Apenas uma garota escrita por Letícia Kartalian


Capítulo 3
Capítulo 3 - Bella




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Capítulo 3

Questão de confiança

Bella

“(...) plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar... que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.”

Trecho do texto Vida, de Shakespeare

O resto da semana correu exatamente igual.

Acordar às seis da manhã, tomar banho, vestir um jeans e camiseta, me agasalhar bem por causa do frio de Forks, tomar café com meus pais, ter minha mãe me levando para a escola, aulas entediantes onde eu passaria mais tempo fazendo desenhos aleatórios em meu caderno do que prestando atenção, no fim das aulas ligar para a minha mãe e em alguns minutos ela estaria ali para me levar de volta para casa.

Então, eu faria os exercícios de fixação, conversaria com a minha psicóloga por telefone durante alguns poucos minutos, me distrairia com alguma coisa, até que minha mãe voltasse do trabalho às seis, horário em que ela faria o jantar e perguntaria sobre o meu dia, até a chegada do papai às oito, onde então jantaríamos, assistiríamos algo na TV e iríamos dormir às dez, para começar tudo novamente no dia seguinte.

Exceto às sextas, quando eu tinha consulta presencial com a doutora Megan em seu consultório.

Como minha mãe não gostava que eu saísse de casa sozinha, ainda mais para ir ao médico, ela sempre tinha folga no trabalho às sextas para que pudesse me acompanhar.

Hoje é sexta, a primeira sexta-feira desde que entrei na FHS, a primeira sexta-feira fora da escola especial e eu estava nervosa por algum motivo, eu só não sabia qual...

Acho que a perspectiva de contar à Megan tudo o que aconteceu nessa semana me deixa irritada.

-Bom dia, classe. – disse Edward, entrando na sala, ajeitando seu material em cima da mesa.

Ele estava, exatamente, quinze minutos atrasado para a aula de inglês. Eu contei.

Todos os alunos já estavam em sala de aula, apenas esperando que o professor preferido chegasse.

-Desculpem o atraso, mas eu estava resolvendo assunto que pode ser do interesse de vocês todos... Ou não, né? Sentem-se em seus lugares que eu tenho um recado a dar.

Ouve muito burburinho entre os alunos. Não entendi o porque de estarem todos ansiosos pelo que o professor Cullen – como eu deveria chama-lo corretamente – estava prestes a dizer.

-Por favor, senhorita Cullen, entre. – disse abrindo a porta da sala para que uma mulher loira, alta e magra, não era o que os homens costumavam chamar de loira escultural, ela era miúda e tinha um corpo proporcional ao tamanho, usava roupas mais leves, saia longa preta, camiseta cinza com alguns detalhes em branco, os cabelos soltos e um sorriso no rosto.

Muitos garotos assoviaram, a sala em peso disse “Oi Kate!” ou “E aí, Kate?!”, era obvio que ela já era conhecida de todos por aqui.

-Olá turma. – disse se posicionando no centro da sala, enquanto o professor Cullen encostava-se à sua mesa no canto esquerdo. – Para quem não me conhece, eu sou Kate, professora de Teatro da escola e prima daquele cabeção ali. – disse apontando para Edward – Por algum motivo que eu totalmente desconheço, que fique bem claro, no final do ano letivo passado, nosso excelentíssimo diretor decidiu que os terceiros anos não teria aulas de teatro esse ano. Resumindo, isso gerou muita comoção, vocês reclamaram muito e eu resolvi conversar com o diretor.

-E ele resolveu ceder dessa vez? – disse alguém lá na frente.

-Sim e não. Até pouco tempo atrás a resposta continuava sendo não, mas devido a um pedido de alguém especial – olhou para Edward – ele resolveu ceder.

Os alunos todos começaram a gritar e comemorar, agradecendo Kate e Edward por terem conseguido isso.

-Pessoal, pessoal, ainda não acabou... Escutem a professora Kate.

-Acontece que a grade escolar já havia sido fechada e como vocês devem ter percebido, as aulas de Teatro não constam na ficha de nenhum de vocês. O diretor disse que se quisessem ter as aulas, poderíamos tê-las depois das aulas.

O burburinho a seguir foi muito mais que o da comemoração.

Tentando aplacar a falação, abaixei minha cabeça, deitando-a na mesa com um braço na parte de baixo, tapando o ouvido direito e a de cima tapando o ouvido esquerdo.

