Anjos escrita por TaediBear


Capítulo 1
Há motivos para os anjos caírem.


Notas iniciais do capítulo

AEAEAEAE mais uma one para vocês!
Espero que a one não tenha ficado monótona. Moyashi-san disse que não ficou, então, eu acredito nela 8D
Espero que gostem e tenham uma boa leitura! :3



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Ele não entendia o porquê de estar naquele lugar quente, com cheiro de carne putrefata, o qual chamava de inferno. Ele mesmo já o chamara, quando ainda era vivo. Às vezes, falava em vão frases simples do cotidiano, comparando sua vida àquele lugar ao seu redor. Nada, porém, igualava-se a ele. O Inferno. Onde os demônios viviam solitários, mas confortáveis. Ele não pertencia àquele lugar. Como poderia pertencer se nunca conseguia sentir-se confortável lá?

Sentia que seu lugar deveria ser o céu. Mas, por algum motivo que desconhecia, fora parar naquele inferno – no sentido literal da palavra.

Já ouvira, contudo, alguém explicar-lhe o motivo. Talvez houvesse sido Lúcifer, ou talvez Asmodeus, sabia que fora um dos sete príncipes do Inferno. Aprendera sobre eles lá mesmo, quando eles se dispuseram a falar com ele. Sete demônios perfeitos, os quais ele não queria encontrar novamente.

“A razão para estar aqui” lembrava-se vagamente “é algo relacionado à morte de uma pessoa. Lembras-te de tua vida como humano?”

A verdade era que ele não se lembrava da vida anterior. Era como se ela nunca houvesse, de fato, existido. Ficara no passado, como deveria ficar, mas não deixava qualquer resquício no presente. Ele começou a pensar que talvez fosse uma pessoa ruim quando mortal. Então, estava a pagar seus pecados, ainda que não soubesse quais, nem por quanto tempo ficaria ali.

Não pertencia àquele lugar. Parecia ser uma pessoa completamente diferente de quando era humano. Julgava-se bom, diferente daqueles demônios que se divertiam ao desmembrar corpos humanos, que riam enquanto assistiam à carne humana queimar nas fogueiras do Inferno, que se deliciavam com o sofrimento alheio. Ele não sentia prazer algum em assistir a mortes cada vez mais dolorosas, a torturas terríveis.

Estava sentado sobre uma rocha, observando o Inferno ao seu redor, os demônios a divertirem-se com a dor de corpos humanos, quando um ruído ensurdecedor dominou o lugar. Seus olhos negros voltaram-se aos tronos dos príncipes. Eram de veludo vinho as cadeiras, com detalhes de ouro, e estavam todos lá: Asmodeus, Satã, Lúcifer, Belfegor, Mamon, Leviatã e Belzebu, com sorrisos triunfantes nos rostos.

“Meus caros irmãos” sibilou Asmodeus “hoje será nossa noite de luxúria”.

“E amanhã, o dia da preguiça” Belfegor completou.

“Porque hoje é o que os humanos chamam de dia das bruxas” Lúcifer riu “O dia em que nos orgulhamos de ser demônios”

“O dia em que podemos, enfim, soltar nossa ira contra aqueles mortais inúteis” exclamou Satã.

“Em que podemos nos esbaldar em comidas deliciosas” Belzebu lambeu a boca enquanto tremia em gula.

“Em que roubamos dos humanos aqueles pedaços de papel que chamam de dinheiro” Mamon disse.

“Em que os humanos nos invejam por nossa vida perfeita” por último, veio Leviatã.

Os demônios urraram em excitação. Sempre esperavam por aquela época do ano, em que podiam sair livres pelo mundo dos vivos, em que os portões do Inferno eram abertos, em que gozavam dos anjos que apenas os observavam de cima. Os sete príncipes levantaram-se e postaram-se à entrada do Inferno, os demônios aglomeravam-se nos arredores. Havia risos, gritos, um zumbido irritante que, a cada momento, ficava mais alto.

Ele levantou-se da pedra e pulou em direção à multidão de demônios. Estava a alguns metros de distância e não queria se aproximar nem mais um passo. Ele não pertencia àquele lugar; não fazia parte daqueles demônios. Ele não era como eles.

