Visita Ao Submundo escrita por Carolina Do Nascimento Silva


Capítulo 1
Capítulo Único




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Abri os olhos e o caos estava instalado. A aeromoça me acordou para colocar a máscara de oxigênio em mim. O avião estava todo apagado, estávamos caindo a toda velocidade em queda livre. Olhei pela janela e vi uma tempestade de raios. Explicado... Primeira vez que voo, acontece isso. Caindo no meio do nada, fora os gritos, era a coisa mais suave. “Assim deve ser a morte, então.” Pensei. Mas quando chegamos ao solo... Bem, não era nada suave. Com o impacto bati a cabeça no banco da minha frente e com isso perdi a consciência. Segundos, horas ou dias depois eu voltei a mim. Minha cabeça estava com sangue seco, todos ao meu redor estavam mortos. Desfivelei o cinto de segurança e procurei uma saída. Depois de muito esforço, tirado de energias que eu não podia gastar tanto, consegui abrir a saída de emergência e ir para fora.

Eu estava no meio do nada, o sol brilhava vacilante em meio a algumas nuvens e já se pondo, o avião em que eu estava, era apenas pedaços de uma maquinaria que não funcionou direito.  Comecei a andar sem direção, sem noção de onde estava ou para onde eu iria. E foi andando por um deserto vulcânico que consegui chegar em casa.

Veja bem, estava escurecendo e eu precisava de abrigo, pois tempestades de areia são desorientadoras. Em meio à imensidão de carvão em pó, eu achei uma caverna. Desde que estejam vazias, não tem lugar melhor pra passar a noite, mas... Isso é um deserto, então claro que estaria vazia! Entrei na caverna e fui o quão fundo preciso para me proteger do vento, mal via a hora de fazer uma fogueira e relaxar um pouco. Mas, o fundo da caverna parecia não chegar. Ela era um pouco inclinada, cada vez mais estreita e mais funda. Seu interior era fresco como uma manhã de inverno e todo o vento que soprava, vinha de fora. Chegou a um certo ponto que comecei a ver carcaças de animais e seres humanos, um esqueleto segurava firmemente seu lampião de querosene. Peguei-o e o acendi, já que minha lanterna estava sem bateria. E agora curiosa, queria mesmo encontrar o fim da caverna. “Já estou perdida mesmo” pensei. Continuei a andar por o que eu calculei ser muito tempo. Nos cantos do corredor sem fim, encontrei alguma vegetação estranha, galhos pequenos finos e pretos, extremamente firmes no solo.

O corredor se abriu em uma gruta enorme, com uma lagoa estranha e poluída, de águas densas e oleosas até.  Em um ponto da margem, avistei uma canoa e um velho senhor encurvado, apoiado no remo. Ele vestia um manto negro que deixava a vista só suas mãos pálidas e extremamente magras. Quando cheguei mais perto ele levantou o olhar para mim e deu um sorriso macabro. O senhor tinha uma figura tão magra, e tão estranha, que eu só soube diferenciar ele de uma múmia, pois a pele dele era tão branca como a neve. “Ok, achei a toca do Gollum e agora Sméagol vai querer brincar de adivinha comigo. Droga, virei jantar de Gollum.”  Mas ao invés de me atacar, o senhor falou com uma voz grossa, que ecoou em toda a gruta. “Estava à sua espera, princesa. Suba, meu rei quer vê-la.” Certo, lembro de meus pais me aconselharem a não falar com estranhos. Agora, um ser estranho me oferecendo uma carona e me chamando de princesa? Ou é um típico velho tarado, ou é o desconhecido. Prefiro a segunda opção.  “Desculpe senhor, qual o seu nome? E onde estou?” “Pode me chamar de Caronte. Sou a única via de acesso entre o mundo em que você está, e o mundo de meu rei. No mundo que você conhece, você está em um deserto vulcânico na Islândia, e na entrada do mundo do meu rei, em caso de futuras dúvidas.” “Caronte... O barqueiro? Caronte da mitologia grega?” “Sim, sou eu. Agora se não for te incomodar muito, seu pai não gosta de esperar...” Depois pensando melhor, não sei o que me passava pela cabeça quando embarquei em uma canoa, com uma figura que eu ainda acreditava que era como um Gollum, mas que dizia ser um personagem da mitologia grega, que me chamava de princesa.

Avançando o rio, que Caronte dissera que era o Estige, eu me deparei com objetos de todas as épocas, hologramas de pessoas ficando ricas, encontrando o amor da vida delas, se livrando de doenças, etc. Percebi que eram sonhos e metas não realizadas, o que me deu uma sensação estranha, como pena ou pesar.

