Nascido Do Sangue escrita por Viúva Negra


Capítulo 53
Ionela




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Na manhã da véspera do baile, o rapaz descera até à cozinha, Andreea ainda não havia acordado, fez o máximo de silêncio para não incomodá-la, ao chegar ao local, viu os empregados depositarem duas galinhas sobre a mesa de madeira, disseram que haviam comprado no mercado, iriam fazer para o almoço daquele dia, acabaram de ser mortas pelo vendedor.

Ao fitar aquelas duas aves sobre a mesa, um frio percorreu seu corpo congelando-o por completo, fora apenas direcionar seus olhos para elas, sua cabeça latejou, sentia que estava sendo apedrejado por algum tipo de crime hediondo, a única coisa que movia-se rapidamente era seu coração, pois ao sentir o cheiro do sangue daqueles animais teve medo, entrou em pânico, nenhuma alma naquele recinto estava sentindo aquele olor tão especificamente quanto o ferreiro.

Como era doce... E ao mesmo tempo era tão asqueroso. Como lhe atraía a atenção e lhe afastava os olhos, mas era impossível, dolorosamente impossível, deliciosamente impossível repelir seu olfato. Suas narinas se moviam tentando capturar cada vez mais daquele aroma que se dissipava no ar, algo tão invisível não somente para os olhos dos que também estava presentes na cozinha, mas invisível para o olfato.

Os empregados iam e vinham retirando panelas de barro dos armários, alguns saíam pelas portas dos fundos e logo voltavam com um balde cheio da água do poço que ficava na propriedade, outro saía e já retornava com outro balde cheio até a boca de leite de alguma das vacas do pequeno curral afastado um pouco da mansão, tantos preparativos sendo rapidamente reunidos para que o preparo do almoço não se demorasse.

Damian não percebeu o incômodo e agitação que causava nos criados, não notou que sua presença ali lhes despertava medo, tinham a absoluta certeza de que estavam sendo espionados, não somente isso, como também supervisionados. Se algo saísse errado, o culpado padeceria aos ouvidos de Andreea por meio dos deleitosos lábios do ferreiro e assim sofreriam as piores e inimagináveis dores que todos os criados mereciam por cometerem uma falta contra as ordens de seus superiores.

Se Damian soubesse o que sua presença estava causando aos empregados, desmanchar-se-ia de gargalhadas e deitar-se-ia ao chão por conta das dores em sua barriga, aquilo lhe arrancaria lágrimas excêntricas dos olhos celestes, mas como era um rapaz tão confuso, sempre tão mergulhado nos próprios pensamentos, nem ao menos tivera a leve impressão de isto estar ocorrendo, afinal, quem estava incomodado ali era ele, mas com a presença daquelas aves.

Arriscou alguns passos para perto da mesa, sem tirar seus olhos dos penados cadáveres, ouvia as batidas velozes de seu coração, podia até senti-lo pulsando em seu peito, se abrisse sua camisa podia até vê-lo, suas mãos estavam frias e trêmulas, parecia que diante de si havia uma assombração, a cada passo mais perto, mais sua enxaqueca piorava, ouviu o barulho de seu estômago, passou a língua por seus lábios secos, engoliu grosso, respirou fundo, porém o nervosismo tornava-se maior.

Como se por vontade própria, levantou uma das mãos e aos poucos fora aproximando-a do pescoço ensanguentado de uma das galinhas, precisava tocá-la, precisava sentir, a parte mais escura de seu âmago pedia por isso, implorava pelo contato de sua ebúrnea pele com o rúbido sangue, somente alguns centímetros, já podia sentir o calor do pequeno corpo emplumado, haviam acabado de morrer, o frio da morte ainda não viera, a vida ainda cercava seus cadáveres, somente mais alguns centímetros...

