Butterfly Efect escrita por Índigo


Capítulo 3
Capítulo 2 - Essência


Notas iniciais do capítulo

Ola!
Então é um capitulo enooorme, portanto me desculpem se ficou um pouco confuso. Mas todas as coisas deixadas em branco no primeiro capitulo se esclarecem aqui. Acho que mais quatro capítulos e terminamos a história. Espero que gostem de tudo e me digam o que acham.

Até o próximo capítulo.



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Capítulo II

Essência

"E eu não quero que o mundo me veja / porque eu não acho que eles entenderiam / quando tudo é feito para não durar / eu só quero que você saiba quem sou eu" – Iris, Goo Goo Dolls.




Capitulo II

Essência

"E eu não quero que o mundo me veja / porque eu não acho que eles entenderiam / quando tudo é feito para não durar / eu só quero que você saiba quem sou eu" – Iris, Goo Goo Dolls.


O céu da Cidade Central se estendia em toda a sua glória bem aos nossos pés. Nossa aeronave desafiava aos ventos de forma bastante brava para quem estava escondida sob as nuvens. As pessoas lá em baixo eram pequenos pontos negros e os aeromóveis trabalhavam com precisão, deslocando-se pelo ar, desviando-se facilmente das placas de aço suspensas ao vento e transportando as pessoas de um lado a outro. As pistas e avenidas ao chão eram livres. Só para pedestres e ciclistas, era o que havia sido ensinado á nós. Não podíamos cortar as árvores também, sejam elas artificiais ou naturais. Tínhamos poucas, de todo jeito. O nosso forte eram arranha-céus. Altos, imponentes e cinzas. Eu acho que podia sentir o sopro de Celsius nesses ventos indomados os quais eu temia tanto.

De qualquer forma, depois que tínhamos saído do quarto de hospital de Archer, ele me trouxe até onde uma aeronave compacta estava a nossa espera no topo do edifício onde ficava o hospital. O nome Asleep enfeitava as portas negras da coisa. Lembro que mesmo a beleza da máquina não me fez tirar os pés do chão quando Archer me chamou para subir. – Coisas pesadas não foram feitas para voar. – eu disse com os pés fincados quando ele me puxou pelas mãos.

Tentei soltar-me de seu aperto, mas ele era mais forte. E persuasivo. – Você nunca andou em uma dessas? – perguntou-me sorrindo de lado como um gatinho travesso.

- A maioria das pessoas normais não anda em coisas como essas. – eu apertei suas mãos tentando fazê-lo me soltar. Ele estava conseguindo me aproximar da aeronave, mas a questão era que para subir só existiam dois jeitos: por vontade própria, ou sendo carregado.

- Prometo que não te deixarei cair.

Balancei a cabeça. – Você não pode me prometer algo assim.   

Ele soltou minhas mãos de uma vez e eu quase caí com meu traseiro no chão. Pendurou-se na porta de pesada da coisa até que seu rosto estava na linha do meu. Constelações de sardas e olhos multicolores eram tudo que preenchia minha visão. – Se você estiver com medo, criança, você pode segurar a minha mão. – Quando eu não disse nada em reposta, ele suspirou e me encarou novamente com aqueles olhos grandes bonitos. – Não há nada de errado em ter medo, Dave. Você não será menos corajoso por temer algo.

Tomei ar em meus pulmões e olhei para o céu acima de nós. Era de um branco azulado, praticamente cinza, sempre era. Peguei-me desejando que, de alguma forma, as nuvens se afastassem e o infinito mudasse de cor. Sabia que nunca aconteceria, mas eu tinha esperanças.

- Me dê uma ajuda aqui. – eu disse pedindo auxilio para me impulsionar até estar dentro da aeronave. Quando eu fiquei sobre meus próprios pés na maquina metálica, Archer me ajudou a me instalar e deu-me tudo o que eu necessitava. Disse que não precisava, mas ele insistiu em sentar ao meu lado.

Nós partimos não muito tempo depois. E, como prometera, ele segurou minha mão.

Durante todo o caminho.

...

- E esse é Kyle, - Archer apontou para o jovem de cabelo castanho e com óculos sobre os olhos da mesma cor, sentado com as pernas cruzadas. Suas mãos eram ágeis e os olhos atentos. Reconheci-o das minhas idas ao Hall dos Esquecidos. Ele era aquele que tocava bateria. Ao lado dele, o rapaz taciturno e sombrio estava jogado ouvindo alguma em seus grandes fones de ouvidos. Antes de Archer sequer dizer seu nome, eu já sabia que se tratava de Daniel, o guitarrista. E mais ao fundo da sala, olhando para nossa direção com um sorriso divertido nos lábios estava o baixista, Elliot.

- Então você é o herói. – Ele diz para mim, ainda sorrindo. Dou de ombros sem dizer uma só palavra. Sentia-me intimidado. E nem era por conta do ambiente confortável, muito semelhante a um lar de verdade. De paredes azuis e sofás fofos. Cheio de pequenas coisinhas pessoais por aqui ou por ali. O que me intimidava mesmo era estar tão perto da Asleep. Os caras da banda de quem eu era fã até no meu mundo de sonhos.

Elliot franze as sobrancelhas louras escuras. – Ele não é muito falador, é?