-Ei, ei, ei, fiquem calmos, por favor. Eu sei que muitos de vocês fazem outras coisas no período da tarde, alguns fazem cursos, outros trabalham, e outros simplesmente não estariam dispostos a ficar aqui uma hora a mais, eu sei disso. Por isso eu e Edward estudamos a grade de aulas de todos os terceiros anos e vimos que era possível, se os professores cooperassem. Edward cedeu uma de suas aulas, assim como a Catherine, que é a professora de Inglês e Literatura dos outros terceiros anos, a professora Sarah, que dá aulas de Matemática e Química para vocês, e a Joanne, que é professora também de Matemática e Química de um dos terceiros anos.

-Então como irá funcionar, Kate?

-Simples, na última aula, quem quiser se inscrever pode ir até a minha sala, isto é, o teatro, sem baderna ou gritaria e falar comigo. Irei pegar nome e classe de cada um, formarei as turmas e depois darei as coordenadas. Cada aluno deverá fazer a sua inscrição, nada de mandar colega, mãe, pai, tio, sobrinho, papagaio e coisa do tipo, certo?

-Certo.

-Ótimo, vocês têm até sexta-feira que vem para se inscrever, não esqueçam.

-Kate, se metade da turma, por exemplo, se inscrever, iremos ficar todos juntos?

-Sim. Todos os integrantes da classe que se inscreverem irão permanecer juntos, mas irá haver uma interação com pessoas de outras turmas, mas isso iremos ver mais para frente... Mas não iremos separar vocês, Julie. Mais alguma pergunta? – esperou alguns segundos – Não? Bom, estou indo, vou deixa-los estudar.

Edward, então, assumiu a frente da turma, mandou todos abrirem seus livros na página 11. Era um texto sobre Shakespeare e logo depois um de seus textos, intitulado “Vida”.

-Jessica, você começa. “William Shakespeare foi...” – disse começando a ler um trecho do primeiro texto, pedindo que a garota loira que sentava sempre na primeira carteira, perto da porta, ao lado de um rapaz também loiro e com o cabelo espetado, o continuasse.

Assim se seguiu, cada um lendo um trecho do livro, todos sendo escolhidos aleatoriamente por ele. Confesso que não prestava atenção, na verdade não saberia dizer em qual parte do texto estávamos agora, só conseguia me localizar quando a garota baixinha ao meu lado virava a página do livro.

-Isabella – Edward disse meu nome e isso chamou a minha atenção para ele, me fazendo levantar a cabeça.

Boa parte dos alunos olhava para mim e isso não era bom.

-“ Descobre que se leva muito tempo...”, continue, por favor.

Precisei de algum tempo para me localizar no texto, não sabia se ainda estávamos no texto sobre o grande escritor ou no texto escrito sobre ele, mas logo avistei o trecho mencionado por Edward e o li, mesmo que em voz baixa.

-Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que se quer ser, e que o tempo é curto. Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão e que ser flexível nem sempre significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem os dois lados. Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer enfrentando as consequências. Aprende que paciência requer muita prática. Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute, quando você cai, é uma das poucas que o ajudam a levantar-se. Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou. Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha. Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso. Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel.”¹

-Obrigado senhorita Swan, Alice, que tal você agora?

-Claro! “Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama com tudo o que pode...”¹

Eu odiava precisar ler em voz alta, muitas vezes eu gaguejava e me perdia no texto por não conseguir me concentrar e me envolver com algo alheio ao texto, mas Shakespeare, e esse texto em especial, é algo que eu conheço e gosto muito, portanto foi mais fácil do que poderia ter sido com qualquer outro texto de qualquer outro autor.

Do lado de fora da escola, sentei em um dos bancos por ali, após telefonar para minha mãe e esperei que ela chegasse.

Em alguns poucos minutos já estávamos nos dirigindo para o consultório da doutora Megan, com ela me perguntando como havia sido a escola.

Respondi vagamente, dando respostas evasivas, tentando fazer com que ela parasse de falar até que estacionássemos, porém, sem sucesso. Ela já conhecia a minha tática e não pararia de falar.

Megan já me esperava na porta do consultório, minha mãe havia ligado para ela e perguntado se poderíamos ir mais cedo e como ela estava sem nenhum paciente, disse que me atenderia.