A noite era iluminada por postes de luz, estrelas e a lua cheia. Ele não obervava o lugar como os outros o faziam. Havia algo em seus olhos escuros que não mostrava qualquer excitação. Via-os correr, gritar e rir, enquanto os príncipes do Inferno observavam tudo ao longe. Ajeitou seu casaco longo, que ultrapassava em cerca de um palmo seu quadril, remexeu os cabelos negros e ondulados em sua cabeça e pôs-se a caminhar.

As crianças riam, corriam, zombavam dos outros, como pequenos diabinhos. Era por isso que os demônios conseguiam disfarçar-se tão bem durante aquele dia. Ninguém suspeitaria deles; estavam idênticos àqueles filhotes que iam e vinham a uma velocidade terrivelmente alta, esbarrando nele tantas vezes. Viu, então, os demônios divertirem-se com o sofrimento humano, com o desgosto, a dor, a raiva, a ira.

Ele não pertencia àquela horda de seres macabros.

Ao perceber que ninguém notaria o fato de ele não estar mais ali, deslizou para longe daquela bagunça. Não aguentava mais tudo aquilo. Queria encontrar-se com sua vida passada e fazê-la sofrer como ele sofria. Ele não merecia tudo aquilo. Provavelmente, era muito diferente do humano que, um dia, foi.

Seus pés o levaram a uma rua menos movimentada. Na verdade, completamente vazia. Nenhuma criança batia na porta das casas, nem um adulto rubro de raiva saía de seu lar e gritava com os pirralhos em seu jardim. Estava estranhamente quieta. Havia uma pequena colina um pouco adiante. Caminhou com passos deveras lentos até a grama e sentou-se, observando a quietude do lugar.

Um grupo de cinco crianças surgiu repentinamente, ao final da rua. Elas corriam e gritavam “travessuras ou gostosuras” em todas as portas, que se abriam, e os adultos entregavam-lhes doces coloridos e deliciosos. Ele sorriu. Gostava de ver a felicidade estampada nos rostos daquelas pessoas. Gostava dos humanos e de quando eles não se matavam. Gostava da alegria e repudiava a tristeza.

Então, se era realmente assim, por que estava no Inferno?

Ouviu um miado de um gato e percebeu que o animal encontrava-se em uma árvore. As crianças pararam para olhá-lo. Em seus rostos, havia nada mais que preocupação.

“O gatinho” murmurou uma menina vestida de fada. “Temos que ajudá-la, Sue”.

A outra menina, vestida de bruxa, balançou a cabeça positivamente. Ele percebeu os olhos de um garoto ruivo brilharem diante das falas das meninas.

“Não se preocupem, garotas” ele disse e virou-se para a árvore. “O grande Jake vai salvá-lo!”

O menino pôs as duas mãos no tronco, que era demasiadamente grosso para seus braços.

Ele observava de longe o que as crianças faziam, o que aquele que se chamava Jake tentava fazer apenas para impressionar as garotas. Havia um sentimento de apreensão em seu coração, o qual ele não conseguia descrever. Sabia, porém, que algo daria errado. Já estava em pé, pronto para correr com o intuito de ajudá-los, quando Jake escorregou de um galho alto e alguém mais alto que as crianças o segurou nos braços. Por um momento, ele admirou a pessoa que salvara Jake. Era um garoto. Seus cabelos alourados alcançavam-lhe o fim do pescoço, mas não chegavam aos seus ombros. A pele era translúcida, inconfundível; ninguém mais possuía tal tom. Os olhos azuis e grandes expressavam tamanha gentileza que o fizeram perceber que não era um humano.

Um anjo.

Havia asas em suas costas. Elas não eram frondosas, como as dos arcanjos, eram simplesmente asas, levemente caídas, nascendo pouco acima da cintura. Vestia um short deveras curto para seu corpo e a camisa – que, na verdade, não passava de um colete abotoado – não passava de seu umbigo, chegando ao fim pouco antes dele. Também havia uma auréola sobre sua cabeça.

As crianças agradeceram. O anjo subiu na árvore e retirou o gato dela, pondo-o no chão com leveza. Então, todos os seres mortais foram embora. A rua voltou a ficar quieta. E apenas um anjo e um demônio encaravam-se, aproximavam-se. O anjo ergueu as sobrancelhas, ligeiramente surpreso. Então, sorriu.

“Não sei por que me espanto” disse. Sua voz era tão doce, tão macia, digna de um anjo. “Hoje é a noite dos demônios, afinal”.

