O Feiticeiro Parte III - O Medalhão de Mu escrita por André Tornado


Capítulo 92
X.7 O último dia.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/324955/chapter/92

Não dormi mais que duas horas. Nem senti falta de dormir durante mais tempo. Levantei-me, tomei um duche demorado, de água a ferver, e vesti o mesmo vestido que tinha usado para ir ver a magia das estrelas. Calcei também os mesmos sapatos embonecados, levantei a ponta dos pés para admirar os lacinhos, mas, desta vez, já não sorri. Escondi o Medalhão de Mu debaixo do decote e olhei uma última vez para o quarto desarrumado. Os cheiros já se tinham desvanecido todos e as lembranças pareciam querer refugiar-se num lugar onde não as podia convocar.

Chegava o dia de todos os adeus e eu não me sentia preparada. Tinha sido mais fácil destruir Zephir.

Um pequeno monitor azul piscou junto à porta, acendendo-se com um apito breve. Transmitia uma mensagem de Bulma que indicava que a viagem na máquina das dimensões estava agendada para as onze horas da manhã e que a partida ocorreria no relvado das traseiras. Era uma espécie de convocatória e de lembrete, como se eu me pudesse eventualmente esquecer. Ou provavelmente pretendia que eu o fizesse, que acabasse por repensar a minha decisão depois da noite passada com o filho e que, em vez de ir embora, iria divertir-me na festa e que logo agendaria outra data no calendário para experimentar a sua máquina.

Mas eu não iria desistir, especialmente depois da noite passada com Trunks.

Conferi a hora no mesmo monitor, um pequeno retângulo branco onde estava um relógio digital, com algarismos também brancos. Passavam sete minutos das dez horas da manhã. Tinha mais ou menos uma hora até à minha viagem, mas não sabia muito bem o que fazer com esses longos sessenta minutos, uns agonizantes três mil e seiscentos segundos. Fiquei a marcar o tempo contado pelo relógio, hipnotizada pelo piscar dos dois pontos entre o número das horas e o número dos minutos. Não me mexi, paralisada na mesma posição estupidificante, vendo o tempo passar no seu ritmo normal.

Dez horas e dezanove minutos.

Pestanejei. Levei uma mão ao cabelo. Estava rebelde, tinha-o secado ao ar depois do duche com a água a ferver. Cheirava a alfazema e lembrei-me da cor do cabelo de Trunks.

Agarrei numa fita larga de cor preta e apertei o cabelo, afastando-o da cara. Olhei-me ao espelho grande pendurado por cima da cómoda. Pisquei o olho, ensaiei um sorriso de boneca que combinava na perfeição com os sapatos. Dei um estalido com a língua e disse para o meu reflexo de desenho animado:

- Vou ter saudades tuas, linda!

Saí do quarto. O relógio marcava dez horas e vinte e dois minutos.

Ao contrário do final do dia anterior, os corredores da Capsule Corporation apresentavam-se luminosos e animados. Dirigi-me para as traseiras, tentando acertar à primeira com o caminho, pois aquela casa era grande como um palácio. Mas, desta vez, não havia como me enganar, bastava seguir a música e a atividade que se concentrava toda no relvado das traseiras.

Antes de descer um lanço de escadas espreitei pela janela panorâmica e retangular que tinha à minha direita. Dali conseguia-se ver o local da festa. A primeira coisa que fixei foi a máquina das dimensões. A fuselagem nova brilhava e tinha luzes vermelhas e azuis a piscar. Um grosso cabo negro ligava-a a uma espécie de bateria gigante. Ao lado havia ainda uma estrutura com vários monitores e uma enorme consola, pejada de botões e de interruptores. Vi as mesas compridas, cobertas com toalhas brancas, enfeitadas com flores, onde se exibiam as iguarias que iriam ser servidas no banquete. Vi os grupos de convidados, vestidos com os melhores fatos e os melhores vestidos, garridos como conjuntos de balões, de vários feitios e tamanhos.

