Batman Resigns escrita por Goldfield


Capítulo 2
Capítulo II




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Capítulo II

 

“Estará a verdadeira felicidade oculta num lugar tão distante que nem ao menos conheço? O que encontrarei lá? Conseguirei superar esses fantasmas internos que me assombram dia e noite?”

 

No dia seguinte Bruce Wayne não foi trabalhar. A tempestade prosseguiu ininterrupta, apenas um pouco mais fraca, e o milionário passou o tempo inteiro trancado em casa pensando em sua vida e na carta que Wilfred Pennyworth lhe enviara. Gastou horas caminhando sem rumo pelos corredores da mansão, ora se apoiando junto a alguma parede ou janela para pensar, ouvindo a chuva cair. Logo já eram quatro da tarde e nem havia almoçado. A inquietação lhe tirara a fome.

–         Dia imbecil! – rosnou Bruce nesse momento, descendo pelas escadas do hall até o térreo da residência.

Dando-se conta de que perdera mais da metade do dia divagando, e que provavelmente ignorara algum telefonema preocupado vindo da empresa enquanto viajava dentro de sua mente perturbada, o filho dos falecidos Wayne retirou seu celular de um bolso da calça. Consultou a memória do aparelho até encontrar o número de Lucius Fox, mas quando estava prestes a ligar para ele, considerou a hipótese de as chances de alguém nas Indústrias Wayne ter notado sua ausência serem mínimas, e guardou o telefone imediatamente.

–         Droga de dia de chuva! – insistiu na lamúria, voltando a subir as escadas.

 

Eu tive um sonho estranho na noite passada. Estranho não, surreal e soturno. Quem diria que, após décadas lúcidas combatendo o crime, meu subconsciente produziria algo tão dantesco sem estar sob efeito dos gases do Espantalho...

Nesse sonho, ou melhor, pesadelo, estavam presentes todas as mulheres que já passaram por minha vida: a doce Vicky Vale, a sedutora Selina Kyle, a acadêmica Chase Meridian, a inexpressiva Julie Madison... Mas elas não eram reais, e sim esculturas feitas com papel de jornal que lembravam bastante pessoas de verdade. Até que um vulto feminino, cujo rosto estive longe de identificar, acendeu um isqueiro, e jogou-o aceso sobre as outras, queimando-as completamente.

E, enquanto eu admirava a pilha de cinzas resultante da combustão daquelas estranhas estátuas, a misteriosa mulher se aproximou de mim e me beijou intensamente nos lábios, sem que eu ainda, no entanto, pudesse admirar ao menos seus olhos.

O que esse sonho tão incomum pode significar?

 

Cruzando um longo corredor, Bruce parou diante de uma grande janela que fornecia uma ampla visão dos arredores da casa e da parte urbana de Gotham um pouco mais distante. Imóvel e sem piscar, passou a admirar a tempestade, observando a forma como os céus saciavam a sede da terra.

Quando pequeno, era seu costume correr pela chuva, sentindo as gotas de água, algumas leves e outras pesadas, molhando seu rosto e encharcando sua roupa. Ao voltar para dentro, seus pais sempre o repreendiam e na maioria das vezes o ingênuo menino também acabava pegando uma gripe, mas nada disso poderia tirar o prazer que o pequeno Bruce sentia ao correr pela chuva... Uma das pitorescas diversões que temos na infância e percebemos ser totalmente boba quando nos tornamos adultos.

 

Esta mansão está me enlouquecendo. Eu preciso sair daqui, preciso respirar novos ares. Castlewood parece ser um lugar agradável e bucólico, recanto ideal para esquecer meus problemas e tristezas. Sim, eu tenho de sair em viagem, ou esta casa acabará se tornando o mausoléu de minha sanidade...

 

Por mais que o filho do casal Wayne quisesse apagar de sua mente todas as lembranças ruins que infestavam sua atormentada mente, uma delas surgiu nítida em seus devaneios, como se ele assistisse à sua própria vida em forma de filme...

Houve uma noite em que correr pela chuva lhe fora extremamente penoso ao invés de agradável. A noite do funeral de seus pais. A dor em seu peito era imensa, como se mil agulhas estivessem fincadas em seu frágil coração de menino. Ele abraçava o livro vermelho-sangue que lhe infligia grande culpa. O diário de seu pai morto. Sem rumo, o pequeno Bruce corria pela chuva tentando se livrar daquele peso amargo, raios iluminando o céu como se a noite virasse dia por breves instantes...

