Last Letters escrita por AnyBnight


Capítulo 8
VIII: O Hóspede - Parte II


Notas iniciais do capítulo

Eis a última das cartas. Talvez. Encontrei mais dos zumbis interessantes no jogo, pode ser que eu escreve sobre eles. Talvez.



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Tiveram início, então, meus seis meses restantes.

Passei apenas mais dois dias vivendo na "superfície" e em nenhum deles tive notícias da senhora Monika, somente Maria vinha com minha comida e desaparecia tal como veio. No terceiro dia quem veio foi aquele homem.

– Você não é bem vindo em minha casa.
– Eu estou aqui pela senhora Monika, o senhor não tem direito algum sobre mim.
– Você é apenas um órfão imundo. Não há ninguém por você, não há ninguém que se lembre ou que se lembrará de você.

Após isso ele apertou um de meus braços e tentou me arrastar pra fora do quarto. Eu resisti, nós praticamente lutamos naquele quarto minúsculo e no fim algo me nocauteou. Hoje tenho quase certeza de que foi Maria, a cúmplice.

Eu acordei graças à pancadas que sentia na cabeça; percebi que era arrastado pelos pés por uma escadaria escura qual nunca havia visto antes. Eu não tinha força para me debater e sentia minha cabeça sangrar; sabe-se lá por quantos frios degraus fui arrastado. Grunhia a cada pancada, quieto esperando por meu destino.

No final, quando acabaram as escadas, fui arrastado por um corredor direto de ladrilhos frios e irregulares; as pedras feriam minhas costas e braços deixando minha camisa ainda mais esfarrapada.

Demorei algum tempo para perceber que era o doutor Drevis quem me arrastara e me trouxera para algum tipo de consultório, laboratório ou sei lá, do chão eu não pude ver bem a decoração do cômodo.

Foi naquele estado, ainda tonto e ferido, que tive minha primeira de muitas sessões de tortura.

Fui perfurado por agulhas inúmeras vezes e cada uma delas me injetava uma substância diferente. A primeira me paralisou os músculos, impedindo que eu me debatesse, após isso meu corpo foi tomado por diversas sensações e dores. Calor e frio súbitos, dores insuportáveis, veias se fechando, hemorragias....Se houvesse algo em meu estômago eu provavelmente já teria o posto pra fora. Minha cabeça parecia explodir a cada nova agulhada; meu coração parava por minutos a fio e eu mal respirava; era terrível. Eu não entendia o propósito de tudo aquilo, mas me recusava a me dar por vencido. Não me permitia gritar ou chorar, não daria esse gosto à ele. Mordia meu lábio inferior com tanta força que sangrava.

Depois disso fui derrubado do leito no chão, paralisado por causa da última droga e novamente arrastado. Assim conheci minha nova hospedaria.

Eu passei a viver no inferno do subsolo, trocando de aposento com constância. Passava alguns dias em um lugar e no dia seguinte já era levado à uma ala diferente já que temiam que eu induzisse os demais infelizes que ali viviam começar um motim. Graças à isso eu aprendi a memorizar cada caminho daquela masmorra bem como uma maneira de escapar de cada dormitório. Em contrapartida, eu passava semanas sem receber comida, tendo que lamber a umidade das paredes para não acabar morrendo desidratado. Isso não era pior do que ser obrigado a consumir meus próprios dejetos. Mas graças à isso eu sobrevivia.

Naquele lugar, eu presenciei não só a minha tortura como a de tantos outros. Abortos, mutilações, transplantes de membros e órgãos sem sentido algum. Com quê objetivo aquele demônio implantava uma cabeça morta à uma pessoa viva?

Mas algo que me intrigava durante minhas espionagens era o fascínio dele para com pessoas "bonitas". Os olhos dele brilhavam de excitação quando tratava de, principalmente, garotas da minha idade. À princípio pensei que ele fosse algum pedófilo mas esta suposição não durou muito. Ele conservava os corpos como objetos, se não eles inteiros seus pedaços empalhados ou conservados em frascos com algum líquido.