Respirei fundo. Iria enfrentar a tal audiência respeitável. Sem medo, Ana. Afinal, tinha sido eu que destruíra o feiticeiro. A segunda metade do Medalhão de Mu tremeu e eu combati a tentação de vincar as suas arestas na palma da mão. Ajeitei o decote para esconder a corrente dourada. Aquele era um segredo meu e de Trunks. O último segredo…

Desci as escadas. Uma porta dupla escancarava-se para a rua e dava acesso ao relvado das traseiras. Vi o último relógio antes de sair. Dez horas e trinta e um minutos. Teria tempo para conversar com todos os convidados, ou adiantaria a primeira viagem da máquina das dimensões. Optei decididamente pela segunda hipótese.

Os sapatos embonecados pisaram a relva, afundaram-se no terreno mole e orvalhado, fazendo-me andar cada vez mais devagar e quase a arrastar-me entrei no palco. Vi as cabeças voltarem-se na minha direção, as vozes calarem-se, como ficaram todos a observar-me, entre a reverência, a admiração e a curiosidade. Parei. Tive a tentação de fazer uma vénia com um sorriso pintado no rosto pétreo e de acenar um adeus com uma pirueta, mas seria excessivo e despropositado. Procurei desesperada por uma cara conhecida, ou pelo menos mais familiar. Primeiro, não encontrei Trunks. Segundo, não consegui reconhecer ninguém. Era tudo um borrão colorido. Estava demasiado calor e eu comecei a sentir-me mal.

- Ana-san, bem-vinda querida. Estávamos à tua espera.

Bulma sorria-me. Perguntou, entrelaçando o braço no meu, puxando-me suavemente para o centro do relvado:

- Vamos cumprimentar os nossos amigos? Querem saudar a rapariga da Dimensão Real que nos salvou e têm estado à tua espera.

- Eu só me quero despedir.

Pareceu-me desiludida.

- Oh… Mas ainda faltam alguns minutos para as onze horas.

- Eu sei. Podemos ir fazendo os últimos preparativos, as últimas verificações.

Soltou-me o braço.

- A máquina está pronta – disse, indicando o local onde repousava o veículo que me levaria a atravessar as dimensões. Explicou-me apontando para o aparato que eu tinha espreitado desde a janela: – Estou a verificar os níveis de energia e o aplicativo que irá permitir a viagem. Como te prometi, irei monitorizar todo o trajeto a partir daquele computador que está ali. Tem um aspeto antiquado, mas é extremamente preciso e fiável. Vai correr tudo bem.

- Eu confio em ti, Bulma.

- Ainda bem, querida.

Passei rapidamente os olhos pelos convidados.

Fiquei impressionada. Estavam lá todos.

Vi Yajirobe e Karin. Chaozu e Ten Shin Han, acompanhavam uma Lanch morena e cândida. Yamucha tinha Puar em cima do ombro e juntava-se ao velho mestre de artes marciais, Mutenroshi, que tinha vindo com a inseparável tartaruga do mar e com Oolong, que enfiava as mãos nos bolsos das calças com um ar enfastiado.

O tamanho de Piccolo impunha-me respeito e fiquei tensa quando o descobri. Com ele estavam Dende e Mr. Popo que me sorria e a tranquilidade do seu sorriso acalmou-me.

Também lá estava número 17 com a irmã número 18, ao lado de Kuririn. Maron voltava-se ligeiramente para Son Goten e os dois olhavam-se embevecidos, ocultando sorrisos. 

Chi-Chi fingia ignorar o deslumbramento do filho mais novo. Estava com o pai, o enorme e simpático Gyumao de barba grisalha, e com o marido, Son Goku, tão engraçado enfiado num fato claro, usando uma gravata verde garrida, calçando sapatos polidos, a suar desesperado dentro daquele uniforme. Ao lado deles, Videl e o pai, Mr. Satan. Conheci finalmente o grande campeão. Tinha um aspeto apagado e pareceu-me um homem velho e cansado. Mr. Bu acompanhava-o, o cão Beh preguiçava sonolento aos pés dele.

Com Videl estava Gohan. Pan e Bra davam as mãos e atrás delas postava-se Ubo, vestido também de fato e gravata, tão sério e solene que me impressionou. Aquele trio representava a próxima geração de guerreiros, o futuro da Terra.

Olhei para o lado esquerdo e descobri Vegeta. Piscou-me o olho discretamente, com uma carranca de meter medo. Entreabri os lábios admirada. O príncipe dos saiya-jin não piscava o olho a toda a gente.

