Nascido Do Sangue escrita por Viúva Negra


Capítulo 64
Olá, Vida! Que bom revê-la!




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Damian procurou dormir um pouco, há dois dias sentia-se exausto como se passasse longos períodos de tempo dando conta de difíceis encomendas na ferraria sem pausa sequer para respirar. Parecia que as lembranças da época em que levantava-se junto com o sol e partia ao seu lado estavam sendo esquecidas, os requintes e prazeres fáceis estavam tirando a graça de um trabalho árduo para construir algum tipo de sonho.

Petrescu tinha cada vez mais certeza que a vida de uma pessoa da alta sociedade era mais podre e vazia quanto um tronco morto de árvore. Tudo era feito para manter as aparências, mesmo que para isto fosse necessário a infelicidade própria e de outrem. Uma vida tão frívola quanto a de um cão sem dono, guiando quem lhe dava um breve sorriso, às vezes sendo usado como rápida fonte de entretenimento e sem mais tardar, a solidão voltava a calçar os pés e patas desnudos e lhe guiar tão bem quanto um homem embriagado.

Uma fria existência sem qualquer tipo de sonho permanente ou desejo ardente, apenas uma vontade mesquinha e passageira, a cobiça pela banalidade e o descontentamento de procurar ao menos uma centelha de ilusória alegria e encontrar apenas a escuridão lhe sorrindo.

Damian parecia não mais se preocupar, se suas suspeitas fossem confirmadas, daria adeus àquele mundo em breve, nunca mais teria que aturar outra convenção de palhaços mascados de condes, barões e viscondes, um perfeito circo disfarçado de baile, uma reunião de seres fúteis e pedantes onde, para eles, a felicidade é encontrada no bolso de um pobre homem ou entre as pernas de uma jovem mulher. Nunca mais seria o centro de uma atenção negativa, sem pressão, sem mágoa, sem outra morte que não fosse a sua, nunca mais.

No sonho eles vieram, mais uma vez, o garoto já podia esperar, mas foi pego de surpresa novamente. Eles estavam ali, tão aterradores que faziam seu sangue gelar, tão julgadores quanto à ira solene de um desconhecido e adorado Criador, estavam ali feito a luz deleitosa de um farol apontando o caminho na negridão. Damian não podia fugir deles, eles estavam ali, não adiantaria sequer se esconder, eles sempre o achariam, os preciosos e sedentos olhos azuis.

Sedentos pelo quê? Do que um olhar pode ter sede? O que aquelas soturnas e azuladas janelas absorviam e guardavam a sete chaves, no silêncio, no vazio, no escuro? Não estava seguro nem em meio à luz cálida de seu algoz, o céu trazia o tom da dor de uma noite mal dormida protagonizada por órbitas macabras e sedentas. Sedentas? E ao cair da noite, mil outras lacunas atentas e curiosas surgiam num céu vestido de negro.

Olhos tão azuis quanto os de Damian, sensuais e destemidos, penetravam na alma sugando seus mais doces sonhos e saboreando-os como se fosse o mais suculento dos vinhos, entretanto, foram olhos tão verdes quanto cintilantes esmeraldas que recepcionaram em frente à porta que dividia a fantasia e a realidade.

Além do brilho tênue e esverdeado, uma respiração roçando ardente em sua gélida tez lhe fizera estremecer, uma voz chamando seu nome, agarrando firme sua sanidade e a puxando para a superfície, para longe da escuridão. Petrescu abriu os olhos e, primeiramente, deparou-se com um borrão dourado como se fosse a Graça de um anjo velando-lhe o sono, mas assim que a névoa sonolenta abandonou seu olhar, pôde contemplar uma criança, uma doce e preocupada criança que lhe fitava com alegre curiosidade e certo entusiasmo, como se houvesse esperado o ano todo pela noite de natal.

___ Bună seara, draga mea ___ murmurou Andreea esticando os lábios num sorriso convidativo.

___ Já anoiteceu?___ perguntou surpreso o rapaz, exalando um suspiro cansado como se as horas de sono de nada valessem.

___ Há pouco mais de uma hora ___ respondeu.

___ Por que me acordou?

___ Pensei que estivesse com fome.

___ Não estou ___ retrucou o garoto com rouquidão em sua voz.

___ Mas precisa se alimentar!___ insistiu a viúva.

Andreea percebeu que Damian se calara, não estava disposto a começar uma discussão desnecessária, desviou o olhar para a janela cujo vidro estava sendo ocultado pelas pesadas cortinas de veludo.

