As Crônicas De Uma Renegada escrita por Norrie


Capítulo 2
Capítulo 1 - Benção Perdida




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A água morna escorre por minha pele em uma velocidade gratificante.

Não me movo. Não me ensaboo. Apenas fico ali, abaixo daquele chuveiro torto e encardido, sendo corroída por cenas trágicas em que a televisão antiga de casa mostrava por noticiários que ainda tinham coragem de permanecerem ativos, enquanto a água varre o suor de meu corpo inerte.

Imagino-me no sonho que tive ontem. Impotente, no meio de tropas inimigas, sendo servida de mira por ambos os lados. Completamente morta. Pergunto a mim mesma o porquê de tudo isso. De toda essa política de espancamento apenas para provar qual dos continentes é o mais poderoso. E eu lhe digo qual é: Nenhum. Nenhum daqueles cretinos tem o poder merecido. Porque nenhum deles pensou antes nos inocentes, que assim como eu, estavam no meio de seus fogos cruzados.

Condenados.

– Ainda está aí, seu verme?! – A voz embriagada de meu tio repulsa por trás da porta. Resisto ao impulso de chama-lo por algum palavrão. – Vamos, saia logo daí! Água não é eterna!

Passo rapidamente o sabão quadrado pelo corpo e me enxaguo. Uma toalha gasta pende-se em cima do Box. Enrolo-me com a mesma e escovo os dentes, ignorando as batidas violentas daquele bêbado na porta simples de madeira. Destranco-a e encaro com rivalidade aqueles olhos soterrados por rugas de expressão. Rabugentos. Barba suja e mal feita salpica o rosto descascado pelo sol desde abaixo de seu nariz redondo, até metade de seu pescoço gorducho. Sua pança está cheia de farelos de bolacha. Ele me encara da mesma maneira e entra no único banheiro da casa, praguejando algo sobre querer ter deixado a sobrinha morrer junto com os pais.

Faço questão de chutar a porta e sair correndo até meu quarto só por causa de seu comentário.

Quem ele pensa que é para assolar a honra de meus pais daquele jeito?

Tenho fortes ressentimentos por causa desse assunto. Meus pais não mereciam o destino que tiveram. Não mereciam ter sido vítimas. Na verdade, ninguém merecia. Ninguém além de quem promoveu todo esse inferno. Quem arrancou a vida de quem me deu uma. E também, - É claro - aquele cretino que chamava de Tio.

Por sorte sou rápida, mesmo que só de toalha, e consigo chegar ao meu quarto antes que ele me alcance e me espanque por meu atrevimento. Passo a chave pela porta e recuo um passo por instinto. Meu tio continua esmurrando-a, mas finjo que não ligo e começo a me trocar.

– Eu juro que se não abrir... – Ele me ameaça. Empino o nariz enquanto subo o jeans por minhas coxas e fecho o zíper.

– Não vai fazer nada – Enfrento-o, arrancando uma regata preta e meu usual casaco camuflado do armário. Os coturnos estão visivelmente encostados no parapeito da cômoda modesta. – Portas trancadas só abrem com chave, velho. E a chave está do meu lado, então pare de me encher e volte a se embriagar. É o melhor que você faz.

– Garota atrevida, espere até você sair daí – Ele chuta a porta da mesma maneira que havia feito na do banheiro e sua voz ganha distância, ainda me xingando.

Calço os coturnos e agarro a alça de minha mochila. A janela ampla, acima da cama – que está com uma das pernas quebradas – me da perfeita passagem para fugas como aquela. O único ponto negativo, é que o quarto fica no primeiro andar, então tenho que me arriscar a pular na murada todos os dias para depois conseguir acesso á rua. Atiro minha mochila por cima do ombro e ela atinge a calçada empoeirada, formando um pequeno redemoinho de terra antes do mesmo dissipar-se com o vento. Jogo as pernas para o lado de fora e pego impulso. Caio em cima do muro e escalo o cercado até a calçada, onde recupero a mochila. Dou algumas batidas na mesma para espantar a sujeira e começo a correr pelas calçadas estreitas do vilarejo praieiro.

