O Caminho de Sandren - Livro 1 (Caminhada) escrita por Aviatorman


Capítulo 5
O ladrão de Caendlia




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05

Quando os primeiros raios de sol conseguiram atravessar a fina neblina da manhã, Laertes, Midler e Alenthor já haviam coberto mais da metade do caminho entre a casa dos Duharee e as forjas onde o jovem ferreiro trabalhava, na parte alta da cidade de Caendlia. Os longos campos cultivados das fazendas já haviam ficado para trás, salpicados de um frio orvalho brilhante, assim como as últimas árvores que ainda permaneciam de pé, demarcando o que outrora fora os limites da grande Floresta de Parlly, antes dos machados dos homens. Apenas alguns pequenos arbustos margeavam agora a Estrada do Poente, em meio a um extenso descampado que avançava até se encontrar com as margens do Lorun. Os três conversavam animadamente durante a caminhada, como bons e despreocupados amigos, com os raros momentos de formalidade a virem ocasionalmente do discípulo. Midler escutava com atenção, enquanto Laertes e Alenthor conversavam sobre Tallamir, o amigo de que seu mentor lhe falara no dia anterior. Ele podia perceber facilmente o orgulho que os dois sentiam em poder considerar o grande ferreiro como um bom amigo e tentava imaginar como deveria ser este homem, capaz de causar tanta admiração em alguém como Laertes. Ouvia sobre a confecção de lâminas e versos, armaduras e livros, criados com igual cuidado e proficiência. Quando não pôde mais conter sua curiosidade, surpreendeu-se com a simplicidade de suas próprias palavras, inadequadas para um discípulo se dirigir ao seu mentor, mas estas estavam contagiadas pela alegria com que eles conversavam.

- Quando começo a acreditar que estão a descrever um poeta ou mesmo um professor, surpreendo-me ao perceber que é de um ferreiro que falam. E se seu malho for apenas metade do que dizem, as peças que nascem de suas forjas devem ser dignas de um rei! De quantos homens é feito este Tallamir?

Laertes olhou para seu discípulo com a alegria de um jovem a brilhar nos olhos. Em nada lembrava agora o ancião de que Midler se compadecera na noite anterior.

- De um pouco de cada, meu jovem, um pouco de cada. E ele possui apenas as melhores qualidades de cada um deles. Meu grande amigo é um dos homens mais fascinantes que já conheci, uma contradição após a outra, com tantas surpresas quanto virtudes – parou de falar por um momento, olhando para a estrada à frente, avaliando a distância que ainda os separava da cidade que já avistavam com facilidade – Se me permitirem, ainda temos tempo para uma longa e bela estória e tenho certeza que ela fará a estrada passar mais rapidamente sob nossos pés.

Os dois jovens acenaram afirmativamente com a cabeça, ao que Laertes inspirou profundamente e passou a caminhar um pouco mais devagar, visivelmente satisfeito em ter a oportunidade de lhes falar sobre o amigo que iriam encontrar.

- Para o olhar injusto e ignorante dos homens civilizados, Tallamir nasceu como um simplório bárbaro, nas terras geladas do longínquo norte, ou as Terras Selvagens, como estes mesmos homens chamam toda a região acima da Muralha do Mundo, onde a noite do inverno se faz presente por muitos meses e as neves são eternas. Há mais de vinte anos, ao se afastar demasiadamente de onde seu povo vivia, ultrapassando estas grandes montanhas a seguir com obstinação a trilha de alguns animais que caçava, Tallamir acabou por se deparar com mais do que buscava ou desejava encontrar, com um grande grupo de gananciosos mercadores de escravos, que viram no rapaz uma lucrativa aquisição, se posso chamar assim. Ele sempre fora um grande guerreiro, muito forte e capaz, mesmo quando jovem, e poucos teriam resistido metade do tempo que ele o fez, armado tão precariamente e contra tantos, mas acabou sendo inevitavelmente capturado. Poucas semanas depois, Tallamir foi então vendido por um bom punhado de moedas, mas nenhum valor poderia compensar os cinco homens que os mercadores perderam para conseguir dominá-lo. Sem dúvida, seus captores ficaram muito felizes e aliviados em se verem livres dele e não duvido que o teriam feito por muitas moedas a menos. Apesar de ser difícil de acreditar para aqueles que não o conhecem, a maior força de Tallamir não está em seus largos braços, mas em sua mente, em sua capacidade inata de perceber as oportunidades que melhor podem lhe servir e no seu amor pelo ofício de artífice, que aprendeu desde muito cedo com seu pai, Tallaros, o grande chefe de seu clã.

Um pequeno pássaro de plumagem castanha pousou no topo do cajado de Laertes e torceu a cabeça em rápidos movimentos curtos, olhando para a face do velho mentor. Quando ele não lhe deu atenção, começou a trinar seguidamente, até que Laetes ergueu os olhos inquisidores. O pássaro voltou a torcer a cabeça e soltou um curto assobio ao que, com uma risada contida, o mentor levou a mão a um dos bolsos e tirou de lá algumas sementes secas, pequenas como grãos de trigo, e as deixou se espalhar em sua palma voltada para cima. O pássaro pousou em seus dedos e começou a comer, levantando a cabeça toda vez que Laertes falava, como se para também escutar a história que contava.

– Silêncio agora, pequenino – o pássaro passou a comer em respeitoso silêncio – Onde estava? Ah! – limpou a garganta antes de continuar – Ao invés de procurar pela morte certa tentando escapar de seu novo mestre, um generoso e sábio Tuabi, senhor de uma das grandes caravanas dos desertos de Khytallo chamado Sywandi, Tallamir resolveu ficar e sufocar seu desejo de liberdade, não por covardia, pois duvido que sequer conheça o real significado desta palavra, mas porque havia encontrado algo que aprisionou seu coração, com amarras que nem mesmo ele poderia romper. Ele havia ficado fascinado pela beleza que encontrou nos artefatos que os homens do deserto guardavam em suas tendas, coletados em todos os lugares de Andhara, até mesmo onde poucos homens civilizados ousaram ir até hoje. Lanças, espadas e escudos, forjados com belas formas que ele nunca vira. Elmos e armaduras trançadas e moldadas como nenhuma das hábeis mãos de seu povo seria capaz. Suas próprias armas, que ele mesmo havia tirado com orgulho do malho ainda quente em sua infância, lhe pareceram rudimentares e toscas, diante das maravilhas que viu. Ele então decidiu que iria dominar aqueles segredos, que não descansaria até que peças ainda mais belas nascessem por suas mãos. Esforçou-se para aprender rapidamente a língua de seus captores e a lidar com o dinheiro, que lhe era um estranho conceito, ainda mais em todas as muitas formas e valores com que a caravana trabalhava. Para desvendar estes segredos, teve a sorte de encontrar um grande professor em um velho escravo, Padul, o tradutor de Sywandi, que veio a se tornar seu maior amigo naqueles longos e difíceis anos. Entre todos na caravana, apenas ele compreendia o idioma natal de Tallamir e muitos de seus costumes, ajudando-o em todos os aspectos de sua nova vida. Acredito que ele também tenha estado para além da Muralha do Mundo quando ainda possuía sua juventude e liberdade, mas ambas já haviam se perdido há muito para ele e ele nunca dividiu estas memórias com ninguém, nem mesmo com seu novo amigo. Tallamir então prontamente se colocou a serviço da caravana, avaliando com rara precisão o valor das peças que seus mercadores compravam e vendiam, aumentando o lucro do Tuabi a cada viagem. Ele também passou a trabalhar arduamente na farta oficina que transportavam consigo, com o ferreiro khytallês Liwenan, o primeiro de muitos tutores que lhe ensinaram os segredos mais profundos das forjas de terras distantes. Com ele, aprendeu com afinco as técnicas de muitos dos povos com os quais a caravana fazia comércio. Com o passar dos anos, Tallamir ganhou o respeito e a confiança de Sywandi, de tal modo que ele se tornou o único escravo que não era vigiado ou usava amarras de nenhum tipo, nem mesmo durante seu sono.

