de mim.

Meu pai olha para nós três no banco de trás.

– Eu tenho que deixar vocês aqui. Tchau Andy.

– Tchau pai. – o abraço e abro a porta do carro. Eu, Alex e Olly vamos direto para o aglomerado junto com quinhentos adolescentes de mais de quinze anos reclamando o quanto isso não leva a nada, que era melhor a pessoa ir no relógio e gritar para os parlamentares – parlamentares são pessoas que vão em cerimônias como estas para levar os secretários até o Green palace onde serão responsabilidade de outra pessoa. – que quer ser um secretário e ir para Green palace.

Green palace é onde todos os secretários ficam, é como um internato.

Um dos parlamentares bate palmas e começam as badaladas. Não precisam mais explicar o processo. As pessoas falam disso nas escolas e explicam para crianças de cinco anos para que tomem uma decisão logo. Como eu disse, Candice só adianta as coisas, nunca as atrasa.


As badaladas começam. Primeira, segunda, terceira, quarta, quinta, sexta, sétima, oitava, nona, décima, décima primeira, décima segunda, décima terceira.

A imagem de Candice aparece no meio do relógio. O vestido cinza de sempre, a alta estatura, os cabelos grisalhos e curtos e os óculos vermelhos e retangulares.

Ela pigarreia e pisca algumas vezes.

Então. Mais dois anos se passaram e mais um secretário será escolhido e terá a honra de representar seu país. E me representar. Que o escolhido, seja escolhido.

Que o escolhido, seja escolhido. Esta frase foi meio complicada de se entender nas primeiras vezes que foi dita. Ela quer dizer: Que quem quer ser escolhido, tenha a sorte de alguém não levantar a mão antes de você.

– Alguém? – pergunta o parlamentar. Ele é alto, magro, tem os cabelos pretos com os fios brancos começando a aparecer, as roupas formais. Ele sempre assiste as cerimônias e sempre reclama o quanto demoramos para nos decidir. Levanto minha mão. Todos olham para mim surpresos. – Ah, finalmente uma das escolhas é rápida.

– Eu também! – grita um garoto. Uma voz familiar. Uma voz que não poderia ter pronunciado este tipo de coisa agora. Nunca.

Olly.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Secretários" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.