Archer sorri abertamente, e minha mente faz aquela coisa de parar de funcionar outra vez. Ele vinha tendo um excelente humor desde que nos distanciamos da Cidade Central e viajamos até estarmos quase no limite do muro que ocultava-nos do que quer que houvesse atrás dali.A partir do ponto em que estávamos, os carros voadores iam ficando escassos, os arranha-céus menos visíveis. Árvores verdes, realmente verdes, como eu imagino que árvores deveriam ser, faziam súbitos aparecimentos, balançando suas folhas com os ventos contrários. Havia animais escondidos sob as folhagens e flores enfeitando todos os lugares possíveis.

É como se estivéssemos em outro mundo.

Juro que até o céu é menos cinza e doentio por ali.

O olhar de Archer para mim me faz voltar ao lugar onde nos encontramos; uma fortaleza no meio do paraíso visual. – Ele só está intimidado.

Lanço-lhe um olhar irritado, apertando os lábios. – Não estou. – Minto. Olho para Elliot e engulo em seco antes de estender uma mão para ele. Quase torço para ele não apertá-la, mas ele é bem mais sociável do que Archer foi quando nos conhecemos. Segura minha mão, nós apertamos simultaneamente uma vez. – Sou Dave Senna. – Digo.

Elliot dedica um olhar significativo para Archer que é como se fosse um segredo. Não gosto nada disso. É como se estivesse falando sobre mim sem que eu possa tomar conhecimento. Vejo o sorriso de Elliot aumentar quando Archer desvia o olhar, parecendo envergonhado.

O baixista da Asleep se torna subitamente mais sério e o momento de diversão acaba. – Obrigado por salvá-lo, Dave. – ele diz. – Você sabe que isso te faz ameaçado, não é?

- Ouvi algo sobre isso.

Elliot assente e olha ao redor da fortaleza onde estamos. – Você está seguro aqui, Dave. Mas eu particularmente acho que nada é eterno. – olha para Archer. – Ele merece saber contra o quê realmente está lutando.

Archer assente. Olha para mim com pesar e pede silenciosamente, com resignados olhares cor verde acastanhado e amarelo, para que eu o acompanhe. Sei que há algo de ruim para acontecer. Sei que perderei um pouco de mim assim que acompanhá-lo. Sei que a falta de um sorriso naquele rosto que pareço ter conhecido desde sempre é um indicio. Mas não posso me segurar. Não posso me refrear realmente. E esqueço sobre todos os avisos em minha mente, sobre todo esse pudor, a metódica do meu mundo. Esqueço o meu mundo.

Quando Archer chama...

Eu vou.

...

Há um infinito cheio de pontos brilhantes piscando na tela a minha frente, embora eu não saiba o que é aquilo. Incontáveis árvores dançam suas folhas ao vento. Há água infinda, azul, com espuma, revolta. Carros que deslizam, correm no chão, muitos deles. Há animais de todos os tipos, de muitas cores e de variados tamanhos. Sobretudo, há aquelas pessoas. Aquelas pessoas estranhas que usam roupas de cores bonitas, que sorriem e beijam outras sem nenhum pudor. Quero tocá-las, quero sentir o gosto desse mundo estranho, quero senti-lo em minha pele e cegar meus olhos com aquela abundância de cores.

Mas isso me horroriza.

Horroriza-me principalmente porque nunca vi tal coisa. Mas há mais. Há muito mais. O sentimento de repulsa me toma, mas é por conta da maneira como eu fui criado para achar isso errado. Toda essa exposição, todo esse brilho... todo esse sentimento não é normal. Meu estômago embrulha porque sinto desejos obscuros de fazer parte disso. É errado. É errado, sussurra minha consciência. E eu sei disso. Estou enjoado com toda a cor e toda a alegria, com o que parece novo e, ao mesmo tempo, é antigo. De alguma forma.

Não posso. Não posso deixar de erguer minhas mãos para aquilo, deslizar meus dedos por aquela imagem, que se apaga, que se transforma em algo duro e sem vida, que me transforma em um ser de frustração. Tudo o que sobra daquele lugar estarrecedor são os números 2014 brilhando na tela escura.    

- Há 20 anos, um grupo de homens descobriu uma forma de domesticar a personalidade humana e acostumá-la a seguir estímulos propositalmente escolhidos. Ao contrário de tudo que se pesquisava dessa natureza e com fins parecidos, essa fórmula era somente isso: uma fórmula. Todos pensavam que se alguma vez essa dominação em massa fosse ocorrer seria através de implantes, chips ou até lobotomia.

Archer parou por um momento, tomando ar profundamente em seus pulmões. Caminhou perdido em sua cabeça. Concentrado, sem olhar para qualquer lugar realmente e mesmo assim ainda de olhos abertos. Seus dedos corriam livremente pelos objetos esquecidos naquela sala, pressionando uma vez ou outra botões os quais eu nem sequer imaginava para o que servia. Vagava... isso mesmo, vagava através da sala. Suavemente como se estivesse tratando de não assustar um bichinho que não se via muito por ai. Percebi que o bichinho era eu. Notava-se isso em meus olhos grandes demais para caber perfeitamente em meu rosto, meus lábios sem cor, em minha pele pálida, nas juntas brancas de minhas mãos que se apertavam ao que quer que eu encontrasse pela frente. Afastava-me dele porque me parecia certo fazê-lo. Porque em minha mente havia sussurros de acusação, dizendo que era mentira o que ele dizia. Era tudo mentira. Estava tudo errado. Tudo doente. Como ele todo era. Um câncer em estado avançado, que investia, comendo-me por dentro, sem causar dor. Mas ele estava lá. Estava dentro de mim.