– E ele nunca procurou fugir? Um homem que nasceu livre, sem cometer crime algum, não pode viver prisioneiro de outro por sua própria vontade, ainda mais um homem com um espírito indomável como mestre Tallamir.

Laertes virou-se para Midler, mas, para sua surpresa, a pergunta não havia sido feita por seu discípulo, que permanecia em silêncio, caminhando ao seu lado e atento ao que dizia, sem permitir que sua conhecida curiosidade e impaciência o interrompessem por mais tempo do que o velho mentor acreditava que seria possível. Laertes sabia que isto não era mérito apenas de uma boa e bem contada história, mas também de uma maturidade que não estava presente nos olhos de Midler até a noite anterior, o que em muito alegrava o velho mentor.

– Durante doze longos anos, – Laertes continuou, mais animado do que antes, respondendo a pergunta de Alenthor – Tallamir viajou ao lado de Sywandi por todas as estradas conhecidas e por outras que nem imagino, aprendendo novas técnicas com todos os povos que encontrou, até se tornar um mestre entre os mestres. Mas não foi isto que o manteve cativo por tanto tempo, mas sim um novo e grande amor que descobriu ao longo destas viagens – Laertes podia perceber os olhares sobre ele – Não, meus jovens, não foi o amor por uma mulher nem por uma única coisa, como imaginam, mas sim por aquilo que capturou seu coração no momento que seus olhos e ouvidos as conheceram, as línguas, lendas, letras e culturas das muitas regiões em que esteve com a caravana. A beleza da diversidade deste mundo o fascinou como nada mais fora capaz até então e ele se esforçou para tentar aprender cada nova língua e dialeto que encontrava. Ele descobriu um vazio dentro de si que nem mesmo imaginava existir. Seu próprio povo nunca possuíra uma linguagem escrita, nada além de poucas runas e desenhos. Eles não imortalizavam suas histórias e lendas, suas viagens e batalhas, que se perdiam ou se corrompiam com o passar do tempo e dos contadores, cujo número diminuía a cada geração. Assim, ele fez uma promessa solene a si mesmo, que, mesmo que seu povo não sobrevivesse às neves eternas de sua morada, seu legado não morreria com eles, suas conquistas não desapareceriam na escuridão da noite sem fim. Elas seriam lidas e conhecidas por todos, em todas as línguas que ele pudesse escrever, e eles não seriam mais considerados por nós, arrogantes civilizados, como incultos e estúpidos selvagens, mas como o belo e orgulhoso povo que realmente eram. Então, com a ajuda de Padul, Tallamir passou a escrever a história de seu povo, em todas as línguas que pôde, criando versos e lendas para preencher as lacunas que a memória dos mais velhos havia deixado em sua infância. Pelo que me disse, Alenthor, ele não deixou de escrever ou de procurar aprender novas línguas até o dia de hoje. E não creio que estarei vivo quando ele finalmente guardar sua pena ou se algum dia irá realmente acreditar que sua promessa estará cumprida – Laertes fez uma longa pausa para respirar e beber um pouco de água, olhando na direção do seu discípulo e acenando com a cabeça, como se permitindo que ele finalmente desse voz às dúvidas que guardava dentro de si.

– E como Tallamir se tornou um homem livre, meu mentor?

– Ah! Para mim, esta é a melhor parte desta bela história, – Laertes suspirou profundamente antes de prosseguir – Há muitos anos, quando você ainda era uma pequena criança, a caravana de Sywandi chegou a esta cidade e aqui, depois de caminhar para além das praças do grande mercado, Tallamir encontrou a oportunidade que aguardara por toda sua nova vida, a de aprender com diversos povos e trabalhar com tantos materiais diferentes quanto sua imaginação poderia conceber, sem ter de continuar trilhando as infindáveis estradas deste mundo, já que diplomacia e comércio são as razões desta cidade existir. Ele encontrou o vigor do leste e os mistérios do oeste, a beleza do norte e as excentricidades do sul, tudo o que parecia haver no mundo em um único mercado, em uma única cidade, e perguntou então ao mestre da caravana por qual valor ele o venderia, se algum outro senhor o quisesse comprar como seu ferreiro, para que ficasse em Caendlia quando partissem.

– Mas o comércio de escravos é proibido em Caendlia e toda Graeldar, mestre Laertes.

– Você vive há muitos anos nesta cidade, Alenthor, mas não a conhece ainda. As moedas que compram o direito sobre a vida de um homem também compram o silêncio e a indulgência de outros, como deve saber, mas isto não é feito sob a luz do sol ou à vista da guarda, o que não quer dizer que eles não saibam ou não lucrem com isto. Há mercados secretos sob os mercados que vê, como há motivos perversos para que permaneçam assim.

Laertes ficou calado por um momento, olhando para a cidade a frente. O pequeno pássaro voou da mão há muito vazia até o topo do cajado, quando o mentor passou a esfregar suavemente a curta barba, tentando lembrar-se de onde havia interrompido a narrativa.

