A Rainha de Copas escrita por Kaya Terachi


Capítulo 15
O médico louco.


Notas iniciais do capítulo

AVISO: Esse capítulo contém cenas que podem chocar alguns leitores, recomendo critério ao ler.



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Era noite, talvez fosse por volta de duas da manhã, estava chovendo lá fora, não havia como negar. Cada gota de água caía incomoda sobre o telhado tão frágil do local, já destruído e corroído pelo tempo em inércia, sem reformas e sem a travessia de pessoas. Naquela noite muitas pessoas dormiam tranquilas em suas camas, e era realmente o melhor que podiam fazer para evitar as noites perigosas de Gotham, mas não era o caso da garota ruiva.
Ela estava numa cama, não havia como negar, mas era desconfortável estar ali, sentia o corpo doendo, como se estivesse há tempos deitada no chão frio e sem conforto algum, talvez fosse resultado do modo como haviam trazido ela para o local, os capangas do Coringa não tiveram o mínimo cuidado de fato, eles nunca tinham, e ela sabia bem, afinal, já fora um deles.
Havia pouca luz pelo local quando a garota abriu os olhos, sentiu o corpo deitado ali naquele local duro e tentou levar uma das mãos a face para esfregar os olhos e tentar enxergar melhor, mesmo naquela escuridão que preenchia a sala, porém foi inútil, seus braços estavam presos na cama com fivelas e não podia se mexer, percebeu isso depois das inúmeras tentativas de se soltar. Ela piscou, uma, duas, várias vezes e por fim percebeu que estava com uma camisola branca de hospital, não se lembrava qual era a roupa que vestia na noite anterior, mas sabia que nem se aproximava dessa, afinal fazia dias que não via um hospital à sua frente, mas estranhamente ali estava, numa sala de hospital. Pôde perceber isso pelas paredes brancas, ou que um dia foram brancas, mas que agora eram marcadas pelo tempo com algumas marcas negras, sujeira talvez? E o que era aquilo ao canto... Sangue?
Próximo a ela, estava a pequena mesa com instrumentos cirúrgicos, um bisturi, uma seringa, ela não prestou atenção, mas viu que a própria veia do braço direito estava perfurada com uma agulha presa por uma fita, mas diabos, onde estava? Ela gemeu, incomoda e uniu as sobrancelhas, ouvia a chuva lá fora e isso era tudo, não havia mais nenhum ruído ou conversa, tudo era um profundo silencio misto em escuridão e desespero.
– Tem alguém aí...?
Ela arriscou e finalmente, pôde ouvir algo além da chuva fraca de uma noite de primavera, mas decididamente, não era exatamente o que queria ouvir.
A risada baixa foi ficando mais alta conforme o rapaz se aproximava da sala, passando pela porta aberta em frente à garota e revelando sua face, ou parte dela. Os lábios e nariz estavam cobertos pela máscara branca, e na mesma o sorriso fora desenhado em cor verde claro, um enorme sorriso e estranhamente ele vestia roupas brancas, não eram impecáveis como as de um médico, mas eram brancas. O longo jaleco branco que usava, trazia o pequeno crachá que ele mesmo devia ter feito com a escrita “Coringa – Cirurgião especialista em risadas”. A garota teria achado cômico, noutra ocasião.
– Coringa... O que diabos... Por que me trouxe aqui? Aliás, onde eu estou?
Só então ela notou, fazia muito essa mesma pergunta todas as vezes em que se encontrava com ele. Ele era sempre uma surpresa afinal.
– Você acordou na hora certa, minha querida. Eu apliquei a solução poucos minutos atrás.
– S-Solução?
Ela sentiu um tremor pelo corpo.
– Sim, eu já estou meio cansado de esperar para que essas crianças nasçam de uma forma mais natural, então, é hora do parto.
Ele sorriu por trás da máscara e ela arregalou os olhos.
– Que parto, Coringa?! Eu não estou nem perto do parto ainda. Não sinto nada.
– Em breve você vai sentir. Usei a solução pra acelerar isso. – Ele disse, apontando para a agulha na veia da outra - Devo admitir que você gosta de complicar a minha vida, estava calculando que desse a luz a uma semana atrás, mas essas crianças são teimosas e imprevisíveis, exatamente como o pai.
A garota estreitou os olhos e moveu os braços, tentando se soltar, mas decididamente, não podia se mover.
– Você não pode fazer o meu parto! Você se quer é médico!