Sentia o suor escorrer por seu rosto assustado, estava ainda mais pálido do que de costume e não compreendia como ninguém ali não estava sentindo aquele cheiro, como ninguém ali podia ouvir os roncos de seu estômago e ver o quanto seus lábios estavam sequiosos, só mais uns centímetros, entretanto deteve-se rapidamente ao ouvir a voz surpresa do mordomo ao indagar:

___ Está tudo bem, senhor Petrescu?

Por alguns segundos, a fala havia abandonado as cordas vocais do adolescente, a única coisa que pôde fazer foi ofegar, como se tivesse sido pego cometendo um crime terrível, tentou recuperar o fôlego e, ao observar novamente as aves sobre a mesa, não sentiu mais o aroma de seu sangue, então sem a estranha força que o puxava para perto daqueles cadáveres, conseguiu reunir as forças que naquele instante necessitava para responder:

___ Claro, está tudo bem.

___ Precisa de alguma coisa?

___ Nu, nu, mersi, eu já vou.

O mordomo acompanhou o garoto com os olhos indo até a sala de estar, havia uma gota de suspeita em seu olhar.

Damian trancou a porta da sala de estar e sentou-se no chão encostado numa parede, ouvia o som abafado de sua respiração nervosa misturado ao de seu coração disparado, sua cabeça doía e pesava, sentiu-se tonto e fraco, como se a qualquer momento o chão sumiria sob seus pés, encolheu-se passando seus braços por seu tronco, segurava sua cabeça que agora além de doer, a imagem de sangue correndo por uma veia dominava seus pensamentos e não somente a visão, mas como o som, tão alto e tão nítido, como se estivesse perto, tão perto quanto podia imaginar.

Retraiu ainda mais o corpo como se estivesse morrendo de medo, um estranho calor vinha de dentro para fora, sentia o suor escorrendo pelo rosto pálido e amedrontado, abriu seus olhos, o lugar todo girava vagarosamente, via dobrado como se tivesse ingerido altas doses de álcool, fechou e abriu os olhos várias vezes, mas a sala continuou em movimento, sua vista parecia arder em chamas ao fitar a janela aberta, o ruído do coração batendo chegava ainda mais perto tornando-se mais alto.

Estava a ponto de cravar as próprias unhas em sua testa, a dor estava insuportável, um gosto seco e amargo em sua garganta, observou no centro da sala, acima da lareira, o autorretrato do falecido senhor Voiculescu, tão sóbrio e calado, os olhos do homem fitavam o jovem de maneira cruel e sombria, havia um estranho brilho no fundo deles, o coração do moço começou a bater ainda mais forte, os assustados olhos azuis encontravam-se com os impiedosos olhos castanho-escuros.

Viu, os lábios enrugados do morto sorrindo, depois começou a rir, como se estivesse zombando de sua face, o riso invadia sua mente embaralhando-se ao som do coração pulsando e do sangue correndo, olhava novamente e lá estava o homem rindo sem parar e sem deixar de fitá-lo, Petrescu sentiu vontade de chorar feito um alguém que estava sendo humilhado em praça pública, porém parecia que todas as suas lágrimas haviam secado.

A risada era no início contraída, envergonhada, como se o cavalheiro da pintura estivesse em um recinto sério e silencioso e seria um ato rude expressar-se daquela maneira, depois ela começou a aumentar, periodicamente, um pouco mais alto e mais alto até tornar-se uma gargalhada desregrada, como se o homem estivesse agora em um local público assistindo a um espetáculo cômico no qual, provavelmente, relatava a desgraça de alguém e, contanto que não fosse a própria, era um completo deleite para seus olhos profundos.

Abriu os olhos, a sala continuava girando, o morto caçoava descaradamente de seu pavor e para sentir-se ainda mais perturbado, viu a lareira acender-se, uma forte e intensa chama a brilhar, ela começou a tomar forma, uma forma que lhe era familiar, seu olhar perdeu o fulgor ao notar sua silhueta e a de Rosalind queimando em meio às chamas, ele a devorando como um pedaço de carne, tremeluziam e resplandeciam ao mesmo tempo em que eram banhados por risos zombeteiros.