Continuava sem encontrar Trunks.

Gohan aproximou-se de mim e de Bulma, arrastando o irmão Goten que despegou finalmente os olhos de Maron. Goku também veio, atrás dos filhos, aligeirando o nó da gravata que estava a estrangulá-lo.

- Ana-san, gostei muito de te conhecer – disse Gohan. – Quero agradecer-te por tudo o que fizeste por nós.

- Também gostei muito de te conhecer, senhor professor.

Gohan riu-se, empurrando os óculos com um dedo, num gesto que lhe dava um encanto especial.

- Vou tentar praticar o japonês que me ensinaste - acrescentei. – E nunca me esquecerei das nossas aulas proibidas, quando não era suposto eu encontrar-me com vocês. Foram noites tão… especiais.

Abraçou-me de repente. Murmurou-me comovido:

- Cuida de ti, Ana-san… onegai shimass.

- Hai

Quando se afastou, tinha Goten inclinado sobre mim a bafejar-me a cara com um beijo rápido, mas nem por isso menos carinhoso. Gracejou:

- Trunks vai matar-me por eu te ter dado um beijo.

Ele estava diferente. Estreitei os olhos, analisando-o, alcançando a mudança subtil. Sorri-lhe, abracei-o. Senti-o a endurecer de vergonha entre os meus braços. Segredei-lhe ao ouvido:

- A Maron é uma rapariga cheia de sorte. Desejo sinceramente que sejam muito, muito felizes os dois. E lembra-te de mim, Son Goten, porque eu irei lembrar-me de ti. Adorei aqueles dias na cabana das montanhas.

Gohan arrastou Goten de volta, porque ele tinha ficado pregado ao chão e estava tão vermelho que parecia ter sido pescado de uma banheira de lava.

Fiquei com Bulma e com Son Goku.

Olhei para os dois. Tinha sido com eles que “Dragon Ball” começara e seriam eles os últimos a se despedirem de mim. A ironia era deliciosa e agonizante.

Os últimos, pois Trunks tinha resolvido não aparecer.

- Ana, desejo-te boa sorte. Nunca nos vamos esquecer de ti e de tudo o que fizeste por nós – disse-me Bulma, com um olhar azul aguado que me enterneceu.

- Vocês também fizeram tanto por mim. Deram-me… uma aventura inesquecível. Mas não podia esperar menos, já que têm tantas aventuras inesquecíveis para contar.

- Oh, mas preferia mais momentos de paz. Tanta aflição e tanta apoquentação faz-me velha antes do tempo. Dispensava essas rugas, querida.

Fez-me rir e foi tão bom rir-me com ela.

Voltei-me para Son Goku. A presença dele continuava a confundir-me. Aquele sorriso era uma delícia, um tesouro.

- Djá ná, Ana-san.

- Goku…

- Não te esqueças daquilo que eu te disse.

- Hai. Voltaremos a encontrar-nos.

- Não chores.

O sangue fugiu-me da ponta dos dedos que ficaram gelados, juntou-se todo no coração que desatou a bater descompassado e ensurdecedor. Acredito que se conseguia ouvir o meu coração naquele silêncio. Apertei os dentes, neguei com a cabeça. Retive as palavras. Se falasse acabava por não fazer o que me dissera, que acabaria mesmo por chorar.

Goku ficou sério. Observava-me intrigado, com os olhos muito abertos que piscava amiúde, mais vezes do que era habitual. Debruçou-se ligeiramente e sussurrou-me:

- Não te posso dar um beijo aqui, Ana-san.

Eu reagi atrapalhada, corando indecentemente:

- Oh… Mas eu não…

Vegeta escondia um sorriso enviesado.

Devia ser o tal cheiro que enviava mensagens esquisitas para o cérebro dos saiya-jin. Recuei um passo, embaraçada com o que eu pudesse estar a transmitir a Son Goku que estava tão próximo de mim, com o que pudesse estar a insinuar a Vegeta que estava um pouco mais afastado. Não desejava causar nenhum incidente naquela festa. Mas Goku sorriu-me para me descansar, não voltaria a acontecer mais nada entre nós, e eu sorri-lhe de volta, selando aquele adeus.

