As Crônicas dos Três Reinos: Recortes escrita por JojoKaestle


Capítulo 1
Sobre Yelitza e Lutherdal


Notas iniciais do capítulo

Especialmente para aqueles que gostaram dos prólogos.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/340808/chapter/1

Antes da ira de Vaus cair sobre os humanos primordiais a vida era boa em Vassand. Suas belas cidades cobriam as planícies do sul e grande era o desejo em avançar para terras ainda não conquistadas. Quando isto aconteceu, porém, não trouxe paz para as mentes dos homens, apenas cobiça. Esquecendo-se dos ensinamentos dos deuses e ofuscados com as possibilidades que os novos territórios traziam, batalhas para definir o comando sobre estes se espalharam. Quando Mavra lhes tirou o grande rei, tendo este durante toda sua existência apenas tido um filho com pouco pulso para governar, surgiram aqueles que com suas línguas bífidas espalharam rumores sobre revoltas. Ao lado do rei estava Lutherdal o Franco, dos humanos primordiais o mais aclamado por aqueles que brandem espadas ou decidem pela lealdade em tempos difíceis.

Grande era o exército a ser enfrentado e seus restos, dizem, ainda podem ser encontrados no deserto de Alkaid, transformado em sua atual condição porque apenas a areia pôde conter todo o sangue derramado naqueles tempos. Nas vésperas dos dias rubros Lutherdal organizava os batalhões que se juntavam a causa do rei e sua pouca quantidade era notável, mas não digno de preocupação porque sua majestade estava entre eles. Os deuses não o abandonariam.

Yelitza, senhora das pérolas que adornam as noites escuras, cantava naqueles dias sombrios perto de onde os homens de Lutherdal acampavam. Ela cantava, pois era de sua natureza assim como é a da lua iluminar o firmamento quando tudo é negro. E foi desta forma que olhos impuros vislumbraram tudo que lhes era proibido. Lutherdal sentiu-se guiado por aquele som que ressoava tão suavemente pelos ventos e lhe tocava os ouvidos e o coração com delicadeza. Caminhou durante muito tempo no escuro, até avistá-la no alto de um pequeno monte. Suas vestes eram de um branco puríssimo e balançavam ao vento com seus longos cabelos negros, entrelaçados com fitas prateadas. Tamanha foi sua grandeza que Lutherdal o Franco baixou seus olhos envergonhado e balbuciou desculpas. Mesmo com os olhos abaixados, pôde ver que ela se aproximava porque dela parecia vir toda a luz. A mão da deusa segurou sua face e a levantou, forçando-o a olhar em seus olhos. E então algo improvável aconteceu, porque o que Lutherdal viu era amor. E o amor o preencheu em igualdade. O que leva uma deusa a amar um mortal não é sabido, mas sobre outro humano que conseguiu este feito nada foi contado. Passaram a noite juntos, a alegria os envolvendo e o amor os protegia do frio.

Era, porém, proibido a qualquer deus amar um humano, ainda que muitos deles desfrutassem de sua companhia. O contentamento de Yelitza encheu os ares naquela noite, suas criações saudavam Lutherdal e logo foi percebido por Wedast, pois dele é muito difícil esconder algo. Quando o sol ainda não havia raiado Lutherdal e Yelitza se separaram, ele lhe prometeu que estaria vivo para encontrá-la na próxima noite, ela, que o abençoaria para que nada de ruim acontecesse. Antes que chegasse ao acampamento Lutherdal foi capturado por Wedast, antes que Yelitza pudesse interferir o conselho foi proclamado.

  Duras foram as palavras de Maelan e impiedoso o veredicto dado pelos demais grandes senhores e senhoras da existência. De Yelitza foi tirado o canto, a permissão para andar entre humanos e a ventura de seu ser. A decisão não fora unânime, mas os poucos protestos foram abafados pela presença do Grande e Único. Quando tudo parecia resolvido, Agnessa questionou que fim levaria o homem que motivara toda aquela agitação. Wedast ao ouvi-lo achou graça e anunciou que seu destino já fora determinado no momento em que seus olhos pousaram sobre a deusa. Yelitza então, invadida pela cólera levantou-se de seu trono e todo o salão foi tomado pela penumbra. O estrago dos insultos proferidos pela deusa foi tamanho que para evitar maiores desavenças foi combinado sua clausura em uma das mais profundas cavidades do reino de Camira, onde ficaria reclusa até que sua ira se esvaísse e seu desejo por perdão sobrepujasse os seus próprios. Enquanto o pranto de Yelitza enchia o salão, Wedast retirou-se tempestuosamente e Agnessa escondeu o riso entre suas mãos.

