Nascido Do Sangue escrita por Viúva Negra


Capítulo 67
Estrelinha




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Numa tarde, Damian estava lendo um poema de um de seus escritores romenos favoritos, Vasile Alecsandri¹ enquanto era contemplado pelo sombrio silêncio que tomava o aposento principal da mansão, estava sentado numa poltrona revestida com grossa lã bordô ao lado da cama, os olhos atentos às palavras, absorvendo-as e transmitindo à mulher:

                                              

                                      Estrelinha

Você que está perdida no escuro para sempre

Permaneça doce e amada em minha alma

E que uma vez brilhou tão viva

Quando eu e você estávamos sozinhos no mundo

Ah! Mais suave, mais macia e misteriosa luz!

Sempre por entre as estrelas eu busco minha dor

E muitas vezes com você a noite era tranquila

Na imortalidade faz um longo e alto voo.

Anos após suas lágrimas e muitos outros vão passar

Foi no tempo da peste que eu te perdi

E nada irá acalmar meu profundo pesar

Como a eternidade triste não é a última

Prazeres do amor, prazeres deliciosos!

Eleva futuros sonhos grandiosos

Você morreu em um breve momento que a estrela

Deixou uma profunda escuridão para trás

Você fora minha cruel ilusão

Eu tenho um outro consolo vindo à Terra

Ao invés de louvar por você em meu pensamento apaixonado,

Estrelas sorriem além do túmulo!

Há mais, ah! Muito mais vida onde eu amei você,

Uma doce carícia para minha alma

E a felicidade que você derramou em mim

Quando eu e você estávamos sozinhos no mundo

Completamente linda com suas asas brancas!

Como um sonho dourado que em minha vida brilhou

E nos céus com pressa, como um aroma de flores

Foste, deixando-me apenas uma amada lembrança

Um tesouro de recordação dos sonhos felizes

Caros beijos quentes e doces

Glorificados dias ensolarados

Encantadoras noites de Veneza

Uma recordação poética coroa a minha vida

Que de conforto é gerado o meu terno coração

E se junta com harpas de estrelas

Quando eu te adorar oh! Querida e suave estrela!

Mais do que amo o sol

Você despertou meus sentimentos poéticos

Receba em outro mundo estas lágrimas

Tal como o eco suave do nosso doce amor!

Dava ênfase em cada palavra e sua voz alterava o tom de sombrio para brando, de brando para sombrio, era um poema soturno, porém ainda sim cheio de amor e paixão e apenas pelo tom de sua voz notava-se até a dor em cada palavra escrita. Fechou o livro calmamente lançando um olhar indagador para a mulher, como se perguntasse se havia gostado do poema e do modo como o havia lido.

___ Eu estou enferma e você lê um poema que fala sobre um amor morto, que revigorante!___ brincou a viúva.

___ Mersi, mas... Aprecio muito este poema e a romântica e trágica história que há por trás dele, Alecsandri perdeu sua amada para uma grave doença e esta foi a melhor forma de demonstrar sua dor e seu amor.

___ Fará um poema para mim quando eu morrer?

___ Nu.

Andreea entristeceu-se, porém antes que pudesse dizer qualquer coisa, Damian prosseguiu:

___ Você não vai morrer, minha querida, farei o impossível, esgotarei todas as minhas forças para que fique bem.

___ É tarde, draga mea, não há como me salvar.

___ Não se entregue tão facilmente.

Ao levantar-se da poltrona, o jovem inclinou-se perto do leito e despediu-se da mulher com um carinhoso beijo em sua fronte aquecida por uma febre amena, antes de fechar a porta do quarto, olhou para ela e disse sua última frase:

___ Procure descansar um pouco, irei dar uma volta no povoado para comprar mais algumas ervas medicinais e legumes para a criada lhe fazer uma sopa no jantar, voltarei em breve.