– Ah, sim – pareceu despertar – Não foi uma pergunta fácil para Sywandi responder, O Tuabi aprendera a apreciar muito o trabalho de seu novo mestre ferreiro, pois Tallamir havia assumido todas as forjas da caravana desde a morte de Liwenan, poucos anos antes, tanto por sua competência quanto pelas muitas moedas a mais que haviam preenchido seus cofres desde então, sob o atento e preciso olhar do nortenho, para dispensá-lo por qualquer valor que lhe fosse oferecido. Acredito que o velho khytallês também tenha se afeiçoado demais a ele ao longo dos anos e, tentando prestigiar o grande patrimônio que o considerava, disse-lhe que seu valor seria igual ao de vinte novos escravos, para compensá-lo pela falta que faria. Sywandi sabia que ninguém pagaria tanto por um único homem, mesmo por alguém como Tallamir, mas o ferreiro pareceu não se surpreender e nada respondeu, não voltando a falar mais sobre esta questão, que acabou sendo esquecida por seu captor. Mais três anos de longas viagens se passaram, em que o ferreiro raramente era visto fora das forjas, com seu martelo sendo ouvido a ressoar por noites sem fim, até que Tallamir apresentou ao Tuabi um lindo bastão de ouro e prata, ainda maior que o grande ferreiro, ricamente adornado com jóias e escritas de muitas línguas, com longos fios de um metal brilhante a se cruzarem por todo seu comprimento, como as muitas estradas que eles já haviam percorrido juntos. Era realmente uma peça majestosa, digna de um imperador. Tallamir havia trabalhado arduamente nela durante todo este tempo, em seus momentos de descanso, fundindo sobras de materiais descartados pelos outros ferreiros e o que havia conseguido em diversas cidades, como fruto de seu trabalho a outros homens, quando não havia serviço para as forjas da caravana. Assim, depois de muito tempo e trabalho, sua mais bela obra estava finalmente terminada e ele a chamou de o Cetro Livre de Tallaros.

O pássaro voltou a se queixar de algo, mas o mentor não lhe deu atenção, apenas balançou o cajado para que ele partisse, mas a pequena ave permaneceu ali.

– Enquanto examinava o cetro, Sywandi podia facilmente avaliar o enorme esforço empenhado naquela peça, assim como seu grande valor, tal era sua perfeição e beleza, mas não conseguia entender o gesto do ferreiro. Foi então que Tallamir lhe disse: “Este não é um presente, ó maior entre os Tuabis de Khytallo, nem esta peça é sua por direito, pois nasceu de minhas mãos, sem que nenhuma de suas moedas se perdesse em sua criação, mas com ela quero ser o senhor de meu destino, quero comprar a minha liberdade, pelo preço que acertou comigo há três invernos, mestre das caravanas”. O velho senhor ficou muito surpreso com o que ouviu e jamais dispensaria por sua vontade os serviços de um homem como aquele, mas, apesar de seu desagrado com a atitude do ferreiro, Sywandi era um homem honrado e justo. Estava claro para ele que o valor daquele bastão em muito ultrapassava o alto preço por ele mesmo estipulado. Observou então longamente o homem culto e justo que estava a sua frente, lembrando em muito pouco o jovem selvagem e arisco que conhecera e aprendera a admirar, senhor de uma coragem e determinação que gostaria que seus próprios filhos possuíssem. Então, para surpresa de toda a caravana, deu uma grande gargalhada, como nunca o fizera antes e, com um brado de alegria, ordenou aos seus homens que muitas cabeças do numeroso rebanho que os acompanhava fossem abatidas, os barris de seu melhor vinho fossem abertos e uma grande festa fosse preparada, pois seu Tuabi estava muito feliz e queria comemorar. Pelo que vim a saber, foi uma festa tão bela e grandiosa quanto ele faria para um de seus próprios filhos, quando este partisse, senhor de sua própria caravana. Então, com pouco mais de trinta anos, dos quais metade deles vivera como um escravo, Tallamir conquistou sua liberdade e veio em suas largas passadas para a cidade a nossa frente.

– Mas como pode saber tão bem estes fatos, mestre Laertes, se mestre Tallamir é guardião de seus segredos tanto quanto uma montanha é de seus tesouros? – Alenthor estava sentindo-se arrebatado por aquela história. Já admirava o ferreiro pelo pouco que o conhecia, por seu caráter e perícia, mas agora sentia um orgulho que não conseguia conter por ter sido escolhido entre tantos como seu aprendiz.

– É muito comum o peregrino fazer uso de algumas das mesmas estradas em que os nômades caminham. Em minhas viagens, acabei por conhecer alguns dos comerciantes do grande deserto e suas histórias. Esta que lhes contei, ouvi do próprio Tuabi Aylan, filho mais velho e herdeiro da caravana do grande Tuabi Sywandi – Laertes ergueu a cabeça, olhando em frente – Ah, o que lhes disse? Aí está a grande cidade de Caendlia, mais cedo do que imaginavam, tenho certeza. Infelizmente, a boa comida e a hospitalidade de um querido irmão já ficaram muito para trás, juntamente com a estrada sob nossos pés, e a nossa frente está agora a morada de muitos diplomatas, comerciantes e outros trapaceiros – neste momento o pássaro que os acompanhara voou para longe, seguindo o aviso de Laertes – Mas há algo mais que quero lhes dizer antes de entrarmos neste lugar, onde devemos ter cuidado com o que e com quem falamos. Para este meu velho coração, Tallamir representa o quão nobre pode se tornar um homem que não poderia ter nascido mais longe de nossos rudes e equivocados conceitos de nobreza, de nossos ilustres salões e altivos palácios. Lembrem-se sempre, filhos de Sandren, que a verdadeira virtude não vem de um abastado berço e não é uma herança que se recebe, mas é algo que se conquista, que se constrói a cada escolha e a cada dia. Assim é com os homens comuns, assim é com o maior dos Paladinos. Os que se proclamam nobres nesta cidade se referem secretamente a Tallamir como o ferreiro selvagem, procurando assim diminuí-lo frente aos outros, mas se equivocam ao não perceber que é precisamente em sua origem que reside sua maior conquista, a maior prova de sua força e perseverança, pois ele nasceu como um selvagem, foi transformado em escravo, conquistou por si só a liberdade e agora é um homem nobre e culto, por sua própria opção.

Assim que Laertes se calou, as sombras das primeiras casas da parte baixa da cidade já cruzavam o caminho deles e os muitos sons e cheiros de Caendlia os envolveram, quase desorientando Midler. Aquela era uma cidade como ele nunca vira, viva, pulsante, ocupando toda a extensão de uma baixa e ampla colina à beira do Lorun. A parte mais alta, onde grandes construções majestosas eram visíveis, estava cercada por um extenso muro branco, onde apenas um grande portão com altas torres e muitos guardas a sua volta, ao fim da larga estrada que seguiam, era visível. Por cima deste muro, o discípulo podia ver um imenso palácio, feito de grandes pedras nuas, de uma cor acinzentada, com flâmulas do mesmo tom a penderem de estreitas janelas. Apesar de seu tamanho, estendendo-se por mais de uma centena de metros sobre aquela colina, o discípulo não conseguia perceber nenhuma beleza em suas formas, de linhas e ângulos retos, lembrando pouco mais aos olhos do jovem do que uma gigantesca e rude caixa, onde apenas sua parte mais alta, que uma leve inclinação tornava mais larga que as paredes logo abaixo dela, trazia alguma sutileza à silhueta do grande palácio do rei Jaendor II. Logo ao norte deste, havia uma bela catedral de suaves linhas curvas, contrastando-se em muito com o desenho do palácio. Suas duas torres, cuidadosamente esculpidas como espirais que se erguiam aos céus, se destacavam sobre todas as outras construções, com um grande cristal incrustado no topo da mais próxima de onde o discípulo estava, refletindo fortemente a luz do sol que vinha por trás, como um imenso farol de muitas cores. A outra torre, voltada para o leste, na direção do porto que a colina ainda escondia de seus olhos, de onde apenas as pontas dos maiores mastros eram visíveis, era escura e sombria, como se houvesse sido queimada pelo fogo de muitos dragões e estivesse eternamente sob a pouca luz do crepúsculo, mesmo quando o claro sol daquele dia tentava inutilmente a iluminar. A grande torre se tornava ainda mais escura em sua parte mais alta, que parecia ter sido tingida com a escuridão de uma noite sem lua ou estrelas.