- Os primeiros testes foram feitos por um psicólogo que conhecia o projeto. A cobaia foi um homem que havia perdido toda a família em um acidente a pouco tempo, portanto não tinha ninguém por ele. Sua mente se rebelou quanto a fórmula de persuasão mental e recusou o estímulo, distorcendo os efeitos. No fim ele acabou não sem personalidade ou atenuado como o projeto visava, mas adquirindo uma única e fixa individualidade. As anotações do psicólogo dizem que para proteger a sua própria identidade mental, o Paciente I criara uma faceta escura, contrária a tudo, moldada pela dor e perda, o Paciente I matou dois guardas e um dos médicos do grupo. Quando o notaram... – O suspiro de Archer foi rápido nessa parte da história, quase dolorido. A voz, no entanto, era aço. – Paciente I tinha um garfo comum nas mãos e os olhos fixos na porta do quarto onde fora trancafiado para os testes. Os restos mortais dos três homens se encontravam como enfeites macabros para os dentes do talher. Eles o executaram não muito depois.

A bile que havia me assaltado já nos eventos iniciais da história horrenda se tornou maior e mais insistente. Meu estômago revirava-se, revirava-se e revirava-se. A imagem descrita tinha tomado forma facilmente sob meus olhos. Contorci-me inteiro, minha garganta começou a se contrair. – Há um banheiro um pouco atrás de você – disse Archer. Eu corri quando a frase me chegou e procurei desesperadamente pelo vaso sanitário. Derramei os restos da exposição à história toda ali. Um pouco depois, dei descarga, vendo quando eles foram embora definitivamente. Ainda estava passando mal, mas me arrastei até a pia e procurei por uma escova de dente. Não precisei fazê-lo por muito tempo, o objeto que procurava foi empurrado dentro do meu punho. Depois de fazer o ritual de colocar-a-pasta-esfregar-os-dentes-enxaguar-cuspir, repeti mais algumas vezes. Archer me esperava paciente e observador. Meus olhos só se ergueram um pouquinho até o espelho, mas desviei-os logo. Eu parecia horrível.

Iria pedir para Archer parar com a narração medonha, mas ele não me deu nenhuma escapatória. Eu iria ouvir. Eu tinha de ouvir. – Mais três cobaias foram utilizadas no projeto, todas com reações diferentes do resultado esperado. Não vou descrevê-los para você, mas mantenha em mente que cada um foi pior que o anterior. Os homens do grupo já estavam frustrados com os avanços, quase desistentes quando o psicólogo responsável sugeriu um método diferente: que a fórmula fosse testada em uma mente precoce, em formação, mais suscetível aos estímulos. Foi assim que O Protótipo nasceu. O Protótipo era o resultado da fórmula e dos estímulos simulados em outras cobaias, tudo isso feito em uma criança de 2 anos. Sem formação, sem defesas, com a identidade ainda em processo de desenvolvimento, O Protótipo cresceu conhecendo uma só realidade e programado psicóloga e mentalmente para ser apenas o que o grupo queria. O Protótipo foi o primeiro cidadão da sociedade de 2034.

Talvez alguns tenham o privilégio de estar sempre certos de quem foi, de quem é e de quem será. Talvez alguns tenham sido criados por si mesmos, com a intervenção necessária e só isso. Com um pouco de estimulo natural. Com uma mãe, um pai e, ocasionalmente, um irmão. Com a imagem da família para procurar em si mesmo. Talvez possam ouvir seus próprios sons, ver suas próprias imagens, procurar por seus próprios gostos e desgostos. Talvez possam ler o que querem e vestir o que desejam vestir. Talvez seus desejos não sejam tão obscuros, e se forem, talvez tenham o poder em suas mãos para desfrutá-lo com direito á suas próprias consequências. Quem sabe quantas coisas podem fazer? Quem sabe quantos sonhos são podem realizar? Quem sabe quantas coisas tem o privilégio de desperdiçar? Poder e não poder. Escolher. Gostar. Desgostar. Viver e morrer.

Veja bem, se ainda não entendeu. Vou repeti-lo: meu nome é Dave Senna. Nunca tive nenhuma mãe ou pai. Fui criado no mundo da repreensão. Literalmente moldado para ser o que meu mundo quer. Sou proibido de ser e não ser. Sou proibido de ouvir e de ler. Sou proibido de vestir, de usar, sou proibido de abusar. Sou proibido de pensar. Não, eu não posso reclamar. Fui criado assim. Sem defeito de fábrica, nada há para devolver, não há ninguém a quem reclamar. O único céu que conheci tem cor de fumaça, como se o meu mundo sempre estivesse queimando. Eternamente soltando suas cinzas no ar. Não conheço a naturalidade, apenas coisas artificiais. O verde no meu mundo é artificial, o gosto, o cheiro, a cor, a liberdade, a dor e o amor. Aliás, que amor? Não há amor. Há gestos frios e obrigatórios no lugar dele. Não me perguntem como sei, só sei. O contrario de tudo que me foi ensinado é errado. Parece-me doente, desnecessário, diabólico.

Sempre desconfiei que algo em mim era diferente. Não, não, não diferente, errado. Sim, sou um protótipo perfeito do meu mundo. Sou perfeito em minha imperfeição. E, quem, quem, nesse universo de meio termo, de meio gosto, de meio cheiro, poderia desconfiar? Ainda sou um ser deste mundo. Ainda sou um protótipo desse projeto disfuncional.

