Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 9
Capítulo VI: Talentos




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Ainda não havia amanhecido. As brumas gélidas da madrugada voltavam ao asilo do oceano, conduzindo os navios pesqueiros ao horizonte escuro anuviado. Adna já havia acordado, pois o sono lhe fugia naquela noite. Conforto não faltava: lençóis podiam aquecê-la enquanto travesseiros entre suas pernas e braços amaciariam o tato, mas seu corpo preferia ficar jogado contra a janela. Observava as luzes da cidade se apagarem e os garis recolherem os restos que os cidadãos deixavam para trás.

Ela pensava no ontem. Engraçado como os problemas de uma vida inteira conseguiam ressurgir numa noite mal dormida. Talvez elas tivessem sido criadas para isso. Preencher a mente com sombras do passado, fantasmas de um futuro perdido.

Tudo seria diferente se ele ainda estivesse aqui, protegendo seu lar, seu lugar para onde voltar. Infelizmente, o pai da jovem jamais voltaria: a 1ª Grande Guerra o sepultara numa agonia odiosa. A chacina dos campos de batalha não ceifara sua vida, isso seria muito mais piedoso que a alternativa: a tenebrosa Peste Escarlate.

Criada durante a guerra por cientistas de Cael, apoiados da tecnologia beluniana, os exércitos da Santa Luz utilizaram um flagelo que até poucos séculos não havia cura ou mesmo tratamentos. A toxina que banhava as espadas templárias antes dos combates portava a capacidade de comprometer o sistema mágico-energético dos seres que possuíam magia interior. Destruía sua habilidade de controlar a mana, arruinando até o mais poderoso mago tocado ao menos uma vez pela pestilência.

De todas as formas abomináveis de lutar, o oriente escolheu a mais covarde. A magia de um feiticeiro é parte de seu próprio “eu”. Perdê-la é como destruir sua identidade. Tire as asas de um pássaro e ele nada mais será além de um animal preso a uma natureza que não lhe pertence.

O poderoso comandante Theodor Elvellon não sabia pelo que tinha sido atingido quando voltara vitorioso da Batalha de Caelópolis: suas feridas atormentavam-no por semanas, seu corpo perdia o vigor, o arcano não mais atendia a seus chamados. Estava infectado. Os dias passavam longos e cansativos para os que haviam retornado e já não mais pertenciam de corpo e alma à terra da magia. Soldados, nobres, Elvellons: agora todos iguais. A doença contaminava sem preconceitos. Nada mais importava, fossem títulos de nobreza, condecorações de guerra ou mesmo heranças sanguíneas.

Numa noite qualquer, depois que Niandra, sua esposa, viajou até Titânia pela milésima vez em busca de mais auxílios para os pesquisadores da cura, os demônios finalmente venceram. Brincavam com sussurros constantes há décadas nos ouvidos de Theodor, tocando a última sonata do desespero: o suicídio.

Lembranças amaldiçoadas... Adna só pensava no vazio que sentia em seu peito ao tentar inutilmente relembrar das poucas memórias que tinha de seu pai. Ele deixara a fada bastarda ainda criança e a melancolia de sua mãe como herança maldita. “Não. Se controle. Você é mais forte que isso”. Ela se recusava entre lágrimas a terminar prostrada numa cama, doente pela tristeza como o destino fizera com sua mãe. Melhor ouvir os sussurros do vento que os da morte.

Após se arrumar, ela desceu as escadarias, esgueirando-se o mais sorrateiramente que conseguia. Tateava as paredes para não tropeçar na escuridão absoluta, a fim de comer um pedaço de torta na cozinha da hospedaria. Nada melhor para animar um espírito cansado que açúcar, muito açúcar. Mesmo para a aguçada visão feérica, os corrimãos pareciam inócuos, mas ainda assim suas mãos os tangiam.

Sucedida em sua missão, a fada decidiu sair, espairecer. Ir até a Praia Central talvez, pois ficava bem próxima de onde estava. Afinal, não existe nada mais tedioso e desolador que ficar num quarto de hotel trancada com mágoas sem poder fazer absolutamente nada.