O céu de hoje está nublado. Finas massas cinzentas mesclam o fundo azul-celeste e prevejo uma chuva para mais ou menos até o fim da manhã. O vento está cauteloso, mas não deixa de açoitar levemente as palmeiras no extremo da orla. As ondas se chocam na crosta com violência e tenho que voltar para a calçada do outro lado da rua para não molhar meus sapatos. As ruas estão vazias, apenas um vendedor ambulante ou outro estudante é quem se arriscam sair de casa. Sei que parece um ato suicida, ir á rua aberta, com granadas mirando acima de suas cabeças. Mas aqui em Venice, não há guerra.

Não até agora.

Quando meu pai ainda estava vivo, á uns dois anos atrás, ele costumava me colocar em seu colo, mesmo me debatendo e insistindo que já era grandinha demais para isso. Não adiantava, papai era extremamente insistente e eu acabava sempre cedendo.

Ele colocou as cartas na mesa. Fazia míseros três meses que a terceira guerra mundial havia começado, então a mesma ainda não tinha chegado na América, mas aquilo não era desculpa para se aliviar. Era mais como uma prevenção. Eu tinha 13 anos, mas não era nenhuma boba. Sabia o que uma guerra significava. Sabia seus riscos e seus frutos. Mas não sabia como me desenrolaria no meio de um cenário como aquele.

Entrei automaticamente em pânico.

Papai me pôs novamente no colo e começou a me consolar de um jeito tão único, que a paranoia acabou se esvaziando em poucos minutos.

Mas não se preocupe, meu anjo – Ele dizia, afagando meus cabelos de modo tão sereno que chegava a pensar que essa guerra não era tão preocupante assim – Enquanto estiver aqui, em Venice, nada vai acontecer com você. Este lugar é abençoado.

Por todos esses dolorosos anos, mesmo depois de sua morte, me agarrei tão fortemente á essas expectativas que a ideia acabou se alojando em minha cabeça. Mas isso não significa que ela a tenha me tornado ignorante. Eu sei o que acontece lá fora, do outro lado desse mar traiçoeiro. Eu sei o que aquelas cenas de carnificina nos noticiários Norte-Americanos significam ao resto do mundo. Eu sei que há destruição. Mas prefiro apelar, pela primeira vez na vida, pelo lado positivo. Não tenho forças o suficiente para desmentir os ditos de meu pai. Muito menos agora, já que suas palavras são meu único sustento da sanidade, que está sendo posta em prova diante de um tio que me odeia e uma guerra maldita que está inclinada a me arrancar a vida. Sem pressão alguma, imagina.

Chego á Academia em menos de quinze minutos. O mesmo é um prédio acinzentado, de quatro andares, com aspecto de prisão. A esplendorosa grama verde, regada pelo orvalho, é quem desvia toda aquela primeira impressão de morte que o local emana. Uma plaquinha, escrita “Academia Municipal de Venice”, está enferrujada e parece que irá decompor-se a qualquer momento. Caminho com passos apressados até a entrada, apertando o casaco contra meu peito.

Venice, em dias melhores, tem um clima veraneio e quente, o que atrai mares de turistas até as praias que se estendem por aqui, mas depois de todo esse inferno ter início o turismo despencou totalmente. Só quem vai á praia, é quem necessita da pesca para sobreviver. E olhe lá. A exportação também foi extinta. Agora, só vende no continente em que se está e só compra nele. Uma verdadeira burocracia. E o clima dos últimos tempos também não colabora muito. Choveu quatro semestres inteiros desde 2499. Bem que poderíamos saber o porquê, mas o horário com os homens do tempo foram cancelados. Agora, o único foco da televisão é a guerra. E unicamente ela.

Puxo o capuz camuflado para frente de meu rosto e enfio as mãos trêmulas pelo frio nos bolsos do casaco. Jovens de todas as idades e tamanhos passam por mim pelo corredor úmido, a maioria, com semblantes abatidos. Poucos são os grupos que ainda conseguem se divertir. Uma garota do primeiro ano esbarra em mim e grita alguma coisa obscena, enquanto avanço até a sala de aula com um pouco mais de pressa. Chego no quadrado de gesso que chamo de sala e me esgueiro pelas fileiras até o fundo, onde sento. Fico batucando a mesa com a ponta dos dedos enquanto o restante dos alunos chegam, seguidos pela professora.