Enquanto caminhava pela larga estrada que parecia cortar toda a cidade em direção ao leste, o discípulo observava as grandes casas que pareciam não ter fim, maiores que todas as que conhecera na Marca da Vitória, construídas em estilos tão diferentes que parecia ser possível cruzar fronteiras de muitos reinos com poucos passos. Odores exóticos saíam de tavernas com nomes estranhos, onde, em frente a bancadas com muitas bebidas, ervas, tecidos e outros tantos artigos que ele não conseguia identificar, vindos de todas as partes, comerciantes gritavam em várias línguas, algumas faladas apenas em terras muito distantes dali. As ruas que cruzavam em todas as direções eram largas e bem calçadas, com um grande movimento de pessoas, cavalos e carroças a passarem para todos os lados, em um aparente caos ordenado. Midler tentava ficar atento a tudo que via, mas sua atenção era a todo o momento desviada para algo novo, curioso ou estranho, e destas coisas a cidade de Caendlia tinha muito a oferecer, ainda mais para um jovem que nunca havia se afastado da pequena vila onde nascera.

Laertes se mantinha em silêncio desde que entrara na cidade, com seu olhar a percorrer rapidamente a rua por onde caminhavam, procurando por um sinal de algo que sabia que seria inevitável. Quando seus olhos encontraram o que buscava, seus lábios se curvaram em um discreto sorriso e ele parou, tocando levemente com seu cajado o ombro de Alenthor, interrompendo assim o jovem ferreiro, que havia se virado para lhes alertar sobre algo.

- Siga a nossa frente e vá até a oficina de Tallamir, Alenthor. Diga-lhe que estaremos com ele em breve e que não há nada com que se preocupar – o jovem hesitou por um momento, mas fez uma pequena reverência e continuou a caminhar, sem questionar as palavras de Laertes. Quando este desapareceu de sua vista, o velho senhor se voltou e encontrou o olhar curioso de seu discípulo sobre si, claramente não conseguindo compreender sua atitude, e lhe falou calmamente – Diga-me, meu jovem, quantas moedas havia na sacola que levava consigo?

Midler levou a mão à pequena bolsa presa ao cinto, onde guardava seu dinheiro, sem entender o porquê da pergunta de Laertes. Para sua surpresa, não a encontrou, havia agora apenas um pedaço cortado da corda que a prendera.

- Nossas moedas foram levadas, meu mentor! – Midler estava muito irritado e decepcionado consigo mesmo por ter sido tão desatento. Deixou-se levar de tal modo pelo fascínio que sentira pela grandeza de Caendlia que fora facilmente roubado.

- Sim, é verdade, e é por aquelas mãos que elas se foram – Laertes apontava para uma pequena e furtiva figura encapuzada, que se afastava rapidamente deles, andando com desenvoltura por entre a multidão, quase a desaparecer pela larga rua.

Midler prontamente passou a correr atrás do ágil ladrão, abrindo caminho com as mãos por entre a muralha humana em que a rua parecia haver se transformado, como se tentasse nadar através de um denso pântano. Pedia a todos que lhe deixassem passar, mas suas mãos se mostravam mais eloquentes que as palavras naquela cacofonia de ruídos e línguas. Quando se aproximava dos soldados que patrulhavam a cidade, sempre em grupos de três ou mais homens bem armados com compridas lanças e curtas espadas, mantinha-se em silêncio, procurando não chamar atenção para si. Já estava suficientemente envergonhado por ter sido ludibriado tão facilmente e não queria a ajuda da guarda de Caendlia para capturar um simples rato de rua como aquele. Sua consciência lhe gritava que, para poder se considerar digno de ser respeitado como um discípulo de Sandren, teria de ser capaz de enfrentar uma dezena de reles criminosos antes de precisar de qualquer auxílio. Midler logo percebeu que sua presença já havia sido notada pelo pequeno ladrão, que apressava o passo o quanto podia, tentando despistar seu perseguidor sem parecer que tentava escapar, mas o discípulo não se deixaria enganar novamente, esforçando-se para não o perder de vista, enquanto diminuía gradativamente a distância entre eles. Ao ver que não conseguiria deixar seu perseguidor para trás, o pequeno fugitivo virou subitamente para a direita, atravessando apressado a rua principal e aproximando-se de sua lateral, caminhando junto à parede de uma casa até que, repentinamente, entrou em um escuro corredor, entre dois altos muros, e passou a correr. Midler aumentou as passadas o quanto pôde, até chegar ao começo daquela viela, onde conseguiu ver o veloz ladrão a se aproximar rapidamente de um muro ao fim do beco, muitos metros à frente, onde diversas caixas empilhadas desordenadamente estavam encostadas. Ele sabia que, se o ladrão chegasse até aquelas caixas, conseguiria escalar até seu topo com facilidade e saltar por sobre o muro antes mesmo do discípulo conseguir chegar à metade da distância que os separava, pois já havia percebido como era grande sua agilidade. Detendo-se, agarrou uma das pequenas adagas que trazia consigo e a arremessou, com força e precisão, fazendo com que ela se cravasse profundamente na lateral de uma das caixas, bem próxima de onde estava a cabeça do ladrão, que hesitou por um momento, parando de correr.

– Se tentar correr novamente, minha próxima lâmina será mais precisa e irá cortar couro e carne e não apenas madeira – o rigor em sua voz não permitia que o pequeno fugitivo duvidasse de seu intento e ele se manteve imóvel, virando-se devagar para encarar o discípulo – Se permanecer onde está, prometo-lhe que não irei lhe ferir.

Midler se aproximava com passadas largas, atento a qualquer movimento do pequeno ladrão. Não havia mais nada naquele beco, além das muitas caixas de vários tamanhos espalhadas desordenadamente por todos os lados e de uma grande carroça quebrada, próxima ao muro ao fundo, mas ele podia ver o brilho nos olhos do ladrão sob o capuz, a se moverem rapidamente, procurando por alguma coisa em meio à desordem e às sombras ao seu redor, procurando por uma maneira de escapar, o que o fazia pressentir que aquele frágil momento de trégua não iria durar.