Deus, o que eu sou? Quem eu sou? Sou alguma coisa? – Você não faz parte disso, Dave. – Diz Archer. Está parado próximo a mim, mas não próximo o bastante para tocar. Entretanto eu não o faria se pudesse. Porque é errado fazê-lo. Garotos não tocam garotos. Garotos não sentem coisas por outros garotos. É errado. Celsius disse isso.

- Como você pode saber? – Pergunto numa voz torpe. Sei que ele não pode. Sei que ele não faz parte disso. Desde o primeiro momento que o vi, que o ouvi, que comecei a dormir com sua voz e a sonhar com ele, eu soube. Se fosse mais sincero diria que foi exatamente por isso que eu o salvei, embora toda a minha mente diga que isso foi um erro. Pareço estar perdido em um devaneio dos piores, onde o universo mudou de forma e girou ao contrário. Não acho que tenha realmente entendido tudo que essas coisas reveladas significam.

Archer está falando novamente. Eu o vejo e mesmo assim não o vejo. É ele, os olhos multicoloridos intensos, que me mantém com os pés no real, no presente. Embora por alguns segundos eu me perca em minha mente. Dentro dela. – Estamos começando um novo tempo, Dave. Todos aqueles jovens, toda aquela massa crescente de gente indo ao show da Asleep, desobedecendo àquilo que lhes foi infligido... é uma revolução. Eles ouvem através da música a verdade, e de alguma forma, diabos! De alguma forma eles estão atendendo ao chamado. Eles estão acordando para si mesmos. – Os olhos dele olham para mim. Olham, olham, olham e perfuram minha alma. Um pensamento fugaz corre por minha mente em rebelião, pergunto-me se ao estar embalando meu sono todas essas noites, Archer não me acordou ao invés disso. – Ouça-me, Dave. Depois que aquele grupo de homens conseguiu criar O Protótipo, houve um desequilíbrio na história. Todos os homens e médicos responsáveis pelo projeto foram mortos em uma explosão. Exceto um.

- O psicólogo. – adivinhei.

Archer assentiu. – Sim. Esse homem, desde então, evoluiu a fórmula e os estímulos, e conseguiu implantá-las como método educacional e terapêutico. Não muito tempo depois, o padrão infantil mudou. Houve, é claro, muita especulação e murmúrio ao longo dos anos. Mas a regressão é uma coisa sutil. Em pouco tempo o modelo humanístico foi mudando e as crianças de ontem viraram os adultos de amanhã e consequente o molde da sociedade mundial de hoje. Até a mente, já adulta, aceitou mais facilmente os estímulos, afinal, não havia mais nenhuma pressão. Esse foi o ponto que no qual ninguém nunca antes pensou: a degradação foi natural. Com o mundo em estado tão passivo, não foi nenhuma surpresa que alguém tomasse o comando.

A bile se formou em meu estômago novamente, mas eu estava bem alem disso. Com as coisas mudando tão rapidamente, eu tinha que controlar o foco de minha mente. Eu tinha passado de um garoto comum em um mundo incomum para fruto do projeto de uma mente louca em algumas horas. Não é uma coisa que te deixe muito saudável, ou sã. E agora descobria o porquê a voz, o toque e o olhar de Celsius estavam sempre tão presente em todos os lugares. – O psicólogo é Celsius, não é? – perguntei para Archer. Sabendo qual seria sua resposta antes mesmo dele me responder.

- Sim, - ele passou as mãos pelos braços, como se espantando um arrepio de medo ou horror, não saberia dizer qual. No entanto, eu duvidava muito que fosse a primeiro. Archer era uma daquelas raras pessoas que não tem medo de nada. Perguntei-me quanto do mal existente em meu mundo ele já havia visto. – E ele não parou por ai, você deve saber. – Virou-se para voltar até onde começamos a conversa, eu o segui. Chegando até o que parecia ser um painel de controle, mexeu em alguns botões com os dedos ágeis e a tela grande onde tinha visto aquelas coisas que eu agora sabia pertencer a outra Era, – diferente e mais natural porque as pessoas sentiam, amavam e pensavam naturalmente. Por si mesmas. Celsius as fez destruir seu próprio lar. – se acendeu em imagens.

Eram pessoas mortas.

Consegui reprimir o grito antes de ele ultrapassar meus lábios, mas deles ainda escaparam um gemido estrangulado. As pessoas frias e um pouco azuis estavam deitadas em fileiras perfeitas. Ligadas por fios que terminavam dentro de seus couros cabeludos. Eram homens, mulheres e havia, sim, havia crianças ali. Algumas tinham marcas de violência diretamente desenhadas na pele, outras eram como bonecos de cera; intocados e sem máculas. O lugar parecia ser um laboratório ou um necrotério com equipamentos médicos. Reconheci alguns, a maioria mediam ondas cerebrais, havia medidores cardíacos e instrumentos cirúrgicos. – O que é isso? – sussurrei.

- Celsius está tentando unir as mentes humanas.

- Mas isso é impossível! – exclamei horrorizado. Meus olhos não conseguiam desviar daquele crime sendo retratado de modo tão real naquela tela. Mesmo que minha mente tivesse sido moldada por esse homem, eu não conseguia entender suas ações. Havia, sim, aquele distanciamento frio porque todos ali estavam mortos, mas ainda me afetava. Ainda me trazia arrepios a pele, bile à garganta e lágrimas aos olhos. Será que eu iria me transformar nisso algum dia?