Em três meses eu o vi realizar tantas mutilações quanto injeções que eu tomava diariamente. Começava a temer pro Aya. Claro, se aquele demônio tinha fascínio por mutilar ou entubar pessoas, o que me garantiria que ele não faria o mesmo à própria filha?

Não havia um dia em que eu não pensasse em Aya Drevis e temesse por sua vida.

Então metade de meu tempo de vida restante se esgotava, minhas vestes jaziam mofadas e em trapos e mesmo que o fungo ameaçasse consumir minha pele, eu precisava daqueles pedaços de pano para me aquecer. No início do quarto mês fui chamado ao consultório. Não foi como se eu tivesse aceitado bem; na verdade Maria me pôs grilhões nos pulsos e tornozelos e os puxava com uma corrente. Antes disso me injetou algo que me drenou as forças para reagir. No fim, pude apenas me deixar guiar por ela pelo caminho escuro andando de pés descalços no ladrilho frio.

E, novamente, eu estava na câmara de tortura.

"Sabe, garoto" começou ele, ainda de costas para mim. Calçava as luvas. "Eu tenho uma vasta coleção de globos oculares, mas recentemente percebi que me falta uma certa cor. Pode adivinhar qual é?" e logo depois se virou. Mesmo vestindo uma máscara cirúrgica eu pude saber que ele sorria sádico. Era a mesma expressão que tinha sempre que dissecava alguém.

A esta altura eu estava deitado na maca, ainda com os grilhões. Não fui amarrado como de costume, talvez por já estar fraco e imóvel. Ele veio até mim sem dizer mais nada, apenas soltava uma gargalhada insana baixa e abafada pela máscara. Estremeci por completo quando ele tocou meu queixo e ergueu meu rosto. Encarei-o com ódio e cuspi em seu rosto. Ele franziu o cenho de desgosto e me deu um tapa na boca que quase me arrancou um dente. Quase.

"Esta será a última vez que vejo esse seu olhar desprezível. Maria, me traga um bisturi."

 

Ele fez questão de me cortar as pálpebras, diferente de como fazia com todos os outros de quem roubava os olhos. Mas comparado ao que passei antes, aquele pequeno corte não me doeu nada, sequer grunhi. Meu aparente excesso de confiança o irritava, ouvi-o rangir os dentes várias vezes.

Finalmente ele tocou meu globo ocular esquerdo e o puxou de uma vez com força até a veia que o ligava ao resto de mim se romper. Foi um grito que não consegui evitar proferir, e me ouvindo gritar, ele repetiu aquela gargalhada nojenta até perder o fôlego. Trinquei os dentes para vê-lo contemplar meu olho em sua mão ensanguentada.

"Olhe pra você agora. É mais um pedaço de carne podre sem nenhuma beleza como todos os outros! Onde foi parar aquele olhar forte e confiante? Onde!? Hahaha, veja só. Veja como você é imponente agora!" e esticou o olho bem para a frente do meu rosto.

Naquele momento eu tive um surto de adrenalina. Meu próprio corpo implorava para que colocasse um fim naquilo tudo. Ergui ambos os braços de uma vez num movimento brusco e golpeei o ante braço do demônio com a parte mais dura dos grilhões. Foi a vez dele gritar.
 

Eu só não esperava que ele atingisse a lamparina pendurada sobre o leito. Na exata hora que tentei sair da maca aquilo caiu sobre parte do meu rosto. O óleo e o fogo da lamparina me consumiam a carne da face esquerda e graças à nova dor eu me derrubei prostrado no chão rolando para apagar o fogo antes que o meu cabelo servisse como palha e o atiçasse mais.

Enquanto rolava recebi um chute forte na costela que me fez parar e cuspir sangue uma vez. "Seu moleque estúpido, veja o que me fez fazer!" Ele me virou para ele ainda com o pé, deu uma forte pisada em minha barriga e esfregou sua mão úmida em meu rosto. Confesso que aquilo me aliviou um pouco a queimadura, mas não deixou de ser uma péssima sensação.