Sem aviso, a ágil figura encapuzada saltou para o lado, girando o corpo em pleno ar e desaparecendo por completo na escuridão da viela, antes mesmo que o discípulo pudesse lançar a outra adaga que carregava. Midler então desembainhou rapidamente sua espada e caminhou cuidadosamente em silêncio, tentando divisar o pequeno ladrão nas sombras que permeavam o beco, mas estas pareciam tê-lo engolido por completo. Quando já estava próximo ao local onde o pequeno fugitivo estivera, as palavras de Laertes lhe vieram à mente e ele fechou os olhos, concentrando-se nos sons que podia ouvir ao seu redor. Logo, ele percebeu que o beco em que se encontrava não estava tão silencioso quanto lhe parecera a princípio. Conseguia escutar, em um dos cantos próximos, o ruído de pequenos ratos a comerem os restos de alguma refeição, enquanto uma suave brisa que corria entre as altas paredes lhe sussurrava aos ouvidos um leve estalar de madeira, como se uma grande caixa a sua direita reclamasse do peso de algo que se movia lentamente sobre ela. Ele se concentrou neste som, percebendo o sutil roçar do couro de pequenas sandálias, começando a se afastar. Midler sabia que o ladrão estava próximo e procurava fugir dele, sem desejar enfrentá-lo, mesmo estando protegido pela escuridão. O discípulo se manteve imóvel, como se não houvesse percebido nada, até que aquele ranger estivesse quase fora de seu alcance. Então, em um rápido movimento, girou o corpo e estendeu a mão que estava livre para dentro da escuridão, na direção daquele som, e agarrou firmemente o grosso tecido de uma capa, que puxou com força, arremessando o ladrão contra os restos da velha carroça que estavam do outro lado do beco, que se quebraram com o impacto do pequeno corpo, atordoando-o por um instante. Midler podia vê-lo claramente agora, pois ele caíra em uma parte ainda iluminada pela pouca luz do dia que conseguia penetrar ali. Quando o ladrão tentou se levantar, encontrou a ponta da espada do discípulo a pairar sobre seu peito, pronta para ser usada, e se rendeu, sabendo que não poderia mais fugir. Ele ergueu a cabeça, para encarar os olhos de seu captor, e seu capuz escorregou para trás, revelando seu rosto.

Para sua surpresa, Midler estava diante de uma jovem menina, que não devia ainda ter chegado aos treze anos. Seus cabelos, escuros e desordenados, como um selvagem redemoinho noturno, estavam cortados pouco acima dos ombros, e, mesmo aliados à sujeira em seu rosto, não conseguiam disfarçar seus traços de menina. Uma pele que deveria ser clara como a manhã se estivesse lavada envolvia grandes olhos negros e assustados, fitando continuamente o discípulo e a ponta da lâmina sobre o peito, a aguardar seu golpe, mas Midler baixou lentamente a espada, sem, entretanto, guardá-la. Não via nenhuma arma com a menina e, apesar de não a considerar perigosa, ela ainda era uma ladra, e era seu dever entregá-la à guarda da cidade.

– Vamos, de pé! – ele estendeu a mão e a pegou pelo braço, fazendo-a se levantar com uma delicadeza que não teria com nenhum outro criminoso, enquanto tomava de volta o pequeno saco de moedas que ela ainda segurava nas mãos.

Midler não conseguia deixar de sentir-se triste por ver que alguém tão jovem e talentosa como ela já havia se desvirtuado tanto. Não conseguia perceber maldade ou malícia em seus olhos, apenas um medo profundo. Ele não tinha muitos anos a mais que aquela menina e não conhecia sua história ou o que a teria levado a se tornar uma ladra, mas se sentia tocado pelo que via. Ao erguer a cabeça e olhar para a entrada do beco, encontrou Laertes caminhando calmamente em sua direção.

– O que temos aqui então, jovem discípulo de Sandren? – a voz do mentor estava tranquila como sempre, mas seu tom era solene, como em um julgamento.

Com as palavras de Laertes, a menina ergueu a cabeça e olhou surpresa para Midler. Já ouvira muitas estórias sobre a Torre dos Paladinos e dos grandes guerreiros que viviam nela, pois estas eram contadas com entusiasmo e admiração pelas crianças e com temor e raiva pelos ladrões e ela conhecia bem estas duas versões. Por um instante, seu entusiasmo sobrepujou o medo que sentia e seus olhos brilharam.

– Infelizmente, meu mentor, uma jovem e habilidosa ladra – voltou-se para ela, curvando-se até que seus olhos estivessem na mesma altura dos dela – Qual o seu nome, menina?

– Budir, piedoso senhor, Brans Budir, sua criada – um largo sorriso se desenhou no rosto da jovem, o melhor que ela sabia fazer, enquanto se curvava tão respeitosamente quanto seu braço, ainda seguro firmemente pelo discípulo, permitia.

Laertes podia perceber facilmente a tristeza na voz de Midler e se admirou pelo mais austero discípulo que já conheceu, sempre a se cobrar em demasia, estar tratando aquela menina com brandura e não com o rigor que esperaria dele, mas não permitiu que Midler percebesse sua surpresa, mantendo seu semblante grave.

– Fez muito bem em prender esta ladra, meu jovem. E o que devemos fazer com ela?

Midler olhou longamente para Brans, que lhe lançava um olhar meigo e suplicante, capaz de derreter até o mais duro dos corações, mas o discípulo quase não o percebeu, olhando atentamente para as roupas que ela vestia.

– Talvez a responsabilidade de seus crimes não seja apenas dela, meu mentor. Seus sapatos gastos e suas mãos calejadas são testemunhas de seu equivocado esforço, mas não há nenhum indício de que guarde o que toma dos outros para si. Não vejo quaisquer adornos com ela, mas suas vestes, apesar de estarem igualmente desgastadas, estão remendadas com capricho e seu cabelo está cuidadosamente cortado. Se simplesmente a entregarmos, poderemos estar cometendo um erro. Acredito que ela esteja sob as ordens de alguém, pois não é a sua vaidade que a faz roubar – Midler sentia-se aliviado com este pensamento, pois ele trazia consigo alguma esperança para o destino que daria à menina.

– Você está certo, discípulo – Laertes se esforçava para conter o sorriso que queria pular em seus lábios, orgulhoso de seu jovem aprendiz. Olhou longamente para Brans, até falar com uma voz firme – Leve-nos agora até aquele que a faz roubar, menina!

– Mas, bondoso senhor...

– Não discuta, criança, ou descobrirá que os guardas desta cidade não são tão piedosos quanto o jovem guerreiro que a deteve.