Olhei para Archer buscando uma resposta. Seus olhos encontraram os meus assim que eu os procurei. Não foi normal o entendimento que vi naqueles tons esverdeados, mas não questionei. Parei de fazê-lo algum tempo. Eu queria – precisava – saber se estava para me tornar aquilo. Se o mal em minha mente iria sobrepor o vermelho humano em meu sangue. Se eu estaria roubando a vida das pessoas por puro capricho. Você sabe, as vezes há esses momentos silenciosos de palavras e sentimentos não ditos. Daqueles do tipo que você não percebe estar lá, mesmo que isso não signifique que não esteja. Foi assim que aconteceu quando Archer e eu trocamos olhares. Eu queria poder saber quem eu sou, pensei, eu queria poder ter crescido de forma normal. Queria poder ser dono da minha própria mente. Queria ser bom. Então eu me daria a você. Vi bem o momento em que Archer arregalou os olhos bonitos, como se soubesse exatamente o que eu tinha pensado. O momento se quebrou e eu desviei meus olhos chorosos.

- Não há humanidade em Celsius, Dave. Você não é assim. – Ele disse depois de um tempo em silêncio.

Mudei de assunto porque eu sabia que aquilo não era verdade. – É por isso que Celsius te quer morto, porque você sabe demais. Mas a questão aqui é: como você sabe de tudo isso?

Ao invés de responder minha pergunta, Archer se aproximou de mim até que seu rosto estava espelhando o meu. Suas mãos eram grandes e quentes quando seguraram ambos os lados de meu rosto. Fez-me encarar bem no fundo de seus olhos, onde dizem que fica a alma. – Você não é assim, Dave, e você não vai se tornar o que Celsius é. Nunca.

Segurei seus pulsos, tentando tirar suas mãos de meu rosto porque aquilo me perturbava. Porque meu coração estava batendo rápido e forte demais. E porque eu gostava muito daquilo. Archer não facilitou a retirada das suas mãos de meu rosto e eu desviei o olhar tentando refrear um pouco minha vontade súbita de lamber seus lábios. De lambê-lo inteiro. – Como você sabe de tudo isso, Archer?

O rosto dele apareceu em meu campo de visão outra vez, e ele me obrigou a encará-lo e lutar contra a vontade de fazer coisas a ele. Coisas que eu não deveria querer fazer. Coisas que eu não deveria querer fazer nem com mulheres. Mas eu o queria. – Você é bom, Dave. Seu rosto, sua fala, suas ações, suas reações são todas inocentes, boas. Você não tem nenhum vestígio de maldade no seu coração. Eu não vou deixar ninguém tirar isso de você. Nunca. – E repetiu aquela pequena palavrinha novamente. Foi o estopim. Empurrei-o para longe de mim e me deixei chorar de raiva, de medo e de dor. Segurei a maciez de algumas mechas do meu cabelo em meus dedos, puxando-as para afastar o sentimento louco de cotradição entre o que eu queria e o que eu deveria fazer. E eu queria Archer como nunca quis nada antes na minha vida. Eu nunca nem quis algo na minha vida. Mas eu o queria. E eu não poderia tê-lo porque ele era livre e eu estava preso a uma mente quebrada, manipulada por um maníaco poderoso.          

 - Você não pode me prometer isso! – eu gritei segurando os lados da minha cabeça, apertando para afastar os pensamentos errados. – Você não pode saber nada disso! Você nem me conhece. Você não faz parte desse mundo, não consegue entender!

Fez-se um silêncio cheio de respirações pesadas, a minha e a dele. Passamos os minutos assim, ele olhando para mim e eu chorando e tentando evitar o olhar dele. Acho que foi por isso que ele disse o que disse daquele jeito, cruelmente e sem nenhum aviso.

- Sabe por que eu sei tanto? Porque Celsius é meu irmão, Dave. Eu conheço esse mundo mais do que você imagina. – Disse entre dentes, como se lhe custasse muito confessar. Como se eu fosse julgá-lo ou já o tivesse condenado. Eu definitivamente encarei-o agora. Seus olhos, as portas de sua alma, me disseram coisas que eu não consegui entender, até que ele as disse em voz alta. – Quem você acha que foi O Protótipo?

...

Eu nunca gostei de chorar. Era desnecessário e desordenado. Fazia tudo para evitar fazê-lo, mesmo quando era um garotinho. Acho que era mais por mim do que por qualquer outra coisa. Prender o choro, para mim, era o mesmo que prender o desespero. Eu apertava meus olhos e evocava minhas lágrimas para de volta para dentro de mim e isso parecia fazer com que a histeria crescente também desse um tempo longe. Quando podia, evitava chorar até sozinho. Quando não podia, chorava o mínimo possível.

Naquele dia, depois da revelação de Archer, por algum motivo não consegui parar as lágrimas escorrendo por meus olhos. Não consegui refreá-las nem quando estava em sua presença e tampouco quando fugi cegamente pelos corredores e portas daquele complexo. Tentei parar de imaginar um pequeno garotinho de cabelos mogno e olhos bonitos, um pequeno e indefeso garotinho, sendo submetido aos métodos cruéis de um homem louco. Foi meio que inútil porque mesmo com os olhos abertos, eu ainda conseguia vê-lo em minha mente. Os grandes olhos chorosos pedindo por uma ajuda que nunca veio. Onde estavam seus malditos pais? Tive raiva da mulher loura e do homem taciturno que conheci não faz nem um dia. Tive um ódio profundo daquelas pessoas, só que senti ser injusto. Pensando bem, lembrando aqueles traços e fazendo uma leve comparação com os de Archer, eu duvidava muito que eles fossem realmente seus progenitores. Dei de ombros mentalmente, não me surpreenderia se aquelas pessoas fosse apenas outra obra de Celsius. Pais falsos em um mundo igualmente de mentira? Que apropriado.