-Como foi sua semana, Bella?

-Boa.

-Só boa?

-Sim.

-Soube que você começou numa nova escola, como foi?

-Normal.

-E você fez amigos?

-Sim.

-É mesmo e quais são os nomes?

-Megan, você sabe que eu sequer falei com aquelas pessoas. – disse revirando os olhos.

-E eu ainda não entendo o por quê... Bella, você precisa ter amigos, conversar com outras pessoas, sair, se divertir, namorar.

-Eu não me sinto bem lá, no meio de tanta gente. Prefiro ficar sozinha.

-Você ainda não conheceu o ‘sozinho acompanhado’...

-O que é isso?

-Isso é estar acompanhado de alguém que por estar na mesma sintonia que você, você nem nota que está acompanhada. A diferença é que essa pessoa ao seu lado te faz muito bem e você não sente aquele vazio de estar realmente sozinha.

-Por que está falando sobre isso comigo, Megan?

-Por que não estou mais conversando com uma adolescente, estou conversando com uma mulher. Existem coisas que fazem bem, todo mundo se envolve amorosamente com alguém, porque não você?

-Não sou uma pessoa normal e não preciso de ninguém.

-Não é questão de precisar de alguém, Bella. Você precisa viver e acho que conhecer pessoas, fazer amigos e ter um relacionamento amoroso pode ajudar. Não acha que nessa nova escola, onde ninguém sabe sobre você e seus problemas podem ajudar?

-Não, obrigada.

-Bella, você precisa reagir! Tente, apenas tente. Se não der certo, ao menos você tentou se interessar por alguém. Daqui a pouco vou começar a achar que você é assexuada.

Durante os trinta minutos seguintes, sabendo que eu não falaria mais sobre isso e nem responderia como ela gostaria, as perguntas geralmente feitas vagamente, deixando espaço para que o paciente se abrisse, foram feitas de forma mais direta, como: “qual sua matéria favorita na nova escola?”, “qual o professor que gostou mais e por quê?”, “irá participar de alguma das atividades extracurriculares?” e ganhando respostas vagas, como “Literatura”, “nenhum” e “não”, respectivamente.

...

Mais uma semana se passou, nada tão diferente acontecendo na escola, aparentemente ninguém notou a minha dificuldade em algumas matérias e em parte eu agradecia isso. Mas é claro que em algum momento todos iriam perceber.

Estava muito no começo do ano letivo ainda, os professores não exigiam tanto dos alunos por agora. Daqui algumas semanas é que a coisa realmente vai começar a pegar.

-Isabella...?

Tirei os olhos do meu caderno, o que eu desenhava algo que nem eu sabia o que era e olhei para frente, encontrando o professor Cullen bem na minha frente.

-O sinal já bateu, é hora do intervalo.

-Oh, eu... posso ficar aqui?

-Sim, você pode. E eu gostaria de conversar com você. Posso...? – perguntou, sinalizando com a cabeça em direção à cadeira o meu lado.

-Sim.

-Eu vi que você não se inscreveu para as aulas de teatro. Algum problema? – disse depois de se sentar de frente para mim.

-Não, nenhum.

-Você não gosta de teatro, é isso?

-Na verdade, eu nunca fui a um teatro, mas não sei se quero ter aulas disso.

- Isabella...

-Bella. – disse olhando para ele. – Me chame de Bella.

-Claro, Bella. Eu notei que você tem andando meio dispersa em minhas aulas, sempre fazendo desenhos em seu caderno... – ficou em silêncio por alguns minutos – Eu sei sobre o seu distúrbio e quero ajudar.

-Ah é? E o que você sabe sobre isso, professor?

-Mais do que você imagina.

Ele tirou o caderno, todos os lápis e canetas na mesa, colocando-os na mesa do lado e colocando a mão em meu rosto, me fez olhar diretamente para ele.

-Minha mãe teve Déficit de Atenção² como você, Bella. Porém, ao contrário de você, ela só descobriu isso durante a adolescência e o tratamento foi mais complicado, mas hoje o distúrbio é quase inexistente. Você sabe que DDA³ ou TDAH4 não tem cura, mas com um tratamento adequado, podemos melhor e muito alguns pontos. Eu e minha família temos uma ONG que ajuda crianças e adolescentes que estão na mesma situação que você. Se você quiser, posso leva-la até lá.