Pelo visto o susto do meu ataque o fez apertar meu olho roubado e o estourar em sua mão. Não pude deixar de rir uma vez. Enfurecido, ele me chutou e pisou repetidas vezes e apesar da dor eu só fazia rir da cara dele.

– Nem tudo sai de acordo com seus planos, doutor. - Dirigia a palavra à ele pela primeira vez em três meses. Fazia questão de desprezá-lo em cada soar maltratado de minha voz.


"Acalme-se, doutor" Maria interviu apenas com palavras "ainda pode pegar o outro olho."
"Não seja estúpida, Maria! Por acaso já viu algum olho sem par em minha coleção!? Isso é um sacrilégio para um colecionador como eu!"
"S-sim, entendo. Perdoe minha ignorância, doutor. Mas o que fazer com ele agora?"
"Leve-o pra junto daquela outra imperfeita."

Mais um vez fui guiado por Maria, praticamente arrastado pois não conseguia me mover depois da surra. Meu corpo dolorido só piorava a cada passo que era forçado a dar e pra completar o caminho fora muito maior que antes. Certamente eu estava sendo levado para a última câmara do porão.

Paramos num corredor onde haviam apenas duas portas. Maria me fez entrar na segunda, então supus que a tal "imperfeita" estivesse na outra. De todas as celas que tive até aquele dia, esta, a última, foi a única da qual nunca consegui fugir. O novo quarto era um pouco mais confortável que o resto de meus cárceres; este tinha uma cama com um colchão inteiro e uma estante com livros velhos com páginas faltando. Entretenimento, ao menos. Mesmo com a boa cama eu não podia dormir, temia que ratos invadissem o buraco do meu rosto ainda desprotegido. Só a bandagem que improvisei com retalhos do lençol não me davam tanta segurança, não sei ao certo quanto tempo ficava acordado, naquele lugar o tempo parecia parado. Não existia dia nem noite.

Minha vizinha, Coron, era uma garotinha deveras irritante. Ela vivia dizendo que o doutor Drevis era alguém maravilhoso e que o amava como um pai. Ingênua e cabeça oca, por mais que eu contasse à ela sobre as atrocidades que passei e presenciei ela se recusava a acreditar em mim. Mas por algum motivo o doutor a mimava, ela tinha até um cãozinho e recebia comida a cada 4 dias, diferente de mim que me nutria apenas do cheiro da comida de Coron e do musgo das paredes. Aquela história de novo.


– Por que você nunca me fala seu nome? Seu chato!
– Não somos ninguém. Não merecemos um nome. Você deveria se desfazer do seu também.
– Não, não vou! Então vou te chamar de... Dio! É, você tem cara de Dio.

Dio. A senhora Drevis me chamava assim também, nunca entendi porque e nem esse lance que as mulheres tem de dizer "você tem cara de tal nome". Apesar de irritante, eu não ignorava Coron o tempo todo, precisava da voz dela para manter minha sanidade.

Nos dois meses e meio que fiquei ali trabalhei numa fuga. Fiz um buraco na parede atrás de minha estante mas nunca avancei muito nele. Ficava cada dia mais fraco e cavar as paredes à mãos nuas se tornou impossível depois de um tempo. Como será que Aya estava agora? Torcia para que ao menos estivesse viva.

De repente, minha porta fora aberta. Coron, de algum jeito, conseguiu as chaves de nossas celas. Aquilo revitalizou minhas esperanças de fugir e salvar Aya. Tentei pela última vez convencer Coron de que o doutor não era quem ela pensava e de novo ela não me ouviu, sequer aceitou fugir comigo.

"Fugir? Pra quê? Se eu ficar aqui o doutor vai vir me ver sempre! Não tenho nada pra fazer lá fora. Você é bonitinho mas é muito chato, Dio." foram as últimas palavras de Coron para mim antes de nos separarmos.

