As Crônicas De Uma Renegada escrita por Norrie


Capítulo 4
Capítulo 3 - Mutante




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Acordo com um gosto amargo na boca. Tento me levantar, mas meus ossos parecem ser compostos de chumbo. Então apenas fico ali, imóvel, com a cabeça e o resto do corpo sustentado em algo gélido e duro. Metal, assim como todo o resto da cela em que estou. Encaro o teto com receio.

Cenas de bombardeios e corpos mutilados preenchem meus pensamentos na velocidade de um Tsunami. Não presenciei aquilo. E nem queria presenciar. Tudo veio de acordo com os sons danificados por minha inconsciência. Depois do que vi, não lembro mais o que aconteceu. Talvez Blindado tivesse me sedado ou algo assim.

O rosto ensanguentado e inerte de Sutton vem logo em seguida.

Mas aquilo era completamente fora de expectativa. Pensei que ela estivesse nos primeiros lugares da fila. Como meu senso de Geografia foi desabar desse jeito? Bom, talvez eu tenha confundido sua cabeleira com a de outra pessoa. Mas o que realmente não tem explicação é: Por que fizeram aquilo com ela? Sutton é uma garota culta, não enfrentaria soldados como eu para acabar naquele estado deplorável.

Tento imaginar todas as possibilidades que possam tê-la influenciado a tal, mas elas me são completamente extintas. Tento imaginar onde está agora, mesmo sem saber até onde eu mesma estou, e o que será que estão fazendo com ela. A torturando? A interrogando? Lavando o seu sangue detrás das unhas?

A matando?

Balbuceio. Uma, duas, três vezes. As possibilidades são infinitas e a cada uma que se passa me sinto mais nauseada do que já estava. Elas continuam a me aterrorizar com seus gritos ao vácuo, cobertos pelos muros que se erguem diante da minha falta de saber. E eu odeio isso. Não saber o que está se passando, imagine agora, com uma coisa de porte tão gicantesco desabando em cima de meus ombros, me espremendo até a última gota de persistência.

Não sei exatamente quanto tempo se passa dentro daquele universo metálico, mas consigo acordar de meu transe de devaneios quando vozes desconexas começam a interferir em minha audição. Como uma injeção de adrenalina, consigo me sentar no retângulo de aço e tento enxergar de onde as vozes veem. Não enxergo.

Está tudo escuro, mas os sussurros avançam em meus ouvidos. Levanto-me. Estou em minhas roupas anteriores, apenas o casaco está jogado em algum canto da cela. O cabelo está grudado a nuca com o suor já secado, o rabo de cavalo que tinha feito se desmanchou em madeixas escorregadas pelos ombros e tento amarra-lo novamente já que me sinto mais desconfortável do que já estou com eles soltos, porém o elástico que o prendia se torou. Pego impulso pelo punho e caminho cegamente até o limite da cela, onde enxergo um fraco reflexo do aço grades que uso como referência.

Minhas mãos fecham-se nas curvaturas finas dos cilindros e encaixo minha cabeça no espaço entre elas, em busca de informações. Cerro os olhos para ver melhor e sigo o som dos murmúrios vindos de algum lugar á esquerda. Inclino a cabeça naquela direção e depois de meus olhos se acomodarem com a escuridão detecto uma curva, seguida por mais grades de outras celas. A silhueta de um rapaz sentado ao chão na primeira cela á frente me transtorna, tanto quanto o movimento de seus lábios que indicam ser o dono de uma das vozes que vem me atormentando. Não consigo ver seu rosto. A cor dos cabelos. Dos olhos. Nada. Apenas que o mesmo é um garoto sentado, prisioneiro assim como eu. Concentro-me no que ele diz.

– A ruiva. Ela não voltou ainda.

Meus lábios se separam em rebate, mas minha voz morre quando outra lhe toma lugar no diálogo.

– Também não me admira ela não ter voltado. Os soldados entraram em pânico quando ela abriu a boca. – É uma garota. Seu tom de voz é superior e rigoroso, mas tem uma pitada de selvageria. Rebelde – Mas o que realmente me surpreendeu foi a outra, de casaco camuflado – Mordo a língua por instinto – Tenente a poupou. Estranho, não é? Ele deveria era ter lhe quebrado a cara.

Um surto de realidade me desperta e as informações circulam por minha consciência como carros em rali.

Sutton abriu a boca?! Para dizer o quê? Foi por isso que a espacaram?

O Homem Blindado é um Tenente? O Homem Blindado é um Tenente bom?