Midler embainhou a espada e caminhou até o final do beco, onde pegou sua adaga, sem jamais soltar o braço de Brans, que não oferecia nenhuma resistência. Então, a menina os guiou silenciosamente através da cidade, por caminhos que nem o velho mentor conhecia, apesar de suas muitas passagens anteriores por Caendlia. Conforme avançavam, as ruas ficavam mais vazias e as sombras mais numerosas. Os gritos dos comerciantes e os atentos olhos dos guardas já haviam ficado para trás, quando eles entraram em um lugar que parecia não fazer parte da mesma cidade que fascinara o discípulo, chamada pelos homens de Caendlia de “Cidade Baixa”, em alusão à riqueza das moradas da parte mais alta da colina. As estreitas ruas eram escuras e silenciosas, sem calçamento ou demarcações, em meio a pequenas casas construídas em madeira e argila, não mais em pedra e argamassa, sem cuidado ou organização. Não fosse a pequena guia que caminhava à frente deles, indicando o caminho a seguir, os dois homens facilmente se perderiam naquele intrincado labirinto. Midler podia sentir que muitos olhos acompanhavam seus passos, protegidos pelas numerosas sombras daquele lugar. Ele fez um sutil sinal para seu mentor, mostrando-lhe que temia uma emboscada, mas Laertes seguia tranquilamente a menina, sem parecer se importar para onde ela poderia os estar levando.

De repente, um grito agudo vindo de dentro de uma pequena construção à frente deles, pouco mais do que um casebre abandonado, chamou alto pelo nome de Brans, enquanto leves e apressados passos podiam ser ouvidos em seu interior, a se aproximarem. Midler levou a mão à espada, pronto para desembainhá-la, mas Laertes colocou sua mão sobre a dele, impedindo-o.

– Espere, meu jovem. Acredito que espadas não serão necessárias aqui.

De repente, três crianças, ainda mais jovens que Brans, emergiram pela estreita entrada, onde um gasto pedaço de pano tomava o lugar da porta ausente. Duas pequenas meninas se abraçaram na jovem ladra, a chorar, enquanto um menino de quase onze anos colocou-se rapidamente ao seu lado, esforçando-se em manter uma curta e pesada espada, excessivamente gasta pelo tempo e pela ferrugem, apontada para os dois homens, tentando demonstrar uma coragem que não sentia.

– Guarde isto, Heyden! – Brans apressou-se em abaixar a espada que o menino segurava – Estes não são soldados, mas homens de Sandren!

– Paladinos – a voz do menino era quase um sussurro. Seus olhos se arregalaram, enquanto sua boca se abria, mas não conseguiu falar mais nada, assustando-se com o som de sua espada a cair no chão. Midler se sentia desconfortável sob o olhar do garoto, pois não era respeito ou admiração que via naqueles olhos, mas pavor. Brans olhou para o menino, procurando acalmá-lo, sem falar mais nada. Então, virou-se para Laertes, baixando os olhos para não enfrentar o olhar severo do mentor e ajoelhou-se no chão.

– Esta é a minha família, bondoso e sábio senhor. Não são meus irmãos de sangue, mas órfãos como eu, abandonados à própria sorte e só tem a mim para cuidar deles – sua voz era de uma tristeza infinita – Estes são os que procura, pois é o choro deles, de medo, de fome e de frio, que me faz tomar o que não me pertence, para trazer-lhes o pouco que comem e vestem, mas peço que não lhes faça mal algum, gentil senhor de Sandren.

Laertes se manteve calado, olhando longamente para as três crianças. As duas pequenas continuavam a chorar, enquanto Brans se mantinha de cabeça baixa, tentando chamar discretamente a atenção de Heyden para que se curvasse também, mas ele continuava a olhar fixamente para Midler, sem se mexer.

– Façam silêncio, crianças! Seu choro, desprovido de lágrimas e sinceridade, não me comove, nem suas belas palavras vazias, menina, sempre repetidas à exaustão para cada soldado que conseguiu segui-la até aqui!

As meninas se calaram rapidamente, assustadas com a severidade das palavras de Laertes. Olhavam agora para Brans, esperando que ela lhes dissesse o que fazer, mas a menina se mantinha com a cabeça baixa, temendo agora a decisão do velho mentor, pois sabia que não havia nada mais que pudesse fazer para tentar ludibriá-lo. Acreditava agora nas estórias que ouviu tantas vezes de outros ladrões, de que não se pode enganar os homens de Sandren. Laertes se virou para o discípulo, com um olhar inquisidor, aguardando sua decisão.

Midler permaneceu em silêncio por alguns momentos. Então, ajoelhou-se em frente a Brans, colocando a mão no queixo da menina e erguendo gentilmente sua cabeça. Afastou delicadamente os cabelos que cobriam seu rosto, para olhar dentro de dois escuros olhos, já preenchidos de lágrimas. Midler não encontrou neles a confiança ou a calma de antes, apenas uma súplica sincera de uma assustada e solitária menina. Apesar das palavras de Laertes, algo dentro dele lhe dizia que Brans falava a verdade, apesar de tentar adorná-la imensamente.

– Fome e frio não são desculpas para se cometer um crime, menina, mas o bem que procurava fazer para estas crianças é muito maior que o mal que me faria. Não tenho nenhum direito de julgá-la, pois não consigo censurar seus atos – as palavras soavam estranhas na voz de Midler, pois ele mesmo não acreditaria nelas até aquele momento. Pegando a mão de Brans, entregou-lhe a pequena sacola de moedas que ela havia roubado e algumas mudas de roupa e comida de viagem, que tirou de sua mochila, juntamente com uma das belas adagas que havia recebido de seu pai, com a qual a fizera parar no beco – Tome, quero que fique com estas coisas. Alimente, aqueça e proteja sua família, corajosa menina.

– Mas ficará quase sem nada, meu senhor! – Brans olhava admirada para o discípulo. Não esperava esta atitude de um dos homens de Sandren, cujo rigor inclemente era bem conhecido e temido por todos os ladrões.

– Existem outras riquezas neste mundo, mais valiosas que qualquer moeda, menina, e vejo algumas delas em você, apesar de seu brilho estar um pouco ofuscado, em meio a tanta sujeira em seu rosto.

Midler se levantou, esforçando-se em se mostrar alegre e confiante, mas tudo que conseguiu foi um incerto sorriso a se desenhar em seus lábios, enquanto afagava levemente a cabeça de Brans. Seus próprios sentimentos não estavam claros para ele. Seu coração lhe dizia que sua decisão fora justa, mas havia contrariado muito do que aprendera nos livros de seu pai.

– Fiquem em paz, crianças – Midler se voltou para seu mentor, pronto para segui-lo até a casa de Tallamir, encontrando o olhar cheio de orgulho do velho mentor voltado em sua direção, quando ouviu a alegre voz de Brans.

– E qual é o nome daquele que irá se tornar o mais justo, piedoso e sábio de todos os Paladinos de Sandren, meu senhor? Em minhas preces, pedirei às estrelas que o protejam.

Ao se virar, mais constrangido pela contida risada de Laertes do que pelas palavras da jovem, Midler se deparou novamente com o sorriso contagiante de Brans, o mesmo que ela lhe dirigira no beco, mas com uma naturalidade que ele não havia encontrado antes naquele rosto.