___ Eu te iubesc, Damian.

Cada sílaba emanada dos volumosos e descoloridos lábios da mulher eram como uma chama aquecendo seu coração e ao mesmo tempo enchendo-o de culpa, não queria deixá-la assim, mas não queria ficar ao lado dela, preso a uma ilusão cruel que apenas os matava pouco a pouco, apenas sorriu e disse fechando a porta:

___ Durma bem, querida, até mais.

Fora até a feira do vilarejo, andava entre as pessoas como um alguém comum, sentia falta deste contato com outros corpos, mesmo que fosse só por um momento, precisa ver rostos desconhecidos, ouvir vozes estranhas, não mais suportava nem ao menos o cheiro daquela casa, tudo tão fúnebre e quieto como um mausoléu e ainda mais com Andreea parecendo estar à beira da morte. Uma parte de si culpava-se por não permanecer ao seu lado, algo poderia acontecer e pensava que jamais iria se perdoar, mas não mais podia continuar ali, iria enlouquecer. Olhava em volta, as pessoas comprando frutas, legumes, verduras, bolos, pães, flores, carne, todos estes cheiros se misturavam e tornavam-se apenas um, tão delicioso e envolvente.

Todos sempre tão educados, cada um preso em seu próprio mundo, preocupados com seus afazeres, mas ainda assim sorriam e paravam para cumprimentar o vizinho, perguntar como tem passado e logo voltavam para seus sonhos irrealizáveis, pelo menos era o que pensavam.

Dentre tantos rostos, Damian deparou-se com um que conhecia muito bem, Rosalind estava com sua mãe a alguns metros, estavam na barraca de ameixas, seus olhos refletiram o semblante dela como se fosse a primeira vez que a via, o modo delicado como pegava cada uma das frutas, observava atentamente e escolhia de modo sábio as mais roxas e lustrosas guardando-as suavemente em uma cesta trançada com bambu e decorada com algumas flores amarelas.

___ Mamãe, acha que temos o bastante?___ perguntou a moça examinando a cesta.

___ Oh, acho que sim, querida, pegue alguns tomates na barraca ao lado enquanto escolho algumas ervas.

___ Tudo bem.

O caminho estava tumultuoso até a barraca dos tomates, acidentalmente a jovem esbarra em um camponês fazendo com que sua cesta caia e as ameixas espalhassem-se pelo chão, ela estava desatenta e preocupada em recuperar todas as frutas rapidamente que não percebeu alguém ajoelhar-se ao seu lado dizendo:

___ Deixe-me ajudá-la, senhorita.

___ Oh, não é necessário, senhor, eu...

Seus olhos levantaram-se até irem à direção de onde viera o som daquela voz que levara alguns instantes para conhecer, eis que um sorriso tímido, porém eufórico abriu-se em seu rosto enrubescido.

___ Damian...

___ Por que a surpresa?

Ambos rapidamente ergueram-se, o rapaz entregou-lhe a cesta contendo todas as ameixas, Rose olhou com medo para sua mãe e percebeu que ela ainda estava distraída com os temperos e também com o dono da tenda.

___ Ameixas?___ inquiriu ele no intuito de forçar o renascimento do diálogo.

___ Da, da, mamãe e eu iremos fazer um barril de tuica² para esta noite ___ explicou a jovem ___ O que faz aqui?

___ Eu moro nesta vila.

___ Pensei que morasse com a viúva Voiculescu ___ retrucou a garota rispidamente.

___ Sim, moro ___ confirmou o rapaz pouco se importando com esta adorável rispidez.

___ E por que não está ao lado dela? Soube que está enferma, precisa mais do nunca de você por perto.

___ Sinto que não é somente ela que precisa de mim.

A donzela ficara sem fala, tentou disfarçar, desviar o olhar, mas parecia que mesmo virando as costas para ele, o ferreiro podia ler sua mente e desvendar seus sentimentos.

___ Está enganado.

___ Pode repetir isto olhando nos meus olhos?

O coração dela bateu mais rápido, sentiu seu corpo aquecendo-se, tentou afastar-se dando uma desculpa, mas sentiu os dedos do jovem entrelaçando-se em seus braços.

___ Não, Rose, por favor, não vá.

___ Não posso ficar, sabe disso.

Ela viu o rosto dele perder o brilho, o que lhe partia o coração, ter que decepcioná-lo.