Ela percebia que seu querido amante dava muito prestígio ao silêncio, como se ambos nunca tivessem tido uma conversa a sós, Damian sempre o respeitava e emudecia-se perante os simplórios, porém filosóficos argumentos deste célebre companheiro das noites vazias.

A mulher correu os olhos de um lado a outro e entreabriu a boca na intenção de iniciar uma nova frase, todavia, com grande pesar em roubar a fala do respeitoso amigo e conselheiro de Petrescu, a palavra por ora estava com ele, o silêncio.

___ Gostaria de uma taça de vinho?___ sugeriu ela.

Damian fechou os olhos tentando buscar no lado mais enegrecido de seu âmago a gota brilhante e cândida de paciência de sua vasta fonte quase ressequida, Andreea sugara boa parte, o ferreiro até sentia certo alívio em não ter desperdiçado o conteúdo desta fonte com nada nem ninguém mais, nem mesmo com Tristan, que lhe apunhalara bem diante de seus olhos, nem mesmo ele valia litros e mais litros de sua paciência, resolveu presentear a viúva Voiculescu com esta dádiva.

___ Não, obrigado ___ respondeu procurando ser o mais afável possível.

___ Mas está fraco, draga mea, não comera nada durante o dia.

___ Eu estou bem ___ Damian exalava fraqueza ridiculamente óbvia em suas palavras.

___ Ora, é claro que não está, meu querido! Aceite ao menos um gole.

A voz de Andreea era insistente tal qual uma criança mimada, uma pobre criancinha que só desejava atenção, nem que para isto fosse necessário que outros fizessem sacrifícios. Petrescu encarou aquelas esmeraldas esbugalhadas e reluzentes, sedutoras e ansiosas, estava fraco, porém não fisicamente, era uma fraqueza distinta, algo que esmorece a alma e inebria o coração, a única coisa que podia dizer desunindo seus lábios murchos era:

___ Está bem.

A mulher sorriu, sem mostrar os dentes, somente esticou os lábios num gesto meigo no qual a aparente ternura ocultava um jubiloso triunfo.

___ Vou ajudá-lo a sentar-se.

Andreea era tão prestativa, atenciosa, preocupada, gentil, Damian nunca seria capaz de descrever todas as qualidades que rodeavam aquela mulher, era uma joia rara, algo recôndito nas sombras, mas quando descoberto emanava uma luz própria, o jovem sentia-se em paz ao lado dela, uma paz excitante, sexualmente falando, e eufórica, uma euforia lúdica e bela tal qual a gargalha de uma criança.

Nunca se cansava de compará-la a uma criança, pois era isto que ela era, debaixo de toda aquela maquiagem provocante, daquelas roupas lascivas, bem ali, num lugar no qual ninguém havia conhecido ou estado, lá estava a verdadeira Andreea, uma garotinha com olhos de estrelas e cabelos que pareciam absorver e irradiar a luz do sol, brincando entre as árvores de um florido bosque, estaria se escondendo? Talvez estivesse, contudo, Damian foi o único capaz de encontrá-la.

O ferreiro estava encostado na cabeceira da cama, tendo um travesseiro entre a madeira e suas costas, ele ainda sentia vestígios da nefanda enxaqueca, a tontura era como um rastro quente, uma pérfida lembrança de que a dor era real e anunciava que voltaria em breve.

___ Espero que goste, é de uma excelente safra ___ falou a mulher quase que para si mesma.

Seus olhos miraram as mãos douradas da dama, tirara a rolha da boca da garrafa e despejou cuidadosamente o conteúdo numa de suas belas taças de cristal, Petrescu não perdeu um só detalhe, aquela cor tão envolvente lhe agarrava a atenção e lhe fazia lembrar, lembranças perversas que lhe machucavam, mas que ao mesmo tempo, lhe excitavam.

O som do líquido tocando o cristal lhe atordoava, não podia controlar suas narinas se movendo rapidamente captando de modo mecânico a essência adocicada liberada no ar quando a rolha desprendera-se bruscamente do gargalo daquela garrafa. Andreea levara a taça até perto de seus lábios e, como em seu vívido e soturno sonho, emanou uma ordem:

___ Beba!

Os lábios encanecidos do rapaz grudaram no cristal à medida que o punho da dama se inclinava para o líquido descer até a boca do ferreiro e quando isto aconteceu, Damian desfaleceu em prazer, sentiu estar sendo tocado lascivamente por anjos caídos que desejavam seu corpo, ansiavam por vê-lo contorcer-se de volúpia como em sua primeira noite de amor, bem ali, naquela mesma cama.