Ele não sabia o que falar, o que fazer, como agir. Ali estava um anjo, falando com ele, a sua voz melodiosa preenchendo seus ouvidos. Contudo, mal conseguia dizer uma sílaba. Então, engoliu em seco, mirou seus sapatos negros e sorriu.

“Mas não chego a me divertir como os outros” confessou. Fazia tempo que não usava sua voz. Ela parecia ainda mais sombria que o normal.

A cabeça levemente arredondada do anjo inclinou para o lado, uma expressão confusa estampada em seu rosto.

“Por quê?” indagou.

“Sinto que não pertenço ao Inferno” era a primeira vez que ele falava aquilo, mas saía com uma estranha tranquilidade, como se a aura do anjo fosse tão boa que o permitisse falar livremente. “Sinto... como se não devesse estar no Inferno. Eu não sou como os outros demônios”.

Um sorriso lindo desenhou-se nos lábios do anjo.

“Quer dizer que é um anjo na pele de demônio?” indagou.

Ele balançou a cabeça algumas vezes, concordando. Era como se um peso saísse de suas costas. Finalmente dissera aquilo para alguém. Seu corpo parecia ter sentido o alívio daquelas palavras. Então, houve o silêncio. O anjo olhava pensativo para o chão; os olhos gentis estavam perdidos.

“Qual é o seu nome?” ele indagou.

O anjo levantou sua cabeça, mirou-o com seus olhos maravilhosos e sorriu de canto.

“Luca” respondeu. “Era o meu nome quando era humano e sempre será. Como se chama?”

Ele parou por um momento. Não se lembrava. Não se lembrava de nada que fizera na vida passada, como poderia lembra-se de seu nome? Entretanto, havia algo naquele rosto. Algo que o fazia ter flashes na memória. Algo que fazia sua mente pipocar em cenas no mundo humano. Algo que fazia sua cabeça doer terrivelmente. Fora aquele nome que fizera isso, que o fazia sofrer.

Seus olhos se fecharam com força, e ele gritou, o mais alto que pôde. O anjo assustou-se e tentou segurar seu corpo que desmoronava lentamente sobre a grama da colina. Tentou apoiar-se nos ombros finos do anjo, mas era muito pesado, de modo que o sentia cair abaixo de si. As mãos foram à cabeça e apertaram-na com força, em um pedido mudo que parasse.

Luca ajoelhou-se no chão e pôs a cabeça do demônio em seu colo, enquanto este ainda gemia e gritava da dor excruciante que dominava todo seu corpo. Os dedos finos acariciavam os cabelos negros levemente, a fim de acalmá-lo, e a voz delicada do anjo preencheu os ouvidos do demônio.

Aos poucos, ele se acalmava, e o que restava era apenas um resquício da voz que antes gritava. Seus olhos negros miraram Luca, que ainda cantava. Ele conhecia aquela voz, aquela música, aqueles olhos. Seria possível ter conhecido Luca em sua vida passada? Improvável. Então, um nome surgiu em sua mente. Sete letras, rima com papel.

“Raphael” murmurou. “Acho que meu nome é Raphael”.

A voz cessou repentinamente. Luca mirou-o com seus olhos angelicais e sorriu.

“Bonito nome” disse.

Raphael, porém, estremeceu. Ele já ouvira aquela voz e aquela mesma frase em algum momento. Mas não conseguia se lembrar. Era terrível a sensação que aquele anjo lhe passava. Contudo, ainda assim, tentou não se importar com ela, porque o sorriso, os olhos, os cabelos, o corpo, a pele dele, eram, simplesmente hipnotizantes.

“Obrigado” murmurou.

Houve mais um momento de silêncio, durante o qual Luca acariciava os cabelos escuros de Raphael e este sentia os olhos fecharem em virtude da sensação indescritivelmente boa que dominava seu corpo, por causa dos dedos finos do anjo. A noite seguia. Ainda era possível ouvir os gritos de excitação dos demônios ao longe.

Raphael não queria que o dia das bruxas chegasse ao fim, porém. No início, pensava que aquilo era uma tortura: sair para atormentar a vida de humanos, e, naquele momento, era como um sonho. Por um instante, pensou que não havia problema em viver no Inferno. Depois, um sentimento de terror o invadiu. Se Luca vivia no Paraíso, eles não se veriam depois daquela noite. Isso fez com que os pensamentos demoníacos de Asmodeus invadissem-lhe a mente, o corpo, os sentidos. Aquela era a noite de luxúria dos demônios. Abriu os orbes escuros, a boca a ponto de dizer ao anjo que fosse seu. Então, mirou aqueles olhos azuis e nada pareceu importar mais.