___ Eu sei, mas preciso de você, só por um momento, por favor.

Estava difícil controlar suas emoções quando sentiu a álgida e delicada mão masculina tocar-lhe brandamente o rosto, segurando a cabeça da amada com as duas mãos e olhando fixamente em seus olhos, disse:

___ Hoje à noite, no bosque.

___ Damian, entenda que eu...

___ Esqueça esta maldita tuica! A lua virá por nós esta noite ___ murmurou o rapaz desprendendo suas mãos da face esmorecida da garota e a deixando imóvel acompanhando-o com seus olhos até sumir na multidão.

Ionel estava na ferraria, estava moldando uma ferradura que um cliente havia encomendado, suas mãos estavam enrugadas e tortas, doíam a todo instante, mas mesmo assim não podia parar, pois não havia outra maneira de sustentar sua casa e a jovem Viorica, que jamais iria abandoná-lo, como se fosse mais do que um senhor, mas um irmão mais velho ou um pai, levou o material de ferro até um enorme recipiente com água e lá o jogou, uma nuvem de fumaça branca formou-se ao redor como uma densa neblina e o som da água tocando o objeto cálido acompanhava a bruma com um fino chiado. Ambos findaram-se no mesmo momento, quando o ambiente voltara ao normal, o velho homem pôde ver a figura de Damian olhando fixamente para si.

Petrescu assustou-se ao ver o garoto imóvel e quieto, porém após o susto começou a rir e disse com uma voz surpresa:

___ Ora, Damian, não faça mais isso! Saiba que seu pai já não tem mais um coração tão forte, mais um susto desses e eu não volto para casa no fim da tarde.

___ Não diga tolices, tata, eu vim ver o senhor.

___ Que bons ventos o trazem, fiu?

___ Os ventos da saudade.

___ Isso é bom, băiatul meu, Viorica e eu estamos sentindo muito a sua falta.

___ Sinto muita falta dela também.

O rosto de Ionel enternecera ao olhar no fundo daqueles cândidos olhos azuis e abrindo os braços, ele falou:

___ Venha cá, meu filho.

Damian então o abraçou amorosamente e pareceu-lhe que todas as lembranças de seu pai vieram junto com o gesto de carinho, as noites quando dormia sobre seu peito e na manhã seguinte acordava em sua cama, as primeiras lições sobre o ofício de ferreiro, a amizade, o companheirismo e o apoio, as lágrimas reuniram-se no canto de seus olhos joviais, mas não podia estragar aquele momento.

Ionel estava radiante por dentro, somente Deus sabia das noites que passou em claro rezando pelo filho, certamente que já era um homem feito, sabia o que estava fazendo, mas ainda assim o amava mais que tudo e pedia para que ficasse bem, pois não sabia o que faria se algo acontecesse com seu rapazinho. Sentiu os braços fortes do adolescente apertarem seu corpo.

___ Mas que abraço forte, fiul meu, a viúva Voiculescu deve estar cuidando muito bem de você!

O sorriso desaparecera por ora do rosto do jovem, então seu pai, notando isto, inquiriu:

___ Eu disse algo de errado?

___ Não, tata.

___ Então o que houve, fiu?

___ Andreea adoecera há alguns dias, apenas fica deitada, mal come ou bebe, eu não sei o que fazer.

___ O melhor é ficar ao lado dela, meu garoto.

___ Foi tudo que fiz nos últimos dias.

___ Fique calmo, filho, ela vai se curar, deve ser somente uma gripe passageira, com chá de ervas e muito repouso ela logo ficará bem.

___ Assim espero, tata. E Viorica como ela está?

___ Por que não vai até lá? Tenho certeza de que a fará muito feliz.

O rapaz sorriu.

Viorica estava na cozinha secando a louça enquanto um cozido de legumes estava borbulhando em um caldeirão no calor de um fogão a lenha, não pôde ouvir a porta da frente se abrindo, passos fazendo o assoalho velho de madeira gemer e uma presença parar na porta da cozinha observando-a em silêncio.