Os horrores acometidos a Lutherdal durante seu cativeiro por Wedast foram imensos, sendo lembrados pelos homens primordiais com desgosto e repulsa. As grossas correntes o impediam de mover-se e açoitavam furiosamente suas costas e rosto, rasgando sua pele e tirando qualquer esperança de sua alma. Dias passaram e o sofrimento que o afligia não amenizava. Dentro do seu ser o homem clamava por liberdade, ao deus apenas dirigia ofensas e injúrias. Aconteceu que seu corpo definhado foi retirado das correntes e levado ao encontro da luz do sol. Sentia o vento resvalar entre seus cabelos e então duas mãos grandes o ergueram do chão voltando seu corpo para frente.

-Abra bem os olhos Lutherdal, o Franco. Porque isto é o que sobrou de seus homens e diante de você está o destino do seu rei e protegido. – declarou Wedast.

O homem fraquejou e caiu de joelhos, as mãos tentando em vão privá-lo do grotesco massacre que caíra sobre seus batalhões. A terra era rubra e com a brisa chegavam até eles o odor do ferro e da podridão. Antes que conseguisse dizer algo, porém, o senhor das tempestades desferiu dois golpes em seu rosto, cegando seus olhos e o abandonou falando:

-Que a boa sorte o acompanhe, filho dos homens. Ache seu caminho para casa e estarás livre.

  Menor não era o sofrimento de Yelitza, pois também estava encarcerada e a esperança a abandonara. Passava tempos chorando pelo seu infortúnio e suplicando para que o mesmo não atingisse seu amado. Tiadelik a visitava, pois o estado de sua irmã o preocupava severamente. E então a lua desapareceu do firmamento e o escuro noturno só era interrompido pelas estrelas, cada vez mais opacas. Foi o bastante para que o deus viesse até ela aflito e ao mirar os olhos da irmã viu que seu brilho havia se ofuscado. Não se importando com as consequências de seus atos, a libertou de seus castigos, pois era entre os deuses o que mais gozava do afeto de Maelan. Yelitza o envolveu em um abraço e lhe agradeceu muitas vezes antes de partir. Mas Adanna era vasta e cada momento que perdia era para ela um pressentimento agourento que crescia em seu peito. Foi então ouvida por Fayrna e Yamenik, vento e brisa, obras de Wedast que muito estavam envergonhadas pelos atos de seu pai. Levaram então o canto de Yelitza aos quatro cantos do mundo e quando Lutherdal o ouviu foi tomado pela alegria. O senhor das tempestades também o escutou e em fúria decidiu que o humano morreria pelas suas mãos naquela noite.

Quando Yelitza surgiu diante de Lutherdal foi encoberta pela ameaça do deus e invadido pela força o humano o desafiou para um duelo. Parecia a Wedast não ter ouvido muito bem, mas respondeu que daria ao homem a morte que tanto desejava. O senhor das tempestades ofereceu a mão para Lutherdal e nela repousava uma espada afiada. A luta que se seguiu foi recontada inúmeras vezes pelos bardos e contadores de histórias em sua totalidade, o nome do homem aclamado muito depois de sua existência. Em determinado momento Lutherdal, sentindo que os golpes sofridos lhe arrancavam a vida lentamente, investiu contra o deus e lhe arrancou o polegar da mão direita, fazendo a espada deste cair e retinir na terra. Pois a espada que Lutherdal brandia era Arcturus, a cruel, que nesta época ainda não fora manchada pelo ódio. Tamanho foi o espanto causado a Wedast pelo seu ferimento que sua reação ao fitar os olhos de seu oponente foi a de abaixar-se para pegar o pedaço mutilado, a mão esquerda cravando de forma profunda sua adaga no tórax do humano. Feito isso, ensaiou uma mesura e desapareceu.

Irreconhecível estava a bela Yelitza quando abaixou-se e tomou o corpo moribundo de Lutherdal em seus braços. Sua face cortada, os olhos retalhados e as vestes banhadas em vermelho.

-Salve Yelitza Morvarid, senhora das pérolas que adornam minha escuridão. Peço perdão pela minha falta de palavra. – sussurrou Lutherdal, forçando-se a soar claro. Sua voz, entretanto, era embargada e hesitante.

A deusa sorriu, tirando-lhe suavemente os cabelos da face e beijando sua testa repetidas vezes. No final, suas lágrimas escorriam pelo rosto do homem que segurava. Lutherdal foi levado pelo canto de Yelitza uma última vez antes de deixar de existir.

Mavra, apiedada pela situação dos amantes, concedeu ao homem uma última dádiva antes de levá-lo: sua alma renasceria como é o destino de todos os grandes, mas não esqueceria o som que o ninou até o fim, tampouco de sua criadora. E assim acontece que, de tempos em tempos, a alma do grande general renasce em um novo corpo e ao seu encontro vem Yelitza, pois o desejo de estarem juntos os atrai até estarem frente a frente mais uma vez. Cada vez que a morte afasta Lutherdal de seu abraço, Yelitza faz com que a noite perca sua lua, tornando-a pesarosa como sua existência.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Booom, e ai? Agrada, não agrada, deveria parar de postar acréscimos da história original para não confundir ninguém?