A risada seca do rapaz entoa e um esquadrão de arrepios percorre minha espinha.

– Tenente pode parecer o cara mais incrivelmente tenebroso do mundo, com aqueles músculos todos, mas na verdade ainda tem o coração puro. Lá, em Memphis, vi aquele cara levando uma garota que estava passando mal no colo. Se fosse um desses outros idiotas, teria arrastado a coitada pelos cabelos e se não pior.

– Você veio de Memphis?

Resisto ao impulso de tapar a boca com as mãos e recuar para minha própria cela em busca de esconderijo, mas continuo ali encarando o vazio de sua silhueta. Ambos ficam em um silêncio mortal. Já que me arrisquei abrir a boca, decido ir mais afundo.

– Estão recrutando pelo resto do país também? – Minha pele esquenta e me sinto humilhada por ser deixada falando sozinha. Mais ainda por achar que alguém iria mesmo se enturmar comigo depois de toda essa confusão em que nos meteram.

Já estava voltando á minha cama de metal quando a voz masculina pigarreia.

– Pelo resto da América. – Ele responde baixinho.

– O quê? – Minha voz fraqueja - A América inteira?

– É o que parece. Ouvi um cara gritando em espanhol enquanto me empurravam por esses corredores desgraçados.

Processo suas palavras em silêncio. A voz que acompanhava a do garoto retorna e quebra toda a tensão local.

– Ah, eu reconheço essa sua voz. – A garota retorna a falar, de um jeito despreocupado – A de casaco camuflado, certo?

– É - Ele deveria era ter lhe quebrado a cara – E você é a de língua afiada, certo?

Escuto um murmúrio, quase que como uma risada bastante discreta. O garoto estava debochando da própria amiga a favor de uma completa desconhecida. Automaticamente, gosto dele.

– Na verdade, meu nome é Vetra. – A risada masculina cessa e some entre o ar umedecido – E o seu? Sabe, acho muito errado começarmos a nos odiarmos sem nem ao menos sabermos o nome um da outra.

– Concordo. – Dou de ombros e começo a batucar o chão com a palma das mãos, produzindo um som oco e quase inaudível - O meu é Meena.

– E o meu é Preston, obrigado por perguntarem também – A voz irônica do rapaz sobressai o som de minhas batucadas e acabo afastando a mão para o colo.

– Então, o que estavam comentando tanto? Sobre Sutton? – Puxo assunto, curiosa.

– Quem é Sutton? – Preston demora a pensar, depois pergunta com uma pitada de dúvida – A ruiva?!

– Sim, a ruiva – Confirmo – Vocês falaram algo sobre ela ter falado algo que não deveria... Tem certeza absoluta disso?

– Se não tivesse, não comentaria – Vetra retruca, bufando – E sim, ela falou. Estava na sua frente na hora.

– Então você veio de Venice... Como nunca te vi por lá?

– Não frequento a escola, por isso nunca me viu. Dedico o tempo que tenho para trabalhar. Minha família não é muito rica. – Sua voz falha – Ou não era...

Lembro-me de meus expedientes em conveniências ou lavanderias depois das aulas. Sustentar grande parte da casa por mim mesma e ainda conseguir dividir o tempo que tenho para os estudos. Se Vetra teve que dedicar-se totalmente ao trabalho, não consigo nem imaginar o estado em que sua família estava. Não faz diferença agora que estão todos mortos, assim como meu tio. Engulo um soluço. Recomponho-me e retorno a batucar o chão, desviando o assunto.

– E o quê Sutton disse afinal de contas?

– Eu não sei direito o que foi. – Ela confessa – Estava acompanhando a fila normalmente, mas parou do nada. Parecia ter se tocado do que estava acontecendo.

– E o que estava acontecendo? Além de nossa cidade esta prestes a ser explodida e matar todos que amamos...

– Não. – Vetra me corta, com a voz embargada – Disso todo mundo já estava ciente. Não sei. A expressão dela e tudo mais... Parecia ser algo bem maior. Ouvi-la gritar algo sobre genes, mas aí um soldado lhe deu uma bofetada com o porrete. Ela resistiu um pouco, mas depois apagou.

Repenso as palavras de Tenente: Você vai descobrir, criança – Ele me dissera quando perguntei o que fariam conosco – Todos vocês vão.

– É perturbador como nenhuma possibilidade se encaixa nesse recrutamento – Preston se infiltra novamente na conversa – Genes? O que genes têm haver em estarmos presos? Não há sentido nenhum nisso.