Ele não podia fazer aquilo. Luca era um anjo. Ele não podia corromper um anjo. Não aquele anjo.

Sua mão foi à bochecha macia de Luca, que a segurou com ambas as mãos e um sorriso no rosto. Eles eram como amantes de longa data e conheceram-se, porém, naquela mesma noite. Raphael imaginou se era isso que chamavam de “unidos pelo destino”.

Sabia que Luca correspondia a todos aqueles sentimentos que lhe invadiam o peito. Sabia que muito provavelmente Luca deixar-se-ia ser corrompido por ele. Ainda assim, porém, não aceitava que qualquer luxúria demoníaca tomasse-o. Queria que aquele fosse um momento puro e amável. Digno de um anjo.

Porque ele era um anjo. Um anjo em pele de demônio. Uma criatura boa, deslocada para o pior dos castigos. Um erro, talvez. Deus confundiu-se, errou seu destino. Raro, mas possível.

Deixou-se levar pelos pensamentos, pelos sentimentos. E passou o resto da noite com seu anjo Luca, apenas admirando-se mutuamente, a esperar que a própria natureza os dividisse.

As coxas do anjo eram macias, confortáveis. Raphael delas não queria se separar; sentia, por algum motivo, que aquela era a principal ligação que tinha com aquela criatura bondosa. Sentia-se feliz com aquela sensação. Mas chegou o momento em que tinha que levantar a cabeça.

Os portões do Inferno abriram-se. Raphael remexeu-se, tentando levantar-se, e Luca puxou-lhe o pulso. Miraram-se intensamente por segundos, transmitindo todo e qualquer sentimento pelo simples olhar. E beijaram-se.

O demônio não queria que aqueles sentimentos luxuriosos dominassem seu corpo; mas Luca era uma criatura irresistível. Tudo nele o fazia desejá-lo mais a cada minuto. E seus lábios, que lábios! Macios, como nenhum outro. Deliciosos, vibrantes, viciantes, entorpecentes. Raphael mal sentira quando se separaram, enfim, e Luca sorriu-lhe, os olhos fechados pelo prazer do beijo.

Olharam-se mais uma vez antes de o anjo bater suas asas e partir para o Céu. A última vez que se viam, a única vez que sentiram os lábios alheios.

Até Raphael perguntar a um dos demônios como visitavam o mundo mortal em um dia comum. “Queria ver alguns humanos sofrerem” explicou “e corromper outros para termos mais diversão”.

“Falaste já com os Príncipes? São eles que permitirão ou proibirão tua ida ao mundo mortal” ele disse, com um sorriso satisfeito nos lábios. Saber que havia um demônio que apenas desejava mais sofrimento e humanos no Inferno deliciava-o inimaginavelmente.

Falar com os Príncipes do Inferno não lhe parecia tão assustador quanto os outros demônios demonstravam ser. Raphael já falara com um deles antes, então talvez fosse mais fácil. Pediu que fosse possível realizar uma conferência e, no dia seguinte, Asmodeus sorriu para ele.

- Novamente, meu querido? Queres falar com os príncipes novamente? – ele indagou. – O que desejas dessa vez?

- Mestre e senhor da luxúria, Asmodeus, peço que me conceda permissão para ir ao mundo mortal – Raphael respondeu. Logo, percebeu o rosto de Asmodeus ficar estranhamente sério e continuou: - Não és o demônio da luxúria? Pensei em cometer talvez o pior de todos os pecados – ele abaixou a voz. – Quero corromper um anjo.

Os olhos do Príncipe do Inferno demonstraram surpresa, mas, logo, esta emoção foi modificada, e Asmodeus sorriu terrivelmente orgulhoso.

- Que ambicioso de tua parte, meu querido – ele disse. – Tens as características de um demônio nato. Certamente deixar-te-ei ir ao mundo humano. Sabes? Os portões do Inferno estão abertos para ti.

Eram mentiras. Talvez o humano que Raphael fora soubesse mentir descaradamente, com um sorriso no rosto, pois isso ele sabia fazer muito bem. Subiu o mesmo caminho do Dia das Bruxas e ouviu estalos e rangidos, enquanto os portões do Inferno abriam. Ele adentrou o mundo mortal e seguiu até a mesma colina da noite anterior. Olhou ao redor, mas nada viu. Afinal, o que esperava ver? Ele não falara com Luca para se encontrar com ele no dia seguinte.