 

A partir daquela noite meu coração começou a adoecer irremediavelmente. A partir daquela noite eu comecei a morrer. Perdi tudo que tinha de bom. Meus sonhos morreram junto com meus pais. Eu me vinguei, matei Jack Napier, porém a dor não passou... Busquei uma vã cura apenas para ter certeza de que não havia mais volta para mim. E agora aqui estou, triste, desolado, sozinho, mergulhado até o pescoço na minha depressão.

 

Tinha mesmo de fugir... Fugir de Gotham, fugir da ingratidão daqueles cujas vidas protegera até então, fugir de seu destino sombrio e aparentemente inescapável. Fugir para bem longe.

 

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A noite chega, e a tempestade volta a tomar vigor mais intenso e violento. Nos arredores de Gotham, sobre uma colina, existe uma construção soturna e isolada. Por suas janelas iluminadas por lâmpadas fracas, gritos de loucura colocam medo nos corações dos poucos residentes nos arredores. Em meio a um temporário clarão, o nome do lugar pode ser lido com nitidez numa placa próxima ao portão de entrada: “Asilo Arkham”.

No interior do local, mais precisamente num escritório escuro e pouco confortável que lembrava uma masmorra, um sujeito de cabelos arrepiados, usando jaleco e óculos de lentes espessas, encontrava-se sentado atrás de uma mesa de madeira ao lado de um esqueleto humano de pé, usado em aulas de anatomia. Sobre o móvel havia uma pequena placa informando o nome do homem ali presente: “Dr. Burton – Psiquiatra-Chefe”.

Muito tranqüilo apesar da tempestade incessante e do ambiente macabro, o médico examinava as fichas de alguns de seus pacientes mais insanos, quando alguém bateu à porta de ferro da sala. Sem tirar os olhos dos papéis, Burton indagou:

–         Sim?

–         Doutor Burton, a nova psiquiatra chegou! – informou um enfermeiro chamado Ralf, gritando do corredor.

–         Oh, é mesmo! – exclamou o homem de cabelos rebeldes em resposta, lembrando-se que a especialista contratada na semana anterior chegaria à instituição aquela noite. – Mande-a entrar, sim?

Decorreram alguns segundos. A porta foi destrancada por fora e logo se abriu. Uma linda jovem de cabelos loiros e corpo de causar inveja a outras mulheres no ramo, trajando jaleco assim como Burton, ganhou o recinto com uma valise em mãos. Sendo admirada pelo psiquiatra-chefe, a nova funcionária do Asilo Arkham caminhou graciosamente até uma cadeira de frente para a mesa e sentou-se após ser convidada pelo médico através de um gesto.

–         Boa noite, senhorita... – saudou o doutor, sem completar a frase. – Perdoe-me, não me recordo de seu nome...

–         É Harleen, doutor Burton – disse ela num sorriso amável capaz de acalmar o mais violento dos dementes. – Harleen Quinzel.

–         Boa noite, senhorita Quinzel – repetiu o especialista, desta vez concluindo a saudação, enquanto cumprimentava a jovem com um aperto de mão. – Perdoe minha falta de memória, mas é que este lugar ocupa minha mente vinte e quatro horas ao dia, a senhorita deve compreender.

–         É claro que sim. Sei como é cuidar de pessoas desequilibradas, doutor Burton... Ladrões, estupradores, serial killers... Porém, baseada em meus conhecimentos adquiridos durante meus poucos, entretanto imensamente frutíferos anos de trabalho, posso afirmar que os criminosos são uma espécie covarde e supersticiosa.

–         Concordo plenamente, senhorita Quinzel. Mas aqui em Gotham já houve uma pessoa que disse exatamente a mesma coisa... Já ouviu falar do Batman?

–         Sim, quem nunca ouviu? Um homem que se veste de morcego e vaga pela noite impedindo crimes e protegendo vidas. Um caso muito interessante no ramo da psiquiatria.

Nesse momento, a doutora, notando sobre a mesa as fichas que Burton examinava há pouco, continuou:

–         Todavia, não é o tipo justiceiro que me fascina mais, e sim os criminosos totalmente enlouquecidos. Existem casos simplesmente incríveis, doutor Burton. E um em particular ocorrido aqui em Gotham no final dos anos 80 sempre me chamou a atenção... Aliás, posso dar uma olhada nessas fichas?

–         Sim, claro – assentiu o médico, estendendo os papéis para Harleen com uma das mãos.

Sempre sorridente e carismática, Quinzel começou a folhear os diferentes quadros clínicos dos hóspedes do Arkham. Burton apenas observava intrigado, até que a jovem, retirando uma determinada ficha do meio das demais, disse ao psiquiatra-chefe:

–         É esta aqui.