Meus pés tinham vida própria enquanto caminhavam, descobrindo mais e mais caminhos no que parecia ser um enorme complexo. Eu não me importei, continuei perdido profundamente em minha mente. Eu era uma confusão ambulante agora, dividido em pequenos e impossíveis pedaços. Dentro dos meus pensamentos, vi claramente o perfil duro do rosto de Archer. Explicava-me o porquê de Celsius ter tomado uma medida tão drástica e claramente não muito planejada. – Eu nunca esperei que ele abrisse fogo bem no meio de um show da Asleep, com tantas pessoas assim. Ainda mais depois de anunciarmos em todas as áreas escuras da net que iríamos fazer um show especial nesta quarta-feira, para revelar um novo projeto. Pensei um pouco e cheguei a conclusão que, na verdade, foi por essa razão que Celsius quis me matar rapidamente. Ele sabe o que irei revelar. E ele sabe que depois disso toda a história vai entrar em um curso de mudança.

- Ele está com medo da revolução. – conclui em voz alta. Archer não concordou ou discordou. Seus olhos estavam baixos em direção as suas mãos, as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados como se ele tivesse acabado de comer algo azedo. 

Archer suspirou. – De todo jeito, nós estamos indo para um ponto sem volta. Na quarta-feira, Celsius será destronado... ou eu estarei morto.

Ou eu estarei morto. Essa frase, essa revelação. Tinha sido isso a me perturbar, a coisa que me fez fugir para longe dele, com passadas longas e decididas. A coisa que tinha vencido a minha barreira autoimposta e derramar tantas lágrimas que fez com que meus olhos se tingissem de vermelho. O pensamento de nunca mais vê-lo, ou de vê-lo, só que frio, sem vida... me aterrorizava como nada mais o faria. Sei... sei que era irracional. Por favor, eu o conhecia há o quê? Um pouco mais de um dia?

Você tem dormido ao som da voz dele há anos. Sussurrou uma parte recém-descoberta da minha mente. E não deixava de ser uma verdade, mas meio distorcida. Acho que isso tinha a ver com o fato de eu querê-lo. A parte rebelde de mim procurava explicações para justificar esse meu desejo desmedido, para fazê-lo menos atípico de mim mesmo. Sorri um pouco os lábios. Eu estava formando-me afinal, pensei. Eu estava encontrando a mim mesmo no meio do caminho.

Quando meus olhos voltaram a se focar em meu caminho, percebi que estava muito longe do complexo. Aquela parte intocada, um lembrete do mundo de 2014, se exibia lindamente para mim. Árvores eram tão verdes como algumas das variações dos olhos de Archer. O ar era mais limpo, menos carregado, menos metálico. Um cheiro doce flutuava pelo ar. E bem ao longe eu ouvia um som que nunca antes havia escutado. Melodioso, porém agudo. Acho que tinha ouvido um eco muito frágil desse som distinto uma vez em programas de computador. Eles chamam os animais que preferem esses sons típicos de pássaros. Eu não saberia nomeá-los se os visse.

- Eles são bem exibicionistas em suas canções, mas se tratam realmente de criaturas tímidas. – disse alguém as minhas costas. Virei assustado a procura da fonte daquele som. As criaturas chamadas pássaros se calaram subitamente, como se soubessem de algo que eu nem sonhava ter conhecimento. – Do seu lado, minha criança. – Instruiu-me a voz masculina.

Fiz o que ele me disse por que me pareceu certo fazê-lo. Porque sua voz soava tão quente, tão suave, tão afetuosa quanto a de um pai. Acariciou meus ouvidos de criança que nunca tinha tido nenhum contato com uma figura paterna. Girei meu corpo para encontrar um holograma de um homem desconhecido até certo ponto. Alto, robusto, no auge dos 40 ou 50 anos, que saberia? Vestia-se de negro e branco, como eu mesmo as vezes o fazia. Seu rosto era atraente, aristocrático; sobrancelhas grossas arqueadas, cílios grossos, bochechas altas e um nariz reto sem imperfeição alguma. Seus cabelos eram de um tom assombroso de prata e seus olhos, Deus! Eu parecia estar encarando os olhos de Archer.

- Celsius. – eu sussurrei. Sabendo que minha certeza se baseava apenas naquele detalhe. Aqueles olhos que eu sabia ser intrínsecos de uma linhagem.

O sorriso dele foi como o bater das asas de uma borboleta, suave, sem pressa, quase delicado. Ele tinha a mesma qualidade hipnótica que o irmão. – Dave, minha criança. O que você está fazendo nesse lugar de mentiras?

- Archer me trouxe. – eu disse quase mecanicamente. Sentia que devia dar a ele respostas porque ele era, de alguma forma, a coisa certa dentro do que me ensinaram a fazer. – Eu quis vir. – completei. E essa foi apenas minha parte rebelde falando.