-Eu já faço tratamento.

-Eu sei que sim. Mas achei que você poderia ir até lá, conhecer outras pessoas com o distúrbio e pessoas que nunca imaginaram levar uma vida normal e hoje levam, pode ser bom para você. E o teatro ajuda muitos dos adolescentes tratados na ONG, achei que você gostaria de tentar algo novo. Por um mês, apenas um mês e se você não gostar, não se sinta obrigada a continuar. Por favor, hum? Eu só quero ajudar, de verdade.

Os olhos verdes e gentis dele me fizeram aceitar, com um aceno de cabeça, participar do grupo de teatro, cuja sala inteira já havia entrado.

Ele disse que eu precisaria, como os outros, ir até o teatro e falar com a professora Cullen.

-Eu acompanho você. – ele disse.

Finalmente ele soltou meu rosto, que ainda estava quente por seu toque, e eu pude olhar para o lado.

Ele pegou o caderno na mesa, deu uma rápida olhada e me devolveu.

-Você desenha muito bem. Quem é o garoto?

Só então eu olhei para o bebê desenhado no papel...

-É como eu imagino o bebê que a minha mãe perdeu. Se ele estivesse vivo, seria desse tamanho.

-É um bonito desenho e eu sinto muito pela perda. Sua mãe irá gostar da homenagem.

-Ela não verá o desenho. Não posso mostrar isso a ela, não posso. – disse fechando o caderno e guardando na bolsa, junto com as canetas e os lápis que ele me devolveu.

-Tudo bem, tudo bem. – disse pegando novamente em meu rosto, me fazendo encará-lo –Mas o desenho é muito bonito, de verdade. Você me mostrará outros?

-Não.

-Certo. – disse se levantando – Vamos, vou com você até a sala de Kate, o teatro. Assim você já conhece o lugar.

Ao sair da sala, seguimos o corredor até o final.

Havia uma porta dupla, preta, ali, que se abre tanto para dentro quanto para fora.

Dois alunos estavam conversando com a professora Kate, um menino e uma menina, mas logo que entramos, eles saíram.

-Hei, Edward.

-Kate, olha quem eu trouxe...

-Hum, olá Isabella. – ela disse se levantando da mesa que havia ao lado dos assentos de estofado vermelho e bem de frente ao palco.

-Bella.

-Claro, Bella. Então você veio se inscrever? – disse já tirando uma pasta rosa da bolsa e abrindo em determinada página.

-Ah, sim – disse depois de olhar rapidamente para Edward – Edwa... Digo, o professor Edward disse que poderia ser bom por causa da... da... – parei de falar. Será que ela também sabia da ‘doença’?

-Eu sei, Edward me contou tudo, não se preocupe. Acredito realmente que isso será bom para você e eu espero, de verdade, que você goste e se envolva com o teatro. Eu sou uma professora muito legal e Edward estará aqui o tempo todo, tudo bem?

-Sim.

-Preciso que você leve isso aos seus pais e peça para que um deles assine, ok? É mais para que eles fiquem cientes que você está tendo essas aulas do que uma autorização propriamente dita. Você pode entregar o papel assinado a Edward na segunda-feira.

Kate foi extremamente amável, mas eu agradeci o fato de que logo o sinal tocou e era hora de voltar para a sala de aula.

Edward me acompanhou de volta, já que ainda seria sua aula.

-Confie em nós Bella. Tenho certeza de que podemos melhorar o seu distúrbio em algum aspecto.

Por algum motivo, acreditava que aquilo seria bom...


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Notas finais do capítulo

1 - Trechos do texto Vida, de William Shakespeare

2 - Déficit de Atenção: é uma síndrome caracterizada por desatenção e impulsividade causando prejuízos a si mesmo e aos outros em pelo menos dois contextos diferentes (geralmente em casa e na escola/trabalho).

3 - DDA: Sigla para Distúrbio de Déficit de Atenção

4 - TDAH: Sigla para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade



Lembrem-se, eu não sou psicóloga, todas as informações contidas no texto foram retiradas da internet e algumas perguntas que eu pude fazer a uma psicóloga. Eu realmente não sei até que ponto o teatro pode ajudar uma pessoa com a síndrome, mas com o tempo vocês entenderão o porquê de tudo isso.



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