Depois de uma longa viagem, finalmente consegui ver a outra margem. Novamente com areia vulcânica, porém, essa era mais populosa, digamos assim. Em todo lugar, eu via algo parecido com humanos feitos de fumaça que brilhavam... Não sei se isso é uma boa definição, mas é o melhor modo de descrever. Caronte encostou o barco e apontou para dois soldados nazistas, “Estão a tua espera, vão te levar até ele”. Desci e fui de encontro a eles. Imediatamente eles começaram a marchar ao meu lado. Eu mantive meu lampião comigo, caso contrário não conseguiria ver nada... Mas acho que mortos não precisam de luz para se orientar no escuro. À medida que avançávamos caverna adentro, mais almas eu encontrava no meio do caminho. Elas emitiam um barulho como vento soprando por uma pequena fenda em uma janela e eu sentia calafrios cada vez que acidentalmente eu não conseguia me desviar de alguma, passando por ela. Com um tempo, acabei me acostumando com isso. Passamos por um muro tão alto que eu acho que era capaz de alcançar as estalactites e tão largo que poderia ter quartos dentro dele. Meu subconsciente se despertou e começou a me ensinar coisas, que aquele era o Muro de Érebo. Achamos uma entrada, que estava superlotada de almas. Então, ouvi um cachorro uivar. É, estranho um cachorro em um lugar desses, mas então me lembrei de Cérbero. Bom, eu amo cachorros, e normalmente não hesito em brincar com um, mas com Cérbero de pé, em suas quatro patas, era do tamanho de uma casa. Seu rabo era da grossura da minha coxa, suas três cabeças não perdiam nada do que acontecia ao seu redor, todos seus olhos tinham a íris vermelha, seus dentes podiam ser confundidos com as estalactites, se não fossem tão brancos, seus pelos eram pretos e macios. (Sim, eu toquei na pata dele, mas então a cabeça da esquerda me olhou com cara de fome, então resolvi seguir em frente, me desviando das poças de baba).  Depois de passar pelo o cão, encontrei três cabines, cada uma com um soldado de época diferente, e na frente de cada cabine havia uma catraca. Meu subconsciente me dissera que duas era para ser julgado e a que tinha a fila mais rápida, era sem julgamento. Os soldados que me acompanhavam me levaram à cabine de morte expressa, se comunicaram de alguma forma com o soldado que estava dentro da cabine, e então passei pela catraca.

Havia um campo enorme e de imediato, vi a minha direita, uma cerca, como se fosse uma barreira de fazenda, e do lado de dentro havia tantas almas que achei impossível passar por lá, desviando de todas. “Campos de Asfódelos”, pensei.  A minha esquerda, uma cerca de campo de concentração, e lá dentro, todo tipo de tortura que imaginar. Algumas me deram ânsia de vômito, gritos constantes me aterrorizavam e com isso apertei o passo. Pouco mais a frente dos Campos da Punição, havia uma grande tenda, como se fosse um acampamento improvisado, almas saiam de lá arrastadas por soldados, se debatendo, tentando fugir da Danação Eterna.  Andamos por mais alguns quilômetros e encontrei o lugar onde qualquer um queria estar. Campos Elísio. Para limitá-lo, havia um muro de pedras e um portão de madeira. Dentro tinha uma lagoa límpida que brilhava. No meio tinha três ilhas, com casinhas aconchegantes, que cheiravam a cookies. (O que me lembrou que eu sentia fome.)

Continuamos nossa caminhada, mas antes de descrever o jardim e o templo que vi à direita, falarei sobre algo que estava pouco mais à direita. Imagine um muro de pedra, em que nenhum método de demolição iria tirar uma única rocha de seu lugar. Um portão de madeira e metal igualmente resistentes, o lugar era protegido com algum tipo de poder divino. Mas mesmo assim, de longe senti a áurea dos seres malignos que lá viviam. “Tártaro”, pensei e logo me veio a tona histórias de seus prisioneiros. Rápido dei meia volta e fui em direção ao templo de Hades.

No caminho, encontrei uma grade de bronze que às vezes dava lugar às pilastras de mármore negro que delimitava o espaço do castelo/jardim.  A cima do portão, havia três mulheres com asas de morcego, cabelo de serpente, cheiravam a veneno e com certeza eram as criaturas mais feias que eu já tinha visto na minha vida! As Fúrias estavam na seguinte ordem: Megera, Alectó e Tisífone. Como eu sei disso? Não faço ideia.

O jardim de Perséfone era algo extremamente curioso e único. Bem no centro, havia uma árvore grande e linda, que exalava o cheiro de seus frutos.  Cada romã parecia irresistível, de dar água na boca. Em todo o jardim, havia cogumelos, pedras preciosas que coloriam o local, uma mesa de picnic com estátuas de crianças, sátiros e alguns adultos, todos aterrorizados... Tudo aos mínimos detalhes, muito bem trabalhadas, como se fossem de verdade... “Cara... Essas não são estátuas da Medusa? Ok, são, espero que ela não esteja aqui também”. Evitei encarar muito, isso me daria mais pesadelos.

Do outro lado do jardim, sentadas em um banco de praça, haviam três senhoras, que pareciam discutir algo enquanto tricotavam. Digo, uma tricotava, a segunda desembaraçava a lã e a terceira esperava com uma tesoura enorme em mãos. As parcas, (na devida ordem: Cloto, Láquesis e Átropos) olharam pra mim ao mesmo tempo, ficaram me encarando até eu sair do campo de visão delas. Lembrei que elas que decidiam o destino de alguém e quando esse alguém morreria. “Ok, não me lembro de ter estudado tanto assim Mitologia... De onde sei tanta coisa?”