Enquanto caminhava, pôde aproveitar o silêncio da madrugada, que provavelmente não duraria muito, afinal, estava em Lunara. Sem tantas pessoas pelas ruas era possível até ouvir os espíritos do ar, que em sua brincadeira eterna com o oceano, sopravam juntos brisas gentis, amigáveis.

O som doce do zéfiro confundia-se com seus pensamentos. Poderia estar em qualquer lugar dos ricos e abundantes domínios pertencentes aos Elvellon, ou quem sabe do mundo aliado, mas não: estava em Lunara, sozinha e praticamente sem dinheiro. O mais estranho é que ainda que acostumada aos luxos que apenas o ouro podia comprar, gostava do que essa cidade tinha a oferecer. Mesmo com os poucos recursos disponíveis.

Aparentemente nem todo tipo de felicidade poderia ser comprada apenas com um punhado de moedas como pensava. Bastava apenas estar rodeada de pessoas com qualidades lunarianas: festivas, despreocupadas e gentis. A felicidade faria questão de ir atrás de você dessa maneira, sem pestanejar. A cidade da lua tinha lá os seus encantos.

Talvez Adna não tivesse tudo sob controle como pensou que teria quando elas ainda estavam em Valerian. Entretanto, se passasse mais algum tempo aqui tudo voltaria ao normal e, logo, poderiam voltar aos seus devidos lugares. Lumot e Lítia as esperavam.

Já sentindo a areia sob os pés, Adna despiu-se de seu vestido e mergulhou na água, que apesar de fria, sentia-se muito agradável depois de passar o dia no clima quente e úmido tropical. Ficar a sós consigo mesma, apenas a Lua como testemunha.

Não pensava em nada. Nenhum espectro maligno conseguia penetrar as barreiras que a deusa lunar provia em seus raios timidamente majestosos. O tempo simplesmente passava e, após vinte minutos, enquanto aproveitava o banho, flutuando ou quem sabe apenas olhando para o céu a contar estrelas, surge uma voz familiar:

‒ Olá! Está tudo bem?

Não tinha as orelhas longas de elfo, mas conseguiu ouvir, embora sua audição estivesse reprimida pela tensão superficial da água. A ruiva que havia lhe falado sobre a Competição de Dança. Ela acenava da praia com o rosto cativante já conhecido. Curiosa para saber o porquê de a humana estar aqui uma hora dessas, Adna nadou de volta para a costa, apressada.

‒ Desculpe-me a intromissão. Acordei e a ouvi saindo. Pensei que poderia estar com problemas. Meu nome é Alice, e o seu?

‒ Adna, prazer. Está tudo ótimo, não consegui dormir bem e decidi vir aqui.

‒ Realmente, essa praia é um ótimo local para pensar. Claro, exceto durante as altas temporadas. Logo estará lotada.

Sentando-se em um local próximo às dunas que separavam a praia da cidade, Adna secou o corpo e a cabeleira com um feitiço simples de aquecimento. Enquanto se vestia, reparou em Alice e suas roupas.

Mesmo feitas de simples couro branco aligatoriano, elas conseguiam ser muito elegantes e se ajustavam na medida, pois trajavam aquele corpo esbelto perfeitamente, realçando seios, cintura e pernas.

Cada ponto, cada fibra e botão estavam tão bem colocados que não parecia um trabalho que se valeria a pena pagar para uma roupa casual, mas um serviço digno para vestidos de gala. A moça com certeza não seria uma amadora quando o assunto era aparência. Pois mesmo para o olhar crítico da realeza das fadas, Adna não conseguiu ver um único defeito nas vestimentas. Muito menos nas joias de ametista e esmeralda que realçavam seus olhos verdes-claros.

‒ Adna, eu notei de relance que quando chegou à hospedaria do meu pai que você não trouxe nenhuma mala. Então provavelmente não tem a roupa especial da festa de hoje, né?

‒ Roupa especial? Eu não sabia que precisava disso!

‒ Durante o Festival Oceânico nós costumamos usar as “Luni Vestem”, um tipo único de traje. É uma missão quase impossível, mas se você quiser, podemos ir ao centro da cidade e procurar um, cortesia minha!