– As inconstantes estrelas fornecem pouca proteção, menina, e somente para aqueles que procuram se esconder sob sua pálida luz, como os... – ele se deteve, sentindo-se um tolo por ter dito aquilo. Os ladrões sempre oravam às estrelas e à escuridão da noite, para que elas os escondessem de homens como os Paladinos, mas ele sabia, pelo olhar de Brans, que não havia ironia alguma em suas palavras, apenas inocência e boa vontade – Por favor, ore às suas estrelas em nome de Midler Summerion, doce menina.

– Brans Budir! Meu nome é Brans Budir! – sua voz estava áspera, indignada pelo discípulo continuar a chamá-la de menina, mas rapidamente abrandou-se – Pare de me chamar assim, meu senhor, por favor.

– Fique em paz então, Brans Budir de Caendlia. Prometo-lhe que jamais esquecerei seu nome novamente – um sorriso sincero curvava agora os lábios de Midler.

– E aqui está algo para protegê-la do frio que não tarda e dos olhos impiedosos desta cidade, que pode ser ainda mais fria que o próprio inverno – Laertes retirou a leve capa que trazia sobre os ombros e a dobrou cuidadosamente, formando um pequeno embrulho que entregou à jovem ladra.

Brans ficou maravilhada, pois nunca havia tocado tecido tão nobre e leve, mas ao mesmo tempo tão aconchegante e forte. A capa era tão fina que, contra a luz, se podia ver facilmente através dela, mas parecia incrivelmente resistente. Olhou para Laertes, incerta de como devia agradecê-lo, mas o largo sorriso no envelhecido rosto do mentor lhe dizia que quaisquer palavras que pudesse pensar seriam desnecessárias.

– Lembre-se, minha querida, ela é um presente para você – Laertes abaixou-se e sussurrou próximo ao ouvido de Brans, em um tom mais austero, enquanto colocava suavemente a mão em seu ombro – Não é para a ganância que pode se esconder nestas vielas escuras ou para o dinheiro fácil de mercadores.

Os dois homens deixaram sem demora aquele lugar, caminhando em silêncio pelos mesmos caminhos estreitos que os haviam levado até ali. Após alguns minutos, quando Midler já não sentia que olhos e ouvidos curiosos acompanhavam seus passos, falou a Laertes.

– Sei o quis me mostrar aqui, meu mentor, e apesar de confiar em sua sabedoria, não consigo evitar o pensamento de que esta talvez seja uma lição perigosa demais para ensinar a um discípulo.

– E qual seria esta lição, que carrega tanto risco consigo, meu temeroso jovem? – Laertes continuou a andar, voltando-se para Midler e esperando pacientemente que o jovem continuasse, enquanto fazia uma de suas próprias sobrancelhas se elevar em sua fronte.

Midler inspirou profundamente e deixou o ar escapar devagar, enquanto voltava seus olhos para frente. Relutava em dizer a Laertes o que pensava, não por temer ser repreendido por seu mentor, mas porque começava a acreditar nestas palavras, e isso muito o assustava.

– Que o bem, ou o desejo de fazer o bem, pode advir de ações erradas.

– Nem sempre, Midler, nem sempre, mas você está certo – era o discípulo que agora voltava um olhar curioso para seu mentor. Nunca havia ouvido a voz de Laertes tão profunda e, ao mesmo tempo, tão terna – Nem mesmo a melhor das intenções, mesmo do mais puro coração do maior dos Paladinos, pode justificar todo e qualquer meio para realizá-la, por maior que seja o bem que ela possa trazer. Por muitas vezes, a única diferença entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, está simplesmente na intenção de quem age e em respostas que somente a passagem dos anos dará. A verdadeira sabedoria, Midler, está em conseguir perceber esta sutil diferença. Mas não irá encontrar esta verdade em livro algum de Sandren e nenhum Paladino do Círculo irá concordar com ela enquanto o céu estiver sobre nossas cabeças. Lei e justiça nem sempre caminham lado a lado, mesmo em locais que são sagrados para nós. Lembre-se sempre disto, Midler – Laertes parou de caminhar, olhando fundo nos olhos de seu discípulo – Um paladino deve sempre ser justo, antes mesmo de ser correto. O juramento que fará em breve no coração de Sandren é testemunha desta verdade, pois irá prometer defender o bem, antes mesmo da verdade – então, após um momento, um conhecido sorriso iluminou novamente seu rosto, enquanto voltava a caminhar – Existe realmente um grande risco em ensinar esta lição para qualquer discípulo, e mesmo para alguns dos Paladinos que conheço, mas fique tranquilo. Nunca a ensinaria a alguém que não acreditasse que estivesse pronto para ela.

Mas Midler estava absorto em seus pensamentos, não percebendo as encorajadoras palavras de Laertes. Assustava-lhe a ideia de que um Paladino, mesmo acreditando estar correto, poderia ser injusto.

– Mas não sabíamos quais eram as intenções da menina, até nos encontrarmos com aquelas crianças, meu mentor. Apesar de me compadecer dela, acreditava que era apenas uma ladra e que poderia estar nos conduzindo para uma armadilha enquanto a seguíamos, para um lugar onde até os guardas desta cidade não ousam ir. Como poderia agir diferente, se isto era tudo que podia ver?

– Fechando os olhos, é claro – Midler surpreendeu-se com as palavras de Laertes, mas podia perceber facilmente que não estavam carregadas de desdém, mas de sinceridade – Não poderia estar preocupado para onde éramos levados, pois soube, desde que a vi no beco, que ela não nos faria mal algum, nem tentaria fugir de nós.

– E como posso saber destas coisas, meu mentor? Não quero ser insolente e me desculpo se assim o for, mas sempre acreditei que apenas aqueles que foram consagrados por Baltur poderiam ver claramente a alma dos homens.

– Ou aqueles muito mais sábios do que este velho jamais terá tempo de ser – o sorriso de Laertes era contagiante – Mas não se preocupe com suas palavras. Nunca deve se desculpar por dizer a verdade, discípulo de Sandren, ou não fará outra coisa em sua vida a não ser pedir por perdão. Apenas os Paladinos são consagrados por Baltur, é verdade, mas existe uma outra visão, que nem mesmo o tempo ou as bênçãos dos clérigos de Sandren podem lhe dar, já que ela lhe pertence desde o momento em que veio a este mundo. Procure sempre enxergar o que vê com seu coração, Midler, e não apenas com os olhos, como você mesmo o fez há pouco, sem mesmo perceber. Você tem ótimos instintos. Confie neles, mesmo quando toda a razão se for e sua mente não souber mais o que fazer. Esta é a mais difícil e valiosa lição que você pode aprender com este velho mentor, antes de chegarmos à Torre de Marfim – Laertes tornou a olhar para frente, falando alegremente como se pensasse alto – E deve aprender depressa esta lição, pois os portões dourados estão mais próximos a cada dia e a cada passo que dá, meu querido Midler.