– Essa é a melhor parte. Não vou dizer que não estudei algumas coisinhas mínimas para que tudo saísse bem, afinal, não queremos que nossos filhos morram, não é? Espero que tenha feito a sua parte também.
– Minha parte? Estou carregando eles a nove malditos meses, seguindo todas as orientações, e você...
Ela cessou a fala ao sentir a enorme dor da primeira contração de seu parto, o que o palhaço dissera era real então. Ela gemeu e fechou as mãos com força, assim como os olhos e pôde ouvir o riso do palhaço.
– Ora, estamos indo bem! Até agora está tudo de acordo com o plano.
Ela permaneceu inerte por alguns instantes, de fato nunca havia sentido tamanha dor na vida, mesmo com os inúmeros cortes nas costas, cicatrizes de facas e balas, aquela era a pior dor que já sentira e sabia que ficaria pior, mas o que mais preocupava a si era a pergunta que não queria calar: O que ele estava tramando?
– Ah... Coringa...Eu preciso ir pra um hospital... Você não sabe o que esta fazendo! Vai matar os nossos filhos!
– Está duvidando da minha capacidade, Angiezinha? Que coisa feia... Não se faz isso com quem se ama!
– Mas você não sabe mesmo o que esta fazendo...
Ela fechou os olhos uma segunda vez numa outra contração que fez toda a sua pele se arrepiar de dor, novamente gemeu e já sentia as lágrimas se formando em seus olhos, escorrendo num rastro único em sua face.
– Não, não chore. Vai dar tudo certo. Não é isso que geralmente dizem? Então... Continue com a esperança de que tudo vai ocorrer bem, é ainda melhor quando alguém mantém esse sentimento e ele é arrancado da pessoa no fim.
Ele riu insanamente e a observou, pela primeira vez ela estava assustada com as atitudes dele. Não achava que um dia ele fosse tratar a si como uma de suas vítimas, mas era isso que de fato estava acontecendo.
– Bem, acho que já está na hora de começarmos nossa cirurgia, não é?
– O que? Mas... Coringa, e a anestesia? Eu... Não posso ter um parto assim!
– Ora, claro que pode minha Angie. Devo admitir que seria uma pena se você desmaiasse de dor ou morresse na mesa de cirurgia, uma pessoa normal faria isso, mas você já não é normal desde nossa ultima noite minha querida. Você está bem mais forte do que antes, graças ao presentinho que eu te dei, se lembra?
Ela uniu as sobrancelhas, aterrorizada, não sabia o que era pior, a pressão que o outro fazia sobre si, ou a dor insuportável que sentia. Aquele líquido que havia injetado em si... Sim! Aquele líquido havia feito com que a própria cicatriz onde ele foi aplicado tivesse se fechado na mesma noite, então... Estava exatamente igual a ele, e mais forte afinal.
– Coringa... Não precisa prender os meus braços... Eu não vou tentar nada, sabe disso...
– Conheço você, Angie. Você é linda, mas também é mortal. E eu sou o homem que mais sabe disso, quem te criou fui eu.
Ela suspirou e olhou o teto, que não era atrativo, assim como as paredes.
– É uma pena eu não poder usar gás do riso. Era uma ótima anestesia. Mas como deve saber, agora você é imune.
–Imune...? –Ela arregalou os olhos.
Ele riu.
– É claro. Você e os nossos filhos.
Ela permaneceu por alguns segundos processando as informações, perplexa e outro gemido sutil deixou seus lábios. O outro tocou a barriga dela, apalpando-a a ajeitar as roupas da garota, preparando-a para a cirurgia.
– É, acho que já está pronta. Se não estiver também, eu vou arriscar, já estou sem paciência de esperar essas crianças.
Ele estendeu a mão em direção à mesa e ali pegou o bisturi, contrastando com as luvas brancas que usava. Aproximou-se da garota deitada e sorriu a ela uma ultima vez.
– Não vai doer tanto quanto eu gostaria, mas... Você ainda pode ficar apavorada.
Ela uniu as sobrancelhas e nem se atrevia a abrir a boca, já teve ele com vários objetos cortantes perto do próprio corpo, mas nunca fora tão assustador como naquele momento. Ele posicionou o bisturi e pressionou-o no local a rasgar a carne, a garota tentou não olhar, mas o sangue que escorreu logo chamou a sua atenção e ela foi obrigada a observar tudo de olhos arregalados enquanto deixava o grito escapar de sua garganta, sim, a dor era insuportável até mesmo para ela que agora era mais forte. Sentia-o cada vez mais fundo na própria carne, cortando, e afundando a lâmina no local. A respiração ofegante estava presente e o segundo grito de horror morreu em sua garganta, ele tinha uma precisão incrível apesar de um louco, parecia que realmente sabia o que estava fazendo, e aquilo era o mais surpreendente sobre o outro.