Sentou-se e esperou.

Não sabia exatamente o que esperava. Certamente o anjo não surgiria ali, como na noite anterior. Parecia improvável demais. Destino demais. Era possível, certamente, mas Raphael não apostava em sua sorte.

Então, lembrou-se de como Luca surgira no Dia das Bruxas. Talvez, se uma criança estivesse em perigo de novo, ele pudesse vê-lo. Pensou em criar uma situação; era uma rua de residências afinal, muitas crianças viviam ali. Contudo, logo a ideia deixou sua mente. Luca não gostaria de vê-lo atacar uma criança. Definitivamente não era uma boa ideia.

Raphael não sabia por que estava no Inferno. Ele não tinha coragem de machucar uma criança e, muito provavelmente, estava apaixonado por um anjo. Por que ele não poderia ter ido ao Céu? Por que Deus cometera um engano?

Pôs a cabeça sobre seus braços cobertos pelo tecido negro de sua roupa e fechou os olhos. Seria uma blasfêmia um demônio rezar e pedir aos céus que um anjo descesse à Terra? Pouco lhe importava, na verdade. Ele não pertencia ao Inferno de qualquer forma. Então, pediu e rezou, pediu e rezou. Sua voz talvez pudesse alcançar as nuvens. Talvez aquelas criaturas divinas tampassem os ouvidos para não ter que ouvir aos pedidos de demônios. Talvez Luca sorrisse quando ouvisse sua voz.

Não sabia ao certo se funcionaria. Não sabia ao certo se, algum dia, veria aquele anjo mais uma vez. Mas ainda desejava com todo seu coração – se ele ainda estivesse ali – que Deus lhe mandasse seu servo de nome Luca para dar-lhe felicidade.

Talvez Deus fosse melhor do que imaginava, ou, pelo menos, estivesse a tentar consertar o erro que cometera. Sentiu aqueles dedos finos em seu cabelo e, quando levantou os olhos, viu a pele alva das coxas de Luca. E sorriu.

Lá estava o anjo, tão belo quanto na noite anterior. Seus olhos azuis impecáveis miravam com alegria, e o mesmo sentimento banhava seu sorriso. Raphael transmitiu-o ao anjo também, ajeitando-se sobre a grama verde e estendendo os braços em um pedido mudo para Luca sentar-se em seu colo.

Fê-lo. O anjo apoiou sua cabeça no ombro do demônio e deixou que seus troncos colassem um ao outro. Estavam sentados de frente um para o outro, Luca no colo de Raphael.  Trocaram olhares, sorrisos cúmplices e beijaram-se como na noite anterior.

O interessante, na verdade, era que os humanos não conseguiam vê-los. Anjos e demônios só eram vistos quando assim desejavam. Mas aquele momento particular, único, Raphael e Luca não queriam compartilhar. Seria algo deles, eternamente deles, e Deus e Príncipe do Inferno nenhum tiraria aquilo deles.

Ainda assim, porém, havia algo naquela criatura divina que fazia Raphael sentir certa dor na cabeça. Como se, de alguma forma, Luca o fizesse mal. Tentava ignorar, mas, a cada minuto, ela piorava, fazendo-o fechar os olhos de dor. Passava as mãos pela pele macia do anjo, sentindo seu calor. No entanto, sempre que chegava próximo a certos pontos, Luca impedia-o de continuar.

­- Não lembras que sou um anjo? - perguntava. - O máximo que posso fazer é beijar-te sem que meu Pai saiba.

E continuavam a acariciar-se mutuamente. Raphael sentia as mãos pequenas do anjo a percorrer-lhe as costas lentamente, e Luca sentia os beijos que o demônio depositava em seu pescoço com amor. Não ultrapassavam os limites, não agiam com luxúria alguma. Eram como amantes guiados por amor unicamente e nada mais. Amor, sem luxúria, sem desejo. Amor puro.

Apesar da dor de cabeça que, de vez em quando, impedia-o de pensar com clareza, seu corpo emanava puro prazer; prazer de tocar a pele macia e quente do anjo, prazer de ser tocado por aquela criatura divina, prazer de estar ao seu lado durante todo aquele tempo.