–         Jack Napier – leu o doutor em voz alta o nome presente na folha de papel já um pouco embolorada. – Mais conhecido como Coringa!

–         Exatamente.

–         Um sujeito horripilante... Ele esteve aqui quando jovem, na época em que ainda era um assaltante de rua. Possuía um quadro preocupante que envolvia repentinas e violentas mudanças de humor. Ele estava de volta aos becos de Gotham antes que pudéssemos nos aprofundar no tratamento.

–         Sim, eu já li muito sobre ele. Um caso de esquizofrenia muito intenso. O mafioso discreto e calculista se transforma numa piada assassina ao cair num tanque de produtos químicos. Sua mente foi deformada permanentemente, assim como sua aparência física...

–         Até que o Batman fez com que ele despencasse do alto da torre da Catedral de Gotham. Pouco antes Napier havia tentado intoxicar a cidade com seus gases dos nervos. Um tremendo doido varrido...

–         Um doido varrido fascinante, convenhamos – opinou Harleen, fitando a foto de Jack presente na ficha. – Além do mais, ele não era tão diferente do Batman. O que pode levar uma pessoa a empenhar sua vida em fazer justiça por outros indivíduos que nem ao menos conhece? Apenas um trauma tão intenso e duradouro quanto o sofrido pelo Coringa. Ele e o Batman eram igualmente desequilibrados, eles apenas estavam de lados diferentes!

–         Teoria interessante... Acredito que será muito bom tê-la entre nós, senhorita Quinzel.

–         Eu penso da mesma forma, doutor Burton – respondeu a mulher num sorriso tão amplo que fez o médico lembrar-se, por um instante, do insano e nada amistoso Jack Napier.

 

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Manhã seguinte.

Um homem solitário encontra-se vagando pensativo por uma ampla e extremamente escura caverna subterrânea. A Bat-caverna. Refúgio de um herói que não tinha mais forças, tampouco motivos, para prosseguir em sua luta contra o crime.

Ao contrário da mansão, para Bruce aquele esconderijo era um pouco menos depressivo, talvez por tê-lo adotado como verdadeiro lar no decorrer dos anos. Nesse aspecto o Batman também havia interferido em sua vida, dando a Wayne mais uma prova de que desperdiçara sua sofrida existência numa vingança fútil disfarçada de justiça supostamente benfeitora...

Estava mesmo decidido a fugir de tudo aquilo.

O táxi que o levaria até o aeroporto já chegara à residência. Certo de que não se arrependeria de nada, Bruce subiu pela escada que levava até a passagem-secreta num dos corredores da mansão, a Bat-caverna sendo lacrada automaticamente atrás de si... Talvez definitivamente.

 

Adeus dor, adeus angústia, adeus vazio interior... Adeus paixões e relacionamentos arruinados por causa de minha segunda, e por muito tempo verdadeira, identidade... Adeus mansão sufocante, adeus melancolia, adeus insatisfação... Adeus Gotham ingrata, cidade de mentes eternamente corruptas, por mais limpas que suas ações pareçam ser... E, acima de tudo: adeus Batman!

 

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Um helicóptero sobrevoa os góticos prédios do centro de Gotham. Apesar de o sol já ter raiado há algumas horas, o céu conservava uma cor vermelho-sangue, típica dos dias da metrópole. Dentro da aeronave, um misterioso homem de chapéu admira a paisagem por uma janela e, depois de uma breve e doentia risada, murmura consigo:

–         Gotham City... Como sempre botando um sorriso no meu rosto!

E rompeu numa longa e sonora gargalhada, que fez o piloto do helicóptero sentir intensos calafrios. A cidade tinha de estar preparada, pois ele estava de volta. Ele estava de volta...

 

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O jato particular das Indústrias Wayne decolara minutos antes do Aeroporto Internacional de Gotham City rumo à Grã-Bretanha. A bordo dele, Bruce Wayne, sempre silencioso e pensativo, filosofava mais uma vez sobre sua existência. Encostado na confortável poltrona, o milionário remoia seu interior com as mesmas idéias e anseios que o vinham perseguindo naqueles últimos dias.

 

Estará mesmo a felicidade me aguardando de braços abertos em Castlewood, ou estarei eu apenas enganando a mim mesmo? Existirá mesmo um local para onde eu possa fugir? Haverá mesmo uma maneira de aliviar esse doloroso peso em minhas costas? Será que algum dia ficarei livre dessa angústia?

 

Bruce tinha esperança que sim, e era isso que o mantinha vivo e são. 

Continua... 


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