Celsius me olhou com reprovação, do jeito exato que se olha para uma criança peralta. – Archer é doente e você é perfeito. Seu lugar não é aqui. Volte para o seu mundo, para a sua casa, para o que você conhece. Antes disso, me conte onde essas pessoas erradas se escondem.

Houve um estalo em minha mente. A persuasão de Celsius ocultou-o, entretanto. Eu sentia que tinha de dizer isso a ele, que era o certo a se fazer. Mas a questão é que eu não queria dizer nada. – Eu não sei. – menti.

Celsius estreitou os olhos. – Dave, Archer não faz parte do nosso mundo. Ele é imperfeito, uma aberração.

Balancei a cabeça, negando violentamente. Mesmo que o poder de Celsius sob sua criação – eu – fosse um golpe forte. O “eu” que queria, que sonhava e vivia, era maior e mais forte do que isso. – Você está errado. Archer não é nada disso. Ele é saudável como uma pessoa deve ser.

Os olhos de Celsius não eram mais os de Archer. Não se pareciam em nada. Tinham perdido o calor, a fraternidade, a alma. O que olhava para mim era o homem louco que aterrorizaria meus sonhos mesmo depois de muitos, muitos anos. – Porque você acha que eu o joguei fora? Aquele menino está estragado. Ele é imperfeito, diferente, desigual. Não serve nem para morrer.

- Isso não é verdade. – eu disse baixo, negando torpemente aquele absurdo. A verdade é que Celsius, o verdadeiro Celsius e não a máscara bonita, me causava calafrios. Eu queria correr para longe, mesmo que fosse só um holograma aquele que conversava comigo. Eu esperava nunca estar cara a cara com esse homem. -  Seu irmão é um homem bom.

Celsius encarou-me nos olhos e um brilho de repulsa se instalou nos tons frios de suas pupilas, a boca se contorceu com o que parecia ser nojo. -  Isso é errado, Dave. Essa... coisa que você sente é anormal, você sabe. Não macule sua perfeição com algo tão baixo.

Senti raiva de Celsius, do modo como ele se referia a sentimentos. E não houve nada, nada dentro de mim me dizendo que odiar Celsius era errado. Dei rédeas a minha imaginação, aos meus sonhos. Neles, Celsius pagava por cada pecado, por cada atrocidade que tinha cometido. Sobretudo por ter tocado em Archer. Nos meus desejos obscuros, eu tirava de Celsius o que ele tirou de mim: um mundo. – E é certo o que você faz? Matar pessoas, tirar delas o direito de escolha? Diga-me se isso não te faz um monstro pior do que aquele que ama puramente?

- Você não o conheceu aquele mundo. – ele rosnou. – Você nunca viu como eles estavam destruindo por capricho tudo o que restava de bom. Tudo! Fiz o que fiz porque sabia que iríamos acabar de um modo pior do que isso onde vivemos. Você não conheceu aquela violência, aquele egoísmo. Você não conheceu aquela destruição. Se você tivesse vivido com aquelas pessoas, - cuspiu a palavra na minha cara, tão lívido que estava. – você teria compreendido que o querer e o poder são um preço muito barato a pagar quando o livre arbítrio é a fonte da destruição do mundo. Archer não sabe e nunca vai entender, mas eu o protegi! Eu o protegi do único jeito que sabia. Julgue-me por isso! Chame-me de monstro! Mas nenhum de vocês, crianças, conheceu o passado.

Poderia ter sido um bom homem no passado, eu lamentei. Seu amor era, de fato, verdadeiro, contudo deturpado. Suas ideias tinham algo de certo, como a revolução de Archer, mas seus métodos eram todos doentes. Irrevogavelmente perturbados. Ele tinha esse olhar louco nos olhos. E eu soube, bem ali, que Celsius só iria desistir de seus planos macabros quando a morte chegasse para ele. Lamentei um pouco mais porque ele ainda era o irmão de Archer e ainda sim seria uma perda.

- Eu construí um mundo perfeito, minha criança, - Celsius continuou. – Com a total segurança, sem violência, sem dor, sem pecados. Metódico, sim. Mas um mundo de paz. Eu dei-te o seu mundo, Dave. Vamos lutar por ele. Archer não sabe o que está fazendo. Você é sensato, você sabe como tudo funciona. Diga-me onde esses irresponsáveis estão escondidos. Nós daremos um jeito nele, traremos o equilíbrio de volta. - olhou-me esperançoso. O contraste entre a prata de seu cabelo o as variações de verde em seus olhos era impressionante. Havia um toque de mediterrâneo em sua pele, mas mesmo assim e por isso, a aparência dele era algo que eu não  havia visto. – E então eu vou te concertar.

A aquela altura, talvez ainda restasse alguma confusão em mim. Mas parecia que falar com o responsável pelo aprisionamento do meu livre arbítrio foi o que o libertou. Eu sorri condescendente. Sorri porque sabia que no final Celsius iria perder. Sorri porque eu sabia que iríamos pagar um preço alto e quem sabe se eu estaria sorrindo assim depois disso? Sorri porque eu finalmente havia conseguido reunir todos os caquinhos de minha psique e personalidade, todo o meu querer e o poder que tinha. Eu os havia remontado. E quando a imagem se exibiu para mim, eu vi a imagem de um garoto familiar com cachinhos caindo em sua testa, lábios salientes e olhos estranhos. Uma covinha se insinuou em suas bochechas quando ele sorriu para mim. Eu me vi ali. E, naquele momento, eu soube que havia me encontrado.