Anjos e demônios não tinham que dormir ou descansar, eram criaturas de energia infinita. Mas Luca e Raphael sentiam que, se ficassem muito tempo juntos naquele local, seus semelhantes estranhariam suas ausências. Despediram-se com um selar de lábios e cada um voltou ao seu local de origem.

Já no Inferno, Raphael perguntava-se ainda por que estava naquele lugar e por que sua cabeça doía quando estava perto de Luca. Parecia para ele que os dois estavam conectados de alguma forma. Talvez a dor que sentia estivesse relacionada com o fato de ter ido parar no Inferno. Acreditava nisso e tentou pensar nos motivos para aquela relação.

Tentou lembrar-se de sua vida mortal.

Havia flashes em sua cabeça que estavam ligados ao nome do anjo, ao seu rosto, à sua pele, aos seus olhos, aos seus cabelos, ao seu corpo, a tudo nele. Ele gritou o mais alto que pôde, remexeu-se na pedra escaldante sobre a qual estava sentado, puxou os fios negros que cobriam sua cabeça e sentiu imagens invadirem-lhe a mente.

Ele via um sorriso nos lábios de uma pessoa. Via os dentes brancos a reluzir sob a luz. Via mãos pequenas tocarem-lhe a pele. Via um garoto sentar-se em seu tronco. Percebia que ambos estavam completamente nus. Percebia que o garoto beijava-lhe o peito. Via suas mãos passearem pelo corpo do garoto. Via-o gemer de dor e prazer pelo que faziam. E gritou ainda mais alto.

Aquilo, por algum motivo, doía. A dor de cabeça chegava a cegá-lo. Então, as imagens foram substituídas por outras. Nelas, havia outro garoto caído no chão. Seu peito estava com uma mancha escura. Via-se com a mesma mancha nas mãos e via o garoto com quem transava nas imagens anteriores a gritar e chorar desesperadamente ao lado do corpo do chão.

Ele próprio gritou tão alto quanto era possível. Os outros demônios viraram seus olhos para ele, viram-no agonizar e sorriram. Mais dor, mais agonia, mais sofrimento para o Inferno. Riram alto. Eles eram o contrário de Luca, que pegara sua cabeça e pusera sobre o colo, acariciando-lhe com amor.

Horas passaram-se, e Raphael estava jogado sobre a pedra escaldante. Respirando com dificuldade, lágrimas a trilhar por suas bochechas, o coração a bater aceleradamente. A cabeça ainda latejava, mas com menos intensidade. As imagens ainda passavam por sua cabeça. Contudo, ele já estava acostumado com elas. Naquele momento, eram as perguntas que mais lhe incomodavam a mente: quem eram aqueles garotos? O que acontecera com um deles? Afinal, quem fora ele em sua vida humana?

Passou as mãos com força no rosto, retirando todo e qualquer resquício das lágrimas e levantou-se. Sentia sua cabeça latejar, mas não conseguia controlar seu corpo, como se uma força maior o levasse daquele lugar. Dirigiu-se aos portões do Inferno e atravessou-os. Viu-se sob a lua cheia do dia após seu encontro com Luca pela segunda vez.

Raphael agonizara por um dia inteiro.

“Luca” ele sussurrou baixo. “Estás por aqui?”

O corpo esguio do anjo surgiu na colina, ao lado dele, e Luca segurou-lhe a mão trêmula, com um sorriso no rosto. Raphael não precisou dizer mais nada, apenas deixou-se levar pela aura daquela criatura divina, sentindo sua cabeça doer, mas com a ótima sensação de ter Luca ao seu lado.

Em algum momento, o anjo sentou-se, e o demônio deitou-se com a cabeça sobre suas coxas. Luca ficou a acariciar seus fios negros, enquanto Raphael observava seus traços ligeiramente andróginos.

“Eu te amo, Luca” murmurou enfim.

O anjo sorriu-lhe, sussurrou um “também” e voltou a admirar o horizonte, perdido em seus próprios pensamentos. Observando aquela criatura, Raphael perguntou-se se Luca sabia como fora sua vida passada. Provavelmente sim, já que se lembrava de seu nome. Contudo, ele ainda queria saber mais que o nome daquele garoto.

“Luca, lembras-te de tua vida passada?” indagou em um momento, vendo os olhos claros do menino voltarem-se para si.