O líquido tão rubicundo explodiu em sua boca, borbulhava excitantemente em sua língua, não queria engoli-lo, mas mantê-lo o máximo de tempo possível ali para absorver todo aquele cálido sabor.

Assimilou a sensação com a que tivera em seu sonho ___ ou seria uma estranha lembrança? ___ da noite em que estivera na suntuosa mansão Grigore, ali, desjejuando na presença de Benjamin, o nobre ser o admirando provar de um de seus mais saborosos vinhos e o rapaz desmanchar-se em puro deleite.

Era assim que sentia-se naquele momento, como se lhe tocassem em suas partes mais sensíveis ao prazer, como quando uma pedra é atirada num lago e os círculos se propagam, assim estava sentindo esta deliciosa e inominável sensação.

O sabor era tão vivo, a textura era delicadamente jubilosa, era como beijar os lábios de um anjo, não queria que acabasse, pois a Vida lhe entregava uma dose de alegria, podia-se entorpecer naquela regozijante sensação, aquela harmonia voluptuosa que dantes já conhecia e somente pôde senti-la, quando tivera o medo misturado ao sangue daquela jovem inocente juntos à sua boca sedenta.

Bebera até a última gota e só aí pôde retirar os lábios agora apegados a um tom rubro de vida que circulava cálida em suas veias, um suspiro... Com o suspiro viera um pedido, com o pedido viera uma ardorosa sensação de dependência:

___ Mais!

Damian estava enfeitiçado demais para perceber o sorriso que se abria no canto da boca de Andreea, ela atendeu àquele pedido sem demora fazendo com que o cristal mais uma vez beijasse aquela irresistível boca avermelhada.

E mais uma vez, Damian esvaiu-se em completo deleite, como se atingisse ao orgasmo, um orgasmo ainda mais intenso do que quando deitava-se com Andreea, ou até mesmo quando dormiu com Rosalind, era melhor, veemente e mais puro, tão mais puro e envolvente.

Parecia que era um fantasma despedindo-se da vida, da Terra e de tudo que antes conhecia e amava, mas quando tivera aquela exuberante bebida em seus lábios, era como se algo o puxasse para dentro de seu corpo, sentiu a força correndo tão profundamente em suas veias, uma força flamejante, sua cútis outrora tão fria quanto a de um cadáver, agora parecia que nadava em fogo líquido, sentia-se mais vivo do que nunca.

Era tão gracioso quanto um sonho, mas as sensações tão vívidas não lhe deixavam crer que era apenas mais uma artimanha de sua pérfida imaginação, a Vida agora penetrava em seus músculos, seus ossos, poderia flutuar na mais alta nuvem ou até mergulhar no mais profundo oceano, estava agitado e feliz, incrivelmente feliz.

A dor havia lhe deixado como se nunca houvesse existido, o ar em seus pulmões inflava seus pulmões, entravam e saíam sem uma longa pausa, a tosse pareceu que pôs-se a dormir, o doce rastro de sabor ainda beijava seus lábios sedentos e, em sua mente, apenas uma saudação repetia-se como um eco, mas esta não perdida a força a cada vez que se fazia ouvir:

Olá, Vida! Que bom revê-la!



___ Bom, isto deve ser o suficiente ___ diagnosticou Andreea com um ar de especialista.

___ Não, por favor, me dê mais! Um pouco mais!___ clamou o rapaz suspirante agarrando forte o braço da mulher.

___ Querido, não precisa de mais.

___ Sim, eu preciso, por favor, eu...

___ Damian, meu amor, sente-se melhor?

___ É claro!___ respondeu o garoto com euforia.

___ Então já é o bastante.

Damian buscou o olhar da bela dama e percebera que seria inútil tentar convencê-la, estava irredutível, resolveu aceitar e calar esta vontade que, naquele instante, havia encontrado uma resposta.


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Notas finais do capítulo

Pessoal, peço desculpas pela demora, aconteceram algumas coisas, mas procurarei manter a ordem de postagem dos capítulos. Agradeço a paciência e compreensão ;)



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