Damian... Ah, Damian... Damian...

Podia ouvi-la chamar seu nome nos intervalos dos gemidos, tantos sons em sua cabeça que estava a ponto de estourar, sua visão estava turva, apenas a audição o guiava para um mundo de fantasias soturnas, os risos baixinhos do falecido proprietário da mansão estavam tão perto de seus ouvidos, assim como o barulho de um coração pulsante, todavia notou que o ruído das frenéticas batidas vinham de dentro de si, sentiu uma forte pontada em seu peito, não mais poderia suportar por muito tempo.

Fechava e abria seus olhos, Voiculescu estava gargalhando enquanto as chamas da lareira tornavam-se mais fortes e avermelhadas, a garota gritava seu nome, arranhava sua pele, assim como naquela noite, e a cada vez que os gemidos tornavam-se mais intensos, os risos do ex-marido de Andreea tornavam-se mais altos.

Damian então começou a se arrastar, a cabeça pesava, a visão escurecia-se, porém tentou encontrar forças, suas unhas quase cravando na madeira do chão, seus braços puxando todo o seu corpo até uma pequena mesa ao lado do sofá, apoiando no móvel, levantou-se e tentou manter-se de pé, havia um abajur sobre a mesa, ele o pegou e sem muito pensar, arremessou-o direto no quadro acima da lareira.

O objeto acertou a pintura fazendo-a desprender-se da parede e cair sobre o tapete, um estranho silêncio se formou quando o autorretrato tocou o chão fazendo com que a lareira se apagasse, o ferreiro respirou fundo e procurou relaxar, entretanto, ouviu um estridente grito cruzar a sala deixando em pedaços o lustre de cristal, de lá do fundo da lareira, das cinzas e da fumaça, uma mão lúrida e enrugada surgia, dos restos de madeira queimada um jovem corpo feminino fora saindo.

Os celestes olhos do moço apavoraram-se, encostou-se a um canto da sala e encolheu novamente seu corpo, pôde ver quem era... Ionela, estava pálida como a lua que não viera na noite de sua morte, havia dois enormes círculos roxos ao redor de seus olhos, seus olhos... Estavam enegrecidos e sem luz e em seu pescoço, dois pequenos orifícios secos e vazios.

A boca do adolescente ficou entreaberta ao vê-la se arrastando para sua direção, movia-se lentamente, ouvia seus ossos deslocando-se a cada movimento que fazia, estava usando um vestido sujo de sangue e terra, havia também algumas folhas amareladas grudadas ao tecido, sentiu os dedos finos e alvos tocando-lhe a pele ainda mais branca que a da morta, suas unhas arroxeadas arranhando sua carne, o semblante sem cor dela ficou bem perto do seu, segurando firmemente o queixo do rapaz, a jovem diz com uma voz tão rouca quanto a de uma velha:

Você não me ouviu gritar, Damian, você não me viu morrer...

Após dizer começou a rir, uma gargalhada fina e assustadora como a de uma bruxa das histórias que sua ama lia antes de dormir, fechou seus olhos apertando as mãos sobre a cabeça, a gargalhada estava alta, ainda sentia a presença fria dela ao seu lado, começou a sussurrar:

___ Não... Pare, por favor, pare... Pare, por favor, não... Não... Não!

Ao abrir os olhos, deparou-se com a forte luz vinda da janela, o primeiro contato era sempre doloroso, porém quando acostumava-se com a claridade não mais importava-se, começou a olhar à sua volta, o silêncio impregnado em cada centímetro daquele lugar, a lareira estava apagada e não havia cinzas, o quadro do falecido senhor Voiculescu sobre ela, o abajur perfeitamente colocado sobre a mesa ao lado do sofá e o lustre completamente intacto o fez perceber que tudo não passara de um sonho... Apenas um sonho...


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