“Minha vida mortal?” o anjo indagou, e Raphael viu um sorriso triste marcar-lhe a face. “Lembro-me, sim. Eu perdi meus pais quando completei dezoito anos, mas ainda tinha meu namorado e meu melhor amigo, sabes? Pensei que estava feliz com apenas aquelas duas pessoas ao meu lado... Até perdê-las. Tu não te lembras da tua vida, certo? Deve ser terrível e excelente estar sem qualquer memória. Ao mesmo tempo em que não te lembras de teus melhores momentos, não te lembras dos piores, aqueles que queres mesmo esquecer. Não achas?”

Raphael ponderou por um instante. O que Luca dizia era verdade, a mais pura verdade. Então, sorriu.

“Tens razão. Mas eu ainda queria lembrar-me... Talvez essa dor de cabeça passasse se eu me lembrasse”.

“Certamente, mas não te preocupe” o anjo sorriu e, calmamente, retirou a cabeça do demônio de seu colo, levantando-se logo em seguida. “Logo saberás toda a verdade”.

Raphael franziu o cenho, ajeitando-se sobre a cama a fim de ficar em pé. Todavia, Luca já batia suas asas, alçando voo. Não esperou o beijo de despedida, nem palavras amorosas; o anjo voltou ao Céu, deixando o demônio na Terra, perdido em dúvidas e dores.

Ligeiramente atordoado, Raphael voltou ao Inferno. Os flashes de seu passado e as imagens de Luca voltavam à sua mente, cegando-o de vez em quando. Piscou várias vezes antes de chegar à pedra escaldante que chamava de lar e deixou que mais uma vez todas aquelas cenas tomassem-lhe a cabeça.

Ele ainda podia ouvir o menino gemer de dor e prazer misturados, vê-lo mexer-se sobre seu corpo, mas, dessa vez, a cena estava mais longa. Outros ruídos enchiam-lhe os ouvidos, e ele podia ouvir os próprios gemidos. A cena foi cortada, porém, e mudou para o garoto com o peito manchado. Nessa cena, ele via cores e, logo, percebeu que era o sangue escarlate que o sujava.

Gritou. Talvez os demônios já estivessem acostumados com seus gritos, pois nenhum deles virou-se para ele. Raphael apenas urrou de dor e agonia, uma, duas, três, quatro vezes. As lágrimas trilharam por suas bochechas e evaporaram ao tocar a pedra. Um olhar vazio mirou o teto avermelhado e escuro do Inferno, antes de toda sua visão ser consumida mais uma vez por lembranças.

“Lu-ca...” ele ouviu a si próprio gemer na cena em que o garoto remexia-se sobre seu corpo e perdeu a consciência.

Durante seu sono, Raphael sonhou com a realidade. Viu-se a declarar-se para um menino louro, deveras mais baixo que ele, e ser correspondido com sorrisos e carinhos. Viu-se buscando o mesmo garoto no apartamento em que vivia sozinho. Viu-se a caminhar de mãos dadas com ele. Viu-se a beijá-lo em muitos pontos diferentes. Viu-se a amá-lo com todas as suas forças.

Uma pausa.

Viu-se a observar ao longe seu garoto conversando com outro. Viu-se a sentir dor no coração. Viu-se a vivenciar ciúmes. Viu-se a odiar o outro garoto. Viu seu garoto explicar que o outro era seu melhor amigo. Viu seu garoto dizer que nunca deixaria seu melhor amigo por ele. Viu-se a arquitetar um plano. Viu-se a pegar uma faca na cozinha.

Uma pausa.

Viu-se a dirigir-se ao apartamento do outro. Viu-se sorrindo para o outro. Então, viu-se perfurando o outro com a faca.

Uma pausa.

Viu o amor de sua vida chorando ao lado do corpo do melhor amigo.

Acordou.

Asmodeus estava ao seu lado, sorrindo-lhe maliciosamente, sua pele e seus olhos a brilharem sob a luz das chamas do Inferno.

“Então, lembraste-te de tua vida mortal, meu querido?” o príncipe indagou.

Raphael concordou e fechou seus olhos mais uma vez, respirando profundamente.

“És digno de estar no Inferno, meu querido. Foras consumido por ciúmes e mataste uma pessoa; um digno demônio!” Asmodeus riu. “Antes que me perguntes, meu querido, não te lembravas de teu passado porque fora traumático demais para ti. Matar o melhor amigo de seu namorado, terminar com este e morrer na cadeia. Que péssima vida! Repito: digna de um demônio”.