– Então eu falhei com o que esperava de mim, meu mentor, pois não compreendi o que me mostrou e temi seus ensinamentos, não confiando em sua sabedoria e autoridade – um longo suspirou acompanhou suas palavras.

– Mesmo na vida de um rigoroso e impaciente discípulo nem tudo é um teste ou deve fazer sentido total e imediatamente, Midler. A chuva não se frustra se as sementes que molha não se transformam em grandes árvores antes da terra se secar. Não se preocupe em ser compreendido ou em convencer rapidamente os que o ouvem, apenas em ser ouvido. As palavras criam raízes e desabrocham com o passar do tempo, mesmo quando o solo em que caem parece árido e desolado – sua voz então se tornou mais leve – E se este fosse um teste, você teria se saído melhor do que eu poderia esperar, meu jovem, apenas não esperou até que as sementes se abrissem.

O discípulo permaneceu calado por um tempo, caminhando ao lado de Laertes, mas o mentor logo percebeu que sua mente não o acompanhava.

– O que ainda o perturba, meu jovem? – Laertes sorria alegremente – Há mais lições a serem aprendidas neste dia que, de tão sutis, teimam em se esconder no que ainda não foi dito?

– Não sei dizer, meu mentor, mas há algo que não consigo compreender. O menino que se colocou ao lado de Brans passou a nos temer quando soube de onde éramos. Havia um medo profundo em seu olhar, não a admiração e o respeito que já vi nos olhos de tantos outros jovens.

– Não sei se devo ficar grato ou temeroso de que não compreenda, meu jovem – Midler se deteve, lançando um olhar confuso para Laertes, que se virou – Por mais sinceros que sejamos, sempre haverá duras verdades que não desejaremos ver, por inocência, fé ou arrogância. Talvez por temermos a desilusão e a dor que elas trazem consigo, talvez porque elas nos tornam mais fracos e mundanos do que desejamos. Eu admiro sua coragem, Midler, pois dentro de seu peito existe este temor, mesmo que não o perceba, mas você não permite que ele o cale.

Laertes tocou o ombro de seu discípulo com o cajado para que continuassem a caminhar, sussurrando uma discreta prece para que suas palavras não pudessem ser compreendidas por outros ouvidos que não os de Midler. Quando voltou a lhe falar, sua voz grave e seu semblante fechado demonstravam a gravidade do que dizia.

– Apesar de Sandren nos abençoar com olhos que tudo vêem e não haver horizonte que não se possa avistar da Torre da Vigília, podemos nos tornar cegos e ignorantes para o que acontece ao nosso lado, nos olhos e nos corações daqueles que nos cercam. Nunca se permita não mais ouvir o que lhe dizem em sua presença ou o que sussurram as suas costas. Para muitos fora de Sandren, não somos mais do que frios algozes ou idiotas arrogantes, carregando espadas onde ninguém mais poderia ou ousaria ir e não se sujeitando a nenhuma outra lei que não a de Baltur. Os reis e governantes de todas as terras ainda nos recebem, é verdade, mas alguns já não o fazem como antes, por respeito ou por buscar a sabedoria de nossos conselhos, pois sequer ouvem ou acreditam em nossas palavras. Alguns nos ignoram, outros nos cobiçam como aliados, mas há aqueles que chegam a nos temer e odiar. Acreditam que somos apenas terríveis guerreiros, investidos de um poder que não compreendem e ao qual não podem se opor, com medo de que, se fecharem as portas de seus salões para nós, Sandren, no auge de sua arrogância, levantaria suspeitas de seu real intento ou do que tentam esconder, e enviaria um exército de Paladinos para destronar um déspota e um tirano, e ele sabe que não poderia resistir por muito tempo. Lembre-se sempre que, mesmo aos olhos dos poderosos, você será aquele que nenhum de seus guardas poderá vencer e que nenhum assassino poderá emboscar ou envenenar impunemente, sendo visto apenas como um poderoso aliado ou um perigoso inimigo.

– Posso entender o desatino e a insegurança que o poder e a autoridade podem trazer a um governante despreparado, mas e os outros? As pessoas comuns que juramos proteger e sabem que não lhe faríamos nenhum mal? Por que nos veriam da mesma forma?

– Será que realmente sabem, Midler? Ou será porque somos, ao mesmo tempo, caçadores, juízes e carrascos daqueles que não seguem as nossas crenças, sejam eles quem forem, sem responder ou temer nenhuma fronteira ou lei que não a nossa. Os motivos de Sandren e de Baltur são claros apenas para nós, pois poucos conhecem o caminho que seguimos, que pode lhes parecer obscuro e traiçoeiro. Os Paladinos empunham um poder quase divino, que pode maravilhar ou intimidar, dependendo de como for visto e empregado. Se um grande cavaleiro os teme, para o mais comum dos homens um Paladino pode ser uma figura assustadora, severa e implacável.

A fronte cerrada de Midler demonstrava claramente ao seu mentor que ele não podia ou desejava acreditar naquelas palavras.

– Você foi criado entre grandes homens, Midler, vendo bondade e respeito em cada gesto e atitude, mas está muito longe de suas terras agora e não pode mais se permitir ser tão ingênuo ou inocente. Muitos em Sandren ignoram o que se passa fora de nossos muros nestes dias, enquanto outros parecem não se importar, simplesmente aceitando o que não se pode aceitar. Seu pai conquistou o coração daqueles que o cercam por nunca se deixar cegar ou ensurdecer para esta verdade – Laertes ergueu a cabeça, olhando em frente com um olhar menos severo em seu rosto – Mas não quero que se deixe abater pelos erros de outros e nem se preocupe com o que sei que não está em seu caminho. Seu pai ensinou-o melhor do que qualquer mentor ou Paladino poderia ser capaz, deixando-lhe a mais preciosa herança que você poderia ter, meu jovem, o exemplo do homem, do líder e do guerreiro em que ele se tornou – assim que estas palavras deixaram seus lábios, Laertes se arrependeu, recriminando-se por haver usado Télan como um exemplo para Midler. Ele sabia do enorme peso que esta imagem tinha sobre ele – Viva por este exemplo, mas nunca deixe de ser quem é e acabará por se tornar o melhor Paladino que poderá ser, tenho certeza – Laertes rapidamente completou, mas podia ver no rosto de Midler que as palavras já pesavam sobre seu discípulo – Agora chega, é o bastante por ora, até mesmo para um velho tolo que não sabe a hora de se calar.

Os dois continuaram a caminhar em silêncio, procurando retornar à rua principal da grande capital, de onde partiam os muitos sons que agora eram seus guias, nos tortuosos e estreitos caminhos que cortavam desordenadamente a Cidade Baixa, refúgio dos pobres e excluídos das muitas riquezas que formavam a bela cidade de Caendlia.


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