- Eu vou ter de recusar a sua proposta, Celsius. – eu disse suavemente. O passarinho que permanecera calado durante toda a nossa conversação, recomeçou sua canção tímida e belamente. Era só um assobio, só uma notinha. Mas eu sabia que era ele. – Sabe porque? Porque eu não preciso de concerto, meu caro. Eu sou perfeito por ser imperfeito do jeito que eu sou.       

Virei as costas para o holograma, porque, afinal, que mal ele poderia me fazer? Caminhei de volta para o complexo tentando entender como Celsius conseguiu me alcançar assim que coloquei os pés fora da fortaleza. Eu sabia que ele não podia entrar lá, ou ele já teria feito-o a muito tempo. Notei bobamente que o curativo em meu braço ainda estava no mesmo lugar de antes. Uma ideia se acendeu em minha mente e eu arranquei o troço e joguei-o para longe de mim.

Bastardo inteligente.

...

Quando cheguei até os limites habitados da fortaleza, percebi que havia passado tempo demais lá fora. Alguém me esperava, no entanto. O homem alto estava de costas para mim, seus ombros grandes e largos, poderosos como homens fortes são. As costas estavam tensas, percebi nos músculos tensionados. Ele não vestia mais a camisa preta de quando saímos do hospital, estava agora com calças de pijama e uma regata branca. Por isso tive todo o acesso a cor da sua pele. Aquele tom moreno com toque mediterrâneo que eu sabia ser de família. Recusei-me a descer o olhar abaixo da barra de sua camisa, mas eu tinha certeza de que ele era bonito ali também. Quando me aproximei dele, percebi que ele soube. Eu tinha passos bastante leves, uma coisa de se viver em orfanatos; você aprende a ser silencioso, então eu fiz força para não pensar em quantas coisas ruins ele teria passado para aprender a reconhecer o som de passos suaves no chão. Você não tem ideia com quais tipos de situações pode aprender a se acostumar. Ele correu as mãos grandes pelos cabelos cor de mogno e se virou.

Sua expressão de alívio ao ver-me era de cortar o coração. – Olá. – eu disse com uma voz pequena.

- Oi. – disse ele. Daquele seu jeito típico; rouco e arrastado. Soltava o ar pelos lábios entreabertos, como se tivesse prendido-o por todo esse tempo. – Não faça mais isso comigo, Dave. – suplicou. Os tons variantes de seus olhos estavam perturbados e quebrados. Como se eu tivesse lhe tirado uma parte vital e recolocado-a nele com um sorriso travesso.

Meus olhos se arregalaram com o seu tom e com o que isso implicava. Olhei para minhas mãos me sentindo culpado e estúpido por ter fugido. Dei de ombros. – Eu só fui até lá fora tomar um pouco de ar.

Fez-se silêncio. Depois de um minuto ou dois, olhei para cima porque não aguentei toda aquela falta de barulho. Archer estava com os fechados. Suas sobrancelhas tão franzidas que quis desmanchar o vinco com meus dedos. Só que o importante não era isso, mas como ele parecia desarmado dentro da sua própria pele. – Qual o problema, Archer? – perguntei preocupado.

Abriu os olhos e eles brilharam mais verdes do que nunca. Suplicavam-me entendimento. – Eu acho que eu nunca vou entender completamente isso. – ele sussurrou tão baixo que eu tive de me esforçar para ouvir. – Elliot disse que você havia saído. Ele viu você pelas câmeras, lá no pátio com Celsius. Eles me seguraram aqui e me prometeram que aquele Celsius era de mentira. E eu queria... eu queria te tirar dali. Você entende, Dave? Eu não quero você perto dele. Nunca. -  A urgência na voz dele era tão intensa, junto com o olhar, que eu me peguei assentindo sem nem pensar. – Eu fiquei aqui te esperando, rezando para que não te acontecesse nada. Perdi as contas de quantas vezes corri até lá. De quantas vezes me impediram. Eu só queria ir até você, só queria ter a certeza de que você estava bem. – Andou até mim e voltou dois passos. Passou as mãos nos cabelos e riu amargamente. – O que é uma merda, porque se supõem que você me doou sangue e não a porra de um coração. Mas acho que eu nunca senti tanto medo de perder uma coisa quanto eu senti de perder você. Então você vai me perdoar pela audácia, mas eu preciso te sentir de alguma maneira. Eu preciso te segurar. Deixe-me te abraçar, Dave. Por favor.

Conhecendo-me como agora conheço-me, não foi uma surpresa que meus próprios pés andassem depressa até Archer. Por vontade própria. Porque queria fazê-lo.

Ele me recebeu de braços abertos e eu me aconcheguei em um calor que eu não queria pensar o porquê soava tão bom. Eu era tão pequeno e frágil perto dele que ele tomou-me por completo. O calor dele era o meu calor. Seus braços, minha prisão. Estive cativo e gostei de estar. Perdi-me e sorri porque sabia que foi de propósito. Era aquele sentimento flutuando no ar e enchendo-me de pensamentos e coisas boas. Como algo tão bom poderia ser errado? Para mim não parecia, não agora. Era puro. Era bom.

Archer suspirou em meu cabelo, como depois de uma longa caminhada até em casa. Ele me apertou tanto que doeu, mas eu não me importei. Eu me sentia feliz.

Aquele sentimento, aquele garoto.

Eram meus.

Eu escolhi assim.


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Notas finais do capítulo

Alguma coisa a dizer?