A risada de Asmodeus ecoou por toda a extensão do Inferno. Raphael engoliu em seco, seu coração acelerado, seus olhos lacrimejando, seu corpo inteiro a doer. Puxou os cabelos, arrancando alguns fios pela raiz.

Como ele pudera fazer aquilo em vida? Como pudera machucar Luca daquela maneira? Como pudera matar uma das pessoas que seu amor amava mais que tudo naquele mundo?

Levantou-se repentinamente, cerrando os pulsos com tanta força que pingava sangue de suas mãos. Raphael correu pelo Inferno o mais rápido que pôde, ensurdecendo-se para as risadas dos demônios, cegando-se para a agonia alheia. Tudo o que ele precisava naquele momento era encontrar Luca e pedir seu perdão.

Passou pelos portões do Inferno, correu pelo mundo mortal e, logo, alcançou a colina em que se encontrava com Luca. O anjo estava lá, parado no topo, observando o horizonte, perdido nos próprios pensamentos.

“Luca” o demônio sussurrou.

O anjo virou seus olhos claros para Raphael e sorriu. Por um momento, o demônio sentiu-se aliviado. Luca dissera que se lembrava da vida mortal e, ainda assim, sorria para ele. Não significava que ele o perdoara? Que ainda queria amá-lo como o fizeram quando eram humanos?

Raphael sorriu e subiu a colina. Seus braços envolveram seu anjo em um abraço forte, e ele recostou sua cabeça no topo dos cabelos alourados de Luca.

“Perdoe-me. Lembrei-me de meu passado e peço teu perdão, Luca. Eu te amo, sempre te amarei e fui tomado por ciúmes. Por favor, perdoe-me” pediu repetidas vezes com o garoto em seus braços.

Luca fechou seus olhos, sorrindo consigo mesmo. Suas mãos afastaram Raphael de si levemente, para que pudessem se ver, e desceram para o lado de seu corpo mais uma vez.

“Não te preocupe, Raphael” ele começou.

Então, uma pontada de dor tomou o corpo do demônio, iniciando-se na barriga. Raphael tossiu e cuspiu sangue, antes de jogar seus escuros olhos arregalados para baixo e mirar uma espada flamejante cravada em seu peito. Ele voltou-se para Luca, apenas para ver seu sorriso malicioso, odioso, contente.

“Eu já completei minha vingança” o anjo sussurrou rente ao ouvido do demônio.

Raphael caiu de joelhos no chão, sentindo o sangue escorrer de sua ferida e de sua boca. Luca puxou a espada flamejante com a qual deveria defender o Paraíso e deixou que o líquido escarlate jorrasse pelo buraco, manchando a grama, suas roupas e suas asas imaculadas.

Lentamente, ele via o demônio a contorcer-se de dor e perecer. Era ótimo saber como os demônios morriam: apenas com uma espada celestial cravada no corpo. Era interessante também vê-lo agonizar no chão enquanto seu coração se enchia de felicidade.

Raphael matara a pessoa que sempre esteve ao seu lado nas horas difíceis e merecia morrer. Esse era o julgamento de Luca.

Assim que sentiu a respiração fraca do demônio parar, Luca viu-o desaparecer aos poucos. O demônio virou pó e foi levado pelo vento. Sua alma deixara de existir naquele mundo, impedida de reencanar, de virar demônio mais uma vez, ou tornar-se anjo.

E Luca sentiu suas asas escurecerem em uma dor excruciante. Ele gritou, berrou e urrou antes de jogar sua espada flamejante no chão, vê-la desaparecer e asas negras surgirem em suas costas. Tornou-se, então, um anjo caído, fadado a percorrer o mundo mortal sem rumo e solitário, como castigo.

Há motivos para os anjos caírem. Mas poucos se arrependiam de tê-los concretizado. Não acha que um ou dois pecados são bons para o alento de seu próprio coração?


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Notas finais do capítulo

Acho que essa foi a one mais longa que eu já escrevi e-e'
De qualquer forma, o que acharam?
Fazia tempo que eu não escrevia uma deathfic. . . Tava com saudades de matar meus personagens, HAHAHAHAHAHA
Espero que tenham gostado e que leiam mais fics minhas! *-----*
Até a próxima!
Takoyaki.