Sra. Pepper que ensina a mesma sala desde que se entende por gente, apesar do frio, está em um vestido colorido estilo havaiano, com tamancos trançados. O cabelo está preso em um coque levemente desgrenhado. Uma orquídea pende acima de sua orelha esquerda. Ela em si, é um amor de pessoa. Não se estressa facilmente, apesar de toda a bagunça que era minha sala. Agora, todos fazem no máximo cochichar entre si, e a Sra. Pepper realmente não liga para coisas tão pequenas assim. Ela tira o material de sua bolsa e começa a rabiscar o quadro negro com anotações históricas. Nem ao menos acompanho sua voz, minha cabeça desliza por entre meus braços e cochilo.

Uma voz debochada ecoa ao meu lado.

– Ei, tira esse capuz. Ta parecendo uma criminosa.

– A intenção é essa – Sorrio fraco pelo sono – Ninguém se mete com criminosos.

Sutton ri, enquanto despeja o conteúdo de cadernos em cima da mesa. Ela é minha única amiga por aqui, o que a faz uma irmã praticamente. Sutton é menor que eu. Tem cabelos ruivos e cacheados, que estão contidos em uma trança cega. Os olhos cintilam em um verde-musgo. Sardas salpicam seu nariz. Suas roupas consistem em um moletom cinza aberto, com uma regata azul e uma calça rabiscada com marca-textos de diferentes cores. Abaixo o capuz e sustento o queixo no pulso, tentando resistir ao sono, enquanto minha amiga fica concentrada na explicação da Sra. Pepper que eu não faço a menor ideia sobre o que seja.

– Abdicação do papa? O que quer dizer abdicação? – Tento me infiltrar no assunto, mas da pra notar o quanto sou péssima nisso.

– Quer dizer dar seu cargo a outra pessoa. Desistir de exercê-lo – Sutton, como sempre, sabe de tudo e mais um pouco. O que me irrita um pouco. Para quê essa inteligência vai servir, afinal de contas? Não há mais empregos dignos. Estudando bastante ou não, acabaremos no mesmo estado, independente do quão seja a diferença de QI de cada um: Pescando pelo resto da vida ou em covas.

– Bem que aqueles cretinos políticos poderiam abdicar também – Suspiro – Essa porcaria de guerra acabaria.

– Não é tão fácil assim, mas é bom pensar que sim.

Um toque de sino ressoa em todo o prédio e a Sra. Pepper se despede com um sorriso amistoso e um aceno rápido. Viro-me para pegar o livro de Álgebra para a próxima aula quando o quadro pisca em uma luz amarelada. Todos se viram para trás, inclusive eu, e dou de cara com um projetor antigo que pensava estar quebrado á milênios.

– Mas o quê...?

– Cidadãos de Venice – Uma voz retumbante preenche a sala e todos se viram novamente para o quadro, onde o busto de um homem velho em um paletó aparece. Arquejo. Aquele era o... – Sou France Thomas, o seu presidente.

Murmúrios nervosos acompanham a gravação. Sutton se levanta, bate a mão na superfície de sua mesa e o som pesado sobressai as vozes angustiadas.

– Calem a boca! – Ela grita – É o presidente, deve ser importante.

Se ela fizesse isso em outras condições, aposto que todos não hesitariam em apedreja-la, mas o clima estava tão melancólico que acabaram por obedecer. Mal tive tempo de encarar a sua expressão cerrada, quando a voz retorna.

– Estou aqui para avisa-los do que irá acontecer á seguir. – O homem tem uma expressão translúcida. Fala tudo sem nem ao menos piscar, como se fosse um robô programado – O mundo está em guerra neste exato momento e a América conseguiu uma solução prática á nosso triunfo, mas precisamos de sua colaboração para exercê-la. Os jovens entre as idades de 11 e 19 anos, por favor, façam uma fila organizada no centro da cidade. Meus soldados irão busca-los. Uma nave do governo estará lá para recepciona-los. Aqueles que não obedecerem á essas ordens, serão capturados da mesma maneira. Agradecemos a doação de suas crianças e de seu lar para a contribuição á vitória de nosso continente.

A imagem do presidente tremeluz e desaparece.

Gritos abafados e soluços de desespero começam a se espalhar não só pela aquela sala, mas por toda Venice. Fico apenas em estado de choque, sem conseguir processar o que acabou de acontecer.

Agradecemos a doação de suas crianças e de seu lar para a contribuição á vitória de nosso continente.– Seu anúncio era mais do que evidente: A guerra chegou á Venice.

E ela acabou de perder sua benção.


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