Eu só não esperava que os quase três meses isolado entre quatro paredes destruíssem meu mapa mental do inferno. Chegando à certo ponto, eu não consegui mais me localizar e nem fazia ideia de pra onde ir. De alguma forma eu deixei a cripta dos dormitórios e cheguei à uma espécie de laboratório com muitos tubos de vidro conservando corpos nus. Alguns deles foram meus conhecidos por um tempo, outros, era a primeira vez que via. Depois do salão de tubos cheguei à uma sala repleta de manequins. Outra vez, reconheci rostos.

Os manequins, de alguma forma, eram muito parecidos com os outros internos. Cheguei a tocar um e sua pele fria não parecia falsa. Aquele demônio estava transformando as pessoas em bonecos! Realmente não esperava por aquilo.

Adentrando mais ainda aquele lugar encontrei uma sala pequena comparada às outras mas muito limpa e organizada. Atentei primeiramente para a escrivaninha qual portava um caderno aberto e folhas soltas. Não entendia bem o que estava escrito, mas reconheci o nome de Aya em diversos trechos.

"Aya... Sem dúvida minha criação mais bela. Só mais um pouco e poderei eternizar sua beleza. Preciosa Aya..."

Senti-me enojado com aquelas palavras tortas. Aquele maldito transformaria a própria filha numa boneca ou coisa parecida. Eu não podia perder mais tempo, cada segundo que se passava representava mais perigo para Aya.

Ainda atordoado, demorei a notar o único tubo coberto do laboratório. E se ele já tivesse pego Aya? Puxei o pano sem hesitar. Não era Aya, mas...

– Senhora... Monika...?

O corpo da senhora Monika flutuava imersa em líquido dentro daquele tubo, e tinha um enorme ferimento no peito. Então eu entendi porque ela nunca voltou. Ela descobriu a real natureza do marido.

O sangue que ainda me restava fervia, eu não achava possível odiar ainda mais aquele homem mas havia o feito.

– Eu vou salvar Aya por você, senhora Monika!

E saí correndo de lá, correndo por horas à fio, perdido entre corredores e câmaras macabras. Talvez tenha passado dias correndo, não tenho certeza, mas enfim cheguei à um salão que me lembrava uma igreja com seus bancos longos enfileirados e uma mesa diante dele sobre um tablado.

Mal havia aberto a porta que me levou àquele salão senti pontadas em minhas costas. Caí na hora, só tendo tempo para virar o rosto e ver Maria atrás de mim com facas entre os dedos. Maldita cúmplice...

Cansado e ferido, não pude me mover. Maria amarrou minhas mãos nas minhas costas, pegou-me por um dos pés e me arrastou pelo caminho qual vim até chegarmos à um outro laboratório, este decorado com muitos vasos de planta. Ele nos aguardava lá.

– Não vale mais a pena mantê-lo vivo, moleque. Seja útil uma última vez.

Maria me largou entre dois canteiros, foi até o doutor e lhe entregou algo. Vi ambos pondo algo nos ouvidos.

– Vamos ver quanto tempo alguém resiste ao som das mandrágoras.

Depois disso, Maria seguiu para os canteiros e pegou ambas as plantas ao mesmo tempo pelas folhas. Um som horrivelmente alto e agudo me perfurou os tímpanos na mesma hora, me deixando com uma violenta hemorragia nos canais auditivos. Gritei quase tão alto quanto as plantas, quis tapar os ouvidos mas estava amarrado. Era o meu fim.

– Até nunca, hóspede indesejado.

Li esta última frase em seus lábios antes de perder todos os sentidos.

No final eu não pude fazer nada por Aya ou pela senhora Drevis. Não pude lutar contra o demônio. Era apenas um hóspede à mercê de seu macabro anfitrião.


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Notas finais do capítulo

Foi trabalhoso escrever esta carta, espero que tenham gostado dela e de todas as anteriores.

Any agradece à todos que leram, aos que acompanham desde o começo e aos que chegaram agora.