Ele sorriu novamente por trás da máscara e ela sabia o que aquilo significava, ele havia retirado o primeiro bebê e ela pôde vê-lo, mesmo em seu estado de inércia, questionou-se até se havia perdido os sentidos pelo modo como as coisas estavam acontecendo, algo dizia a si que alguma coisa muito mais errada aconteceria. Gostaria de poder desmaiar, perder os sentidos, morrer, mas não podia, tinha que ficar ali e aguentar a dor insuportável.
Ele não tinha se quer um ajudante, nada, e mesmo assim foi rápido, com o pequeno tecido que tinha ali, limpou a face do próprio filho com uma rapidez incrível e em seguida cortou o cordão que o ligava à mãe. Angelique permaneceu extática a observar e desviou o olhar a criança tão pequenina em seus braços, era a sua menina que nascera primeiro. Ele ajeitou a garota que chorava num local próximo entre um pequeno cobertor que trouxera com ele e seguiu até a ruiva ainda deitada a fazer o mesmo com o segundo filho, o menino. Coringa estava inexpressivo, mas ela não pôde ver sua face atrás da máscara que usava, quais pensamentos passavam por sua cabeça? Que sentimentos lhe vinham a tona? Não sabia, e nunca saberia.
Ela uniu as sobrancelhas, sentia as lágrimas que escorriam pela face a ouvir o choro das crianças a tão pouca distância dela e não pode vê-los no escuro do local. Entre os soluços do choro ela tentou esticar uma das mãos em direção as sombras, chamando pelo outro, mas suas mãos estavam presas e sentia dor, uma dor horrível.
– Coringa... Me deixe ver... Me deixe ver os meus filhos... Por favor...
Mais soluços e nenhuma resposta. Após um pequeno tempo ainda em prantos, tudo que podia consolá-la era o choro de seus filhos tão próximos e o barulho dos instrumentos pelo local. Aos poucos ela pôde ver a face que surgiu da escuridão e já estava sem a máscara, encarando-a tão próximo que quase lhe tocava os lábios com os próprios, e sorria.
– Obrigado por tudo, Angie.
– Tudo... Tudo o que?
– Um dia, eles serão exatamente como eu e que piadas maravilhosas contarão ao mundo! – Ele riu. – Muito obrigado por me fornecer as minhas melhores piadas, mas agora, você não tem mais utilidade pra mim.
Ela sentiu ainda mais as lágrimas preencherem seus olhos, então era isso? Era somente pra isso que ele queria a si? Não... Preferia morrer, queria morrer naquela mesa.
– Coringa... Não... Não leve os meus filhos... Eu te imploro. Eles são tudo que eu tenho.
– Se lembra do que eu te disse, hm? Eu vou dar a eles uma vida digna, não se preocupe. E não vou esquecer de falar de você. E de como você morreu dando a luz a eles.
Ele riu contra os lábios dela e aproximou-se a lhe depositar o ultimo beijo antes de se afastar.
– Coringa! Coringa, não! Espere!
Ele se aproximou novamente a observá-la, porém em silêncio.
– S-Scarlett... Scarlett e Hunter. Por favor... – Ela disse a sentir as lágrimas que rolaram pela face, que em meio a tantas, não faziam a menor diferença. – Só mantenha os nomes... São os meus favoritos...
Ele nada disse a observá-la, ao concluir de sua fala, ele se afastou novamente, sumindo na escuridão.
Aos poucos o choro cessou, fora diminuindo pouco a pouco, até que não pôde mais ouvir. O último barulho que pôde ouvir era do carro que partira da frente do velho hospital e a chuva que engrossou o barulho estrondoso sobre o telhado quebrado. Ela fechou os olhos, tentando conter o choro, mas não pôde, havia esperado por nove meses para ver seus filhos, e por fim, se quer pode ter o vislumbre de seus rostinhos inocentes, sentia-se morta, perdida, desolada, como se ele houvesse levado uma grande parte de si com ele. Agora, o coração dela estava quebrado e em pedaços no chão, como se fosse feito de vidro, e os pedaços que continuavam em seu corpo machucavam, incomodavam, e se quer tinha forças para suportar estar viva. Iria morrer ali, sem dúvidas, então procurou não resistir muito. A chuva aumentava cada vez mais, cada gota caía pesada sobre o chão, o céu naquela noite estava chorando por ela.


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