‒ Muito obrigada Alice!

As duas conversaram por bastante tempo. Adna contou à sua nova amiga muitas histórias sobre sua terra natal, mas sempre sendo cuidadosa para não revelar sua origem nobre, enquanto Alice lhe informava a respeito das tradições do reino.

Ela narrava sobre o Festival Oceânico. Ele representava muito mais que uma simples festa, mas um agradecimento aos espíritos do Mar e da Lua, Talassar e Pandora. Res à lenda que ambos foram os responsáveis por trazer a fartura e segurança do litoral pandoriano durante uma época de escassez e guerras, permitindo que os povos nativos pudessem sobreviver e prosperar. Isso numa época distante, em que os próprios deuses guerreavam uns contra os outros pela hegemonia mundial. Assim, os devotos de cada entidade se enfrentavam em combates sangrentos, guiados por suas respectivas divindades.

Pandora utilizava sua magia gravitacional para perturbar as águas dos oceanos, provocando tsunamis e voragens para destruir os reinos inimigos. Talassar convocava brumas tempestuosas para evitar noites de luar, isolando o astro de seus adoradores imersos em temporais.

A batalha divina causava agonia tanto para a terra quanto para os povos que nela habitavam. Porém, num dia diferente dos demais, Pandora cruzou os céus repentinamente durante o dia para fortalecer seus fiéis em batalha, bloqueando o sol e toda sua majestade. Talassar se apaixonou pela beldade lunar que a muito havia esquecido as feições. Naquele momento, a Lua e o Mar se conectavam pela eternidade num laço de amor puro.

Para celebrar a data da união espiritual, os alto-sacerdotes de cada povo que habitavam o litoral jogaram lírios lúnicos ao mar. O Banho das Mil Flores foi o marco que iniciou a nova era que trouxe paz aos mortais e aos espíritos, sendo repetido todos os anos no festival.

Alice afirmava com orgulho. Não se tratava de um ritual de raízes valerianas, como os Dias de Luxúria. Mas uma tradição herdada dos poucos povos locais que não foram exterminados pelo império das fadas, durante a colonização há mais de seis mil anos.

Muitos costumes e sabedorias haviam sido assimilados junto dos aborígenes durante a era colonialista, acabando por gerar divergências entre o modo de pensar nimphoniano e magicaliano. Os primeiros, em contato com a natureza virgem e os espíritos puros do sul, perceberam que não deveriam cometer os mesmos erros da metrópole, lutando por sua independência.

Séculos se passaram e muito sangue foi derramado para restaurar o equilíbrio perdido. Os pandorianos guerrearam novamente por sua liberdade. A meta se tornou criar uma civilização em que a fraternidade fosse priorizada. Uma nação que pudesse afirmar ser um local seguro para todas as raças e crenças tornou-se o objetivo. Não apenas para Pandora, mas também para diversos outros países, como na terra nínfica de Loreléia, na gélido sul de Terralva e no reino centáurico de Equarian.

Nimphos já abrigava milhões de habitantes quando os exploradores do norte chegaram. Eles decidiram que muitas das raças “inferiores” não mereciam o território. Exterminaram, traíram e exploraram.

Nimphos sofreu, mas sobreviveu e conseguiu transmitir sua cultura. Concebia-se o novo modo de ser e pensar que se tornaria o estilo nimphoniano. A índole que valorizava as liberdades individuais, a fraternidade entre os povos. O amor de todas as formas e a tentativa de alcançar o prazer e a felicidade absoluta. Não adiantava buscar ordem e perfeição em detrimento da verdadeira liberdade. Os espíritos haviam dado uma segunda chance para os viventes corrigirem os erros de seus ancestrais e ela foi bem aproveitada.

Quando se deram conta, o Sol já estava nascendo, acalentando o mundo enevoado que perdia suas sombras para os raios do grande astro-rei. Hora de ir antes que a cidade ficasse movimentada demais: Alice contou que se havia considerado ontem como um dia caótico na orla, hoje deveria imaginar isso por toda a cidade.


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