– O presidente disse que tinham encontrado uma solução para a América vencer. – Relembro as suas palavras no quadro negro. – Só que não faço a menor ideia do que isso tenha haver com genes.

– É uma pena mesmo sua amiga não ter controlado a língua – Vetra sibila – Poderíamos ter trocado informações com ela. Sabermos o que ela quis dizer com esses genes. – Sua voz cessa, mas retorna mais ativa – Bom, mas isso não aconteceu. Então vamos ter que esperar para descobrirmos por nós mesmos.

Solto uma risada nervosa. Sutton é a garota mais dedicada do colégio e seu raciocínio é apurado. Se existe alguém astuta o suficiente para desvendar o que se passa em qualquer ocasião, com certeza esse alguém é ela. A parte mais contraditória é que, sempre se imagina que sapiência poderia ser sinônimo á salvação e não á sua assinatura em um atestado de óbito.

Mas mesmo assim, há muito mistério nessa revelação. Sutton não poderia simplesmente adivinhar algo de porte tão grande por si só. É questão de governo. De política. De Guerra. Não há como ela saber qualquer coisa do gênero. A ideia me transtorna.

Tento incorporar minha amiga e pensar por mim própria. Deveria ter algo a mais no qual poderíamos averiguar. Qualquer palavra solta, uma frase de fundo...

Apenas a comandante dá ordens para bater nas crianças.

– Quem é essa Comandante? - Pergunto.

Está tudo submergido pelo preto e mal consigo enxergar a própria palma das minhas mãos, mas tenho certeza que Preston franziu o cenho.

– Eu não...

– É a manda-chuva militar - Vetra responde subitamente, cortando o outro - Se tem alguém responsável por essa bagunça, esse alguém é ela.

– Pensei que esse alguém fosse o presidente - Digo.

– O presidente? - Ela gargalha, finalizando com uma tosse seca. Noto que minha garganta também está ressacada como lixa. Quanto tempo faz que bebi água? - O presidente é só o mártir da publicidade. Assina a permissão proposta pela Comandante, a filma com as falas escritas em um telão atrás da câmera e pronto, todo mundo já acha que o cérebro do exército americano pertence a ele.

– Como você sabe de tudo isso? - Preston indaga.

– Meus pais que me educaram e convenhamos que há matérias muito mais interessantes que Matemática.

– Mas você mesma disse que seus pais...

– Eram pobres? - Sua voz tem um tom bem mais firme, porém pouco contido - Sim, eles eram, mas não significa que pobreza não é sinônimo de inteligência.

– Não quis dizer isso. - Retruco.

– E quis dizer o quê?

– Que trabalhava em tempo integral. Que não tinha tempo para estudos e mesmo assim, como eles poderiam saber desse tipo de coisa?

– Que não tinha tempo para a Escola. - Ela me corrije - Para os estudos sempre há um tempo. E eles trabalhavam em um distrito público, por salários miseráveis, mas eram recompensados com informações. Política é o topo dos assuntos nesses lugares. Quando chegavam em casa simplismente passavam essas informações para mim.

Minha voz já estava eclodindo na garganta quando um choramingo soa no recinto. Não estamos sozinhos. Provavelmente há centenas de outras celas e os outros ou estão aterrorizados demais ou dopados em suas camas de metal.

Preston e Vetra também parecem ter escutado e portanto nos calamos até o momento em que as luzes presentes no teto se acendem. Meus olhos cerram e minha visão lacrimeja, ofuscada. Mal consigo focar nas cores acendidas que tomaram o espaço do preto e cinza, antes de um pelotão de soldados entrarem marchando em duas grandes fileiras pelo local. Só agora, que consigo enxergar todo o espaço onde estou, me surpreendo com seu tamanho, confirmando minha recente teoria.

Há centenas de celas, em diferentes níveis, enfileiradas até onde a visão permite ir, com um piscina de varandas ao meio, no formato de um quadrado. As nossas ficam mais ou menos no segundo nível.