Mas, novo tópico, o templo. Era simplesmente incrível! Um templo grego enorme, todo em mármore negro.  Tinha detalhado em alto relevo cenas de todos os tipos de morte possíveis, imagens que se moviam, imagens de todas as épocas. Entre cada vão que as pilastras faziam, tinha um soldado como os que me guiavam, guardando o local. Meus guias se comunicaram com um guarda, o guarda olhou para mim, assentiu e fez um gesto para que eu entrasse. Mas meus guardas não me seguiram.

O templo muito maior por dentro do que aparentava, os cômodos eram separados por longas e grossas cortinas negras, que eu via a luz fraca de velas através da cortina. “Ótimo, não sou a única que precisa de uma ajudinha aqui.” Então, no fim do templo alguém falou: “Gostou de meu reino Kate?”. Eu admito que me assustei. No escuro, em um lugar desconhecido, cheio de monstros, uma voz grossa e levemente rouca se manifesta de algum lugar? Quem não se assustaria? Ao ouvir minha falhada de respiração e ver meu leve pulo, ele riu. “Venha mais perto querida, venha aos pés do meu trono.”.  “Ah, ok... A propósito, vossa majestade tem um reino fascinante aqui! Tudo muito organizado, belo cão, belo jardim... E muita criatividade para torturas!” Respondi enquanto me dirigia ao fim do templo. “Ah... ainda há muito para ver aqui em baixo, você só conheceu a parte principal e nem chegou aos detalhes. Depois ando com você e te explico cada detalhe.” Então meu lampião finalmente revelou o dono da voz. Sentado em um trono de detalhes em bronze e estufado negro, estava Hades. Cabelos negros e longos, incrivelmente lisos. Pele branca, traços marcantes, olhos tão pretos que a íris se confundia com a pupila, corpo musculoso. Vestia uma camisa polo preta, jeans e sapato de couro. Possuía em sua mão um anel de bronze, uma caveira, claro. Mas... O fato de ele estar vestido de uma forma tão casual me deixou com uma sensação que não pude explicar. Digo, não é de camisa polo e jeans que eu imagino um Deus grego! E foi enquanto eu pensava nisso que ele me deu um sorriso deslumbrante, como se pudesse ler meus pensamentos. “Hã... Prazer conhece-lo, senhor.” Falei sem jeito. “Prazer revê-la, Kate... Você cresceu bem! É uma pena que não pude acompanhar isso.” “Eu já o vi antes?” “Eu estava lá, quando você nasceu!” e quando terminou de falar isso, se levantou e veio à minha direção. Então como se compartilhasse uma memória comigo, eu vi uma mulher de cabelos pretos e olhos castanhos claro me olhando, chorando e suada em roupas de hospital, e ao lado da mulher, estava ele, com o cabelo curto, mas o mesmo sorriso deslumbrante.

Eu era adotada. Fui com um ano para os Estados Unidos, após minha mãe entrar em depressão e começar a beber e se drogar para ter alguns momentos de felicidade. Voltei para a Europa justamente atrás de informações sobre meus pais biológicos... Mas depois de vinte anos, não sabia nem se estariam vivos. E mais uma vez, como se lesse meus pensamentos, Hades disse: “Desculpa deixar vocês duas... É uma regra estúpida, mas é regra. Mas eu sempre fiz o que pude para te ajudar e te observei com o passar dos anos.” Enquanto ele falava, tudo se encaixava. As vezes que eu me escondia no escuro para ouvir conversas dos meus pais adotivos sobre mim, quando eu passava muita raiva fissuras se abriam no chão, ou quando eu queria pensar, eu invadia sem nenhuma dificuldade cemitérios e deitava em cima de túmulos e ficava observando o céu, e por que nunca nenhum segurança me incomodava quando eu estava lá, todos os monstros que enfrentei com bravura com uma misteriosa faca de lâmina negra. Como eu podia sentir se uma pessoa estava viva ou não só de pensar no nome dela, entre outras coisas.

De repente surgiu uma curiosidade, pensei em minha mãe, estava morta. Então perguntei: “E minha mãe?” “Morreu poucos anos depois de te mandar para a adoção, overdose.” Depois de me responder, ele fez um gesto e a alma de minha mãe apareceu ao lado dele. Os mesmos olhos castanhos, um corpo parecido com o meu, em um vestido longo marrom. Eu queria abraça-la, mas sabia que tudo o que eu sentiria era um arrepio. Ele olhou para ela, com um brilho nos olhos como se ainda estivesse apaixonado. “Você está dizendo que... Você... Ela... e ai eu? Hã? Eu sou filha de vocês?” Não era o reencontro que eu imaginava. Eu estava no submundo, meu pai era o Deus dos Mortos, minha mãe estava morta, mais estava lá na minha frente e eu fui parar lá depois de um acidente de avião, depois do avião ter sido atingido por um raio, em que só eu sobrevivi, misteriosamente.

Ao mesmo tempo eles suspiraram e falaram: “É Kate... Você é uma semideusa.”.


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