Quando virou-se e percebeu Damian ali, tomou um susto que quase a fez derrubar um prato, se não fosse pelo rápido movimento do rapaz ao segurar a louça, ela já estaria espalhada em cacos pelo chão.

___ Mulțumesc, não queria assustá-la!

___ Oh, senhor Petrescu, a culpa é toda minha.

___ Como pode? Deixe-me ajudá-la.

___ De maneira alguma, senhor.

___ Por favor, Viorica, eu insisto.

Como poderia resistir àqueles olhos azuis roubando toda a sua vitalidade?

___ Como quiser, senhor.

Em questão de segundos o garoto recolhera todos os cacos com uma pá de madeira e uma vassoura jogando-os em um saco de pano.

___ Como tem passado, senhor?

___ Bem, obrigado. E você?

___ Bem também.

Um breve silêncio, a garota fitava as pálidas mãos do jovem amarrando fortemente o saco e o colocando em um canto da cozinha.

___ Tem sido solitário sem o senhor aqui.

O rapaz voltou-se para a órfã, percebia a tristeza em seus olhinhos negros.

___ Sinto saudades daqui.

___ Então por que não volta, senhor?___ havia um tom de ansiedade na voz de Viorica que Damian pôde perceber facilmente.

___ Não posso.

___ E por que não?

___ Andreea está doente, não posso abandoná-la.

___ Entendo, senhor.

___ Vim ver apenas como estava.

___ Estou bem.

___ Isso eu já vi ___ respondeu com um sorriso tímido.

Mais uma vez o silêncio criou uma cruel tensão entre ambos, até que Damian o quebrou dizendo:

___ Preciso ir.

___ Não quer ficar para o jantar?

___ Eu adoraria, mas...

___ Não precisa continuar...

Aquele momento estava tornando-se difícil, Petrescu só queria entender o por que de todo aquele silêncio sufocante.

___ Então até mais, querida.

Subitamente a menina tocou o rosto frio do rapaz e sorriu, ele nada disse, estava confuso perante aquela ação, porém ao fitá-la fixamente, começou a perceber que estava nervosa, algo que parecia imperceptível aos olhos, mas que era fácil de sentir, pôde ouvir o som de seu coração batendo mais rápido como se fossem bumbos de uma orquestra andando no meio da rua de um grandioso festival.

___ Obrigado, Viorica, passe bem ___ agradeceu ele com um sorriso desajeitado nos lábios e então se foi.


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Notas finais do capítulo

1. Vasile Alecsandri (Bacău, 21 de julho de 1821 Mirceşti, 22 de agosto de 1890) foi um poeta, dramaturgo, político e diplomata romeno. Coletou canções folclóricas romenas e foi um dos principais animadores do movimento do século XIX para a identidade cultural romena e união da Moldávia e Valáquia.
Apaixonou-se pela irmã de um amigo de sua família, Elena Negri, que correspondeu suas declarações. Elena abateu-se por uma terrível doença que a fez viajar para Veneza, onde reencontrou Vasile e lá passaram dois terríveis meses. Ambos atravessaram Áustria, Alemanha e França e em Paris a doença se agravou.
Após um breve período na Itália, ambos embarcaram num navio francês de volta à Romênia quando Elena não mais resistiu à enfermidade e morreu nos braços de Alecsandri, ele então canalizou sua dor em um poema "Steluţa" (Estrelinha) e depois disso, dedicou-se à poesia.

Pessoal, desculpe se a tradução fugir um pouco do poema real, mas... não é nada fácil traduzir do romeno, então se alguém souber como é corretamente, podem me dar um toque ;)

2. A "tuica" é uma bebida típica romena, uma aguardente de ameixa,
com variação de teor alcoólico, secura e buquê. Normalmente, tuica só é consumido
antes da refeição (tradicionalmente a cada refeição).
Na maioria dos casos, apenas uma dose é servida,
pois é forte demais para ser degustada. A bebida também está presente em todos
as comemorações tradicionais, tais como
casamentos, batizados, festas de caça,
festivais de colheita, feriados religiosos,
e reuniões de família.



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