Last Letters escrita por AnyBnight


Capítulo 5
V: Os Olhos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/330233/chapter/5

"Eu não me lembro de quase nada. Um nome ou um passado, tudo me parece apenas ser um breu. Onde, mesmo antes de ser cegada, já não enxergava.

Estava tão escuro que meus olhos tornaram-se inúteis. Sei apenas que fugia de algo naquela escuridão, e enganada por meus olhos, cheguei àquele lugar.

Um enorme jardim e mais adiante uma mansão. Respirava aliviada achando que enfim havia encontrado um refugio. Bati na porta com o resto da força que o cansaço não me tomara, sem receber resposta. Adormeci na soleira fria e úmida daquela entrada.

Quando a manhã me brindava com sua luz, a porta em que estava acostada foi aberta; por pouco não caí para dentro da casa. Quem apareceu-me foi um senhor, não chegava a ser um idoso, na casa dos 30 talvez?

Estava prestes a me levantar e pedir abrigo quando ele mesmo me pediu para entrar. Dr. Drevis, como me foi apresentado, estava fascinado ao falar comigo. Me foi dado um desjejum enquanto conversávamos. Acho que contei a ele sobre como cheguei à sua porta, não lembro em detalhes da conversa, só sei que ele não parava de mirar meus olhos.

"Você tem olhos lindos... Tão lindos que eu não consigo parar de olhar para eles..."

Aquele elogio me fez muito feliz, mas... Eu devia ter percebido antes o tom malicioso em que ele foi proferido...

Sei que pouco depois, eu estava morando na mansão. Não necessariamente nela, mas sim em algum lugar estranho do subsolo. Quase não haviam luzes lá. Eu costumava ficar isolada numa cela. Dormia, comia e passava os poucos dias de "hospedagem" ali. Não via nada, não via ninguém. Me sentia cegar.

Conseguia apenas ouvir vozes vindas de cima, pela rachadura no teto de minha cela. Ouvia a voz do doutor e de mais alguém... Uma menina da minha idade talvez, não, mais jovem que eu. Ele tinha um tom de voz tão gentil com ela... Lembrava-me vagamente dele falando antes sobre ter uma filha. "A preciosa Aya".

Bom... Aquilo não tinha nada a ver comigo.

"O que achou da boneca nova, Aya?"

"É linda, papai! Gosto de olhos azuis, mas olhos verdes são lindos também!"

"Ora ora, então da próxima vez, papai lhe dará uma boneca de olhos azuis. Os olhos azuis mais lindos que você já viu..."

Passei tanto tempo naquele lugar escuro que nem me lembrava mais da cor de meus olhos...

Poucas horas depois de ouvir aquela conversa, o doutor veio até minha cela. Me cumprimentou com o tom gentil de sempre e disse que precisava de mim, mas não disse para quê, logo me guiando até seu laboratório. Uma das poucas coisas que recordo sobre o caminho até lá era de um corredor decorado com grandes tubos de vidro em sua maioria cobertos por panos escuros. Tive a impressão de que um dos panos caiu ao passarmos pela última porta, mas não tive tempo de ver o que aquilo escondida pois a porta foi fechada assim que passamos.

O doutor me indicou as macas vazias daquela sala quase sem iluminação. Por que tudo tem que ser tão escuro? Só conseguia ver mesmo eram os potes de vidro que refletiam um pouco da luz fraca que pendulava no teto. O escuro me assustava, então me sentei no leito que ficava bem embaixo da lâmpada.

"Dr. Drevis, quando terminarmos aqui poderia me deixar ir lá fora um pouco? Faz tempo que meus olhos não veem um ambiente iluminado..." pedi inocente. Recebi um breve riso nasal como resposta daquele que estava de costas para mim, procurando algo em armários.

Logo a porta pela qual viemos foi aberta, vindo por ela uma mulher que não conhecia. O doutor a chamou de Maria, e a apresentou como sua assistente. Pelo pouco tempo em que a porta ficou aberta, tive o vislumbre de algo grande flutuando no tubo descoberto, mas apenas isso, não consegui identificar a forma. Maria não falou comigo nenhuma vez, limitou-se a seguir as ordens do doutor quando este a mandou me ajeitar no leito. Fui presa à maca pelos pulsos e tornozelos. Um medo que estranhamente nunca havia sentido antes começava a me tomar. Era um medo diferente do medo do escuro... Era muito pior.

"Bem, vamos começar" ele se virou para mim, agora vestia uma máscara e luvas e tinha objetos metálicos em cada mão. "Olhos são fascinantes, não acha? São as partes humanas que mais gosto... Mas é tão trabalhoso coletá-los, afinal, precisam ser tirados enquanto vivos ou perdem sua beleza."

Antes que eu pudesse gritar ou questionar, mais uma amarra me foi colocada, agora em minha boca. A tortura começou em seguida.

Primeiro meu olho direto. Ele forçou a abertura de minhas pálpebras com uma coisa parecida com uma tesoura. Eu gritava em murmúrios devido à mordaça; Aquilo doía de mais. Senti-me lacrimejar sangue. Depois, com as mãos mesmo ele tocou meu globo ocular e puxou rápida e cuidadosamente até o nervo que o ligava ao meu corpo ficasse esticado e, em seguida, foi cortado.

Eu não sou capaz de descrever tamanha dor sentida naquele momento. E o mesmo foi feito ao meu olho esquerdo.

Logo eu não via mais nada, estava em meio a verdadeira escuridão sentindo apenas o sangue quente escorrer por minha face e a ardência nas áreas presas de quando tentei me debater. Implorava por morrer ali mesmo.

"Devo entubar o resto dela, doutor?"

"Não, ela ainda está viva embora eu só quisesse mesmo seus olhos...Ponha-a de volta na cela, pode ser útil depois."

Me recusei a levantar, então a maca foi levada comigo de volta. Mesmo ele tendo dito que me usaria novamente, nunca o fez. Eu apodreci naquela cela com alguma infecção corroendo-me por dentro graças aos espaços vazios deixados por meus olhos, e o doutor nunca mais voltou para ver - quer dizer, eu não ouvia passos de ninguém se aproximando dali então supus que havia sido esquecida.

Um fim totalmente escuro para os olhos que apenas buscavam luz."


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!