Por trás das pernas que marcham em sintonia, consigo ver a figura de Preston na cela á frente. Ele está me encarando igualmente, com grandes e impactantes olhos azuis, acentuados pela sujeira que contorna todo aquele sítio de pele. O cabelo é castanho e emaranhado, caindo em cascatas suadas até o buço. Seu rosto tem uma cicatriz que ainda não pareceu fechar completamente ao lado da sobrancelha direita e as maçãs de seu rosto estão salpicados por cinzas de explosões, assim como suas roupas que constam uma calça jeans e moletom. A boca, um traço reto de carne rachada. Uma barba rala brota das margens de sua têmpora até o queixo, anguloso e masculino, também esfolado como os nós dos dedos e dos cotovelos. Provas vivas em seu corpo que tentara fugir antes dos soldados aparecerem, mas sem progresso, claramente. Deve ter caído em cima do rádio na correria do momento e com o impacto atingiu o queixo no calçamento. Parece estranho, se formos ver pelo lado do mesmo estar machucado, mas ele não deixa de ser atraente mesmo assim. Na cela ao seu lado, enxergo um garotinho ruivo e gorducho, que se espreme por entre as grades com olhos marejados. Ele funga sucessivamente e sei que o choramingo antes escutado pertencia a ele. Varro os olhos pelas outras celas, esquivando das pernas dos soldados que bloqueiam minha visão. Há um loiro esparramado pelo chão, inconciente. Outro moreno que está sentando em sua cama, se contorcendo levemente da frente para atrás, abraçando as próprias pernas e com os olhos esbugalhados e pertubados fitando um ponto estrategicamente vazio e embaçado.

O problema é que não vejo nenhuma garota que possa ser dada como Vetra já que não sei nada sobre sua aparência, pois tudo que vejo são esses garotos. Sua cela provavelmente fica mais distante.

Observo ainda sentada a fileira de soldados pararem bruscamente e se virarem a sua respectiva cela. O soldado que está de frente a minha cela retira sua luva branca e posiciona a palma da mão em um aparelho ao lado que nem tinha notado estar lá. O mesmo faz um barulho irritante, antes desta se destrancar e deslizar até o fim da parede, onde é engolida por sombras finas. O soldado recoloca a luva e me puxa pelo braço, fazendo-me levantar.

Não resisto ou me debato. Sei que o que quer que esteja por vir, é inevitável. Caminho ao seu lado, enquanto revivo o pesadelo de filas gigantes até chegarmos numa plataforma ampla, de portões de vidro e acrílico, como os da entrada. Adentramos no mesmo e somos empurrados até mesas de metal, onde outros jovens de aparências mais exóticas já estão acomodados.

A América inteira, Preston tinha dito.

Médicos com luvas de borracha e jalecos albinos zanzam pelo local com seringas maiores que meus pés e ativando máquinas de sistemas coloridos. Sou empurrada novamente e desta vez estaciono em cima de uma das mesas e médicos prendem meus pulsos e tornozelos, juntamente com o meu tórax e pescoço. Aí sim, me debato. O que irão fazer conosco? Dissecar-nos? O que quer que seja não é nada de bom.

– Sejam bem-vindos, cobaias. – Um grande holograma se materializa no teto, e o rosto do presidente reaparece. - A América inteira agradece com o peito estufado de satisfação a sua ajuda. Já testamos esta prática há tempos desde o começo da Guerra, mas só podemos concretizá-la agora, em seu estágio mais complexo. E é gráças a ela que podemos nomeá-los como soldados de honra que nosso país terá o enorme prazer de acolher e classifica-los como heróis da pátria. Que serão verdadeiros frutos de nossa glória. Mutantes. Tenham uma boa transformação.

O holograma some e uma gritaria se tem início.

Todos se debatem e choramingam em suas mesas. Nem eu mesma tenho certeza de como agir além de seguir o rótulo do restante. A agulha de uma seringa com um líquido prata é injetado em uma veia de meu pescoço, enquanto uma mordaça é amarrada em minha boca no mesmo momento. Grito estrangulado, sentindo o gelado do metal esterelizado roçar em minhas veias e estufá-las com morfináceo de um jeito agonizante, mas com a ajuda da mordaça tudo que se é audível são murmúrios desesperados que são abafados pelo pano. Minha pele se contrai e meus sentidos vão desaguando mais afundo á consciência.

Mutantes.

Transformação.

Soldados.

Genes.

Tudo se encaixa tarde demais em minha mente e não tenho mais tempo para me lastimar. Estou de volta ao sonho que tive no dia que tudo isso começou. Só que agora, em vez de estar entre o fogo cruzado, estou no meio de uma das tropas, rugindo para os inimigos e mirando uma metralhadora em suas cabeças.

Minha visão começa a se desfocar e meu corpo corta ligações de comando, de modo que não obedece mais aos meus movimentos. Sinto agulhas e fios sendo encaixados em meu peito e em minha cabeça e uma dor intensa me possui, sugando minhas forças restantes com a ajuda do Morfináceo.

Mutante. - É tudo que consigo pensar enquanto descargas de eletricidade envolvem minhas articulações.

Mesmo contra minha vontade, acabo apagando.


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