Voltei-me para Bulma. Respirei fundo e anunciei, num tom de voz alterado pois começava seriamente a ficar nervosa:

- Estou preparada.

Ela franziu o sobrolho. Sabia que faltava ainda uma despedida, devia estar como eu, intrigada por ele ainda não ter aparecido, mas eu já me tinha convencido que ele não iria mesmo aparecer. Não o censurava, não podia depois da noite anterior.

- Podes ficar mais alguns minutos.

Olhei para os monitores acoplados à enorme consola. Dez horas e quarenta e sete minutos.

- Se a máquina está pronta… Eu também estou, Bulma-san.

Ela olhou de relance para os convidados. Encaminhou-me suavemente para junto da máquina, pressionando uma mão entre as minhas omoplatas.

- A viagem será incómoda, mas não durará mais que um minuto, dois no máximo. Lembras-te de como se faz para ligar a máquina e iniciar a sequência que permitirá a viagem entre dimensões?

- Hai. Assim que a cabina ficar fechada e completamente isolada do mundo exterior, carrego no botão amarelo.

- Perfeito.

- Bulma…

- Sim, querida? – Perguntou ansiosa.

- Eu… Obrigada pela roupa. Acho que não vou conseguir devolvê-la.

Os ombros dela estremeceram. Esperava que fosse alguma mensagem para o filho. Devia estar a achar tão estranho eu não querer despedir-me de Trunks, nem sequer mencioná-lo.

- Estás preocupada… com isso? – Perguntou admirada.

- Pois… Um pouco – menti.

- Querida, considera essa roupa como um presente meu.

Dez horas e cinquenta minutos.

- Hai.

Ficámos a olhar uma para a outra. Apertei as mãos, estavam suadas. Estava cheia de medo daquela viagem que nunca tinha sido experimentada antes. Um dos vértices do triângulo dourado picou-me a pele e eu sustive a respiração.

Bulma disse:

- Muito bem. Vamos lá, então…

E quando se afastou de mim, quando se dirigiu para a consola, eu vi-o.

Trunks estava ali.

O meu coração explodiu.

As minhas pernas fraquejaram.

Ficámos só nós os dois e a máquina das dimensões.

O que podia eu dizer-lhe ou ele dizer-me a mim que já não tinha sido dito?

Apertou uma madeixa do meu cabelo entre os dedos. Estava triste, tal como mirai Trunks e eu sentia-me a desfalecer.

Fui eu que quebrei o silêncio:

- Disseste que irias ficar sempre comigo… Que não irias abrir mão de mim. Nunca…

- E tu também disseste que não irias a lado nenhum - rebateu.

O meu sorriso foi penoso.

- Mentimos os dois, não foi?

- Eu nunca te menti.

Continuava a atingir-me com a verdade, dura como aço. E eu a desfazer-me em células, a reconstruir-me desesperadamente colando tudo com fita-cola, os remendos visíveis, mascarando as feridas, inventando que era ele que se iludia, mas a culpa continuava a ser minha, só minha. A ilusão era também minha. O castigo por ter ousado entrar na fantasia.

Ah, mas trocaria eu aquela parcela de tempo ridícula, talvez menos de um segundo, em que fizera a escolha? Não, não… Renegaria a primeira imagem que vira dele, ocultado pela névoa da impossibilidade, quando me tinha salvado do assaltante na rua escura? Não! De costas para mim e eu vira a jaqueta azul, as calças escuras, as botas amarelas. Mirai Trunks na sua gloriosa presença e a mentira ria-se na minha cara ingénua, siderada, agoniada.

Roçou os lábios na minha testa. Murmurou:

- Sayonara… Ana-san.

- Trunks.

- Lembra-te de mim.

- Todos… - Arquejei, os olhos enchiam-se de água. – Todos os dias.

Mas prometera a Goku não chorar e haveria de não chorar.

Entrevi a corrente dourada do Medalhão de Mu, disfarçada sob a blusa que Trunks vestia naquele dia. Ele também viu a minha corrente dourada. Seria o nosso elo inquebrável, apesar de todas as distâncias e de todas as diferenças.

Afastei-me dele.

Acenei à audiência muda com uma mão, como se fosse indispensável fazê-lo. Voltei-me para a máquina das dimensões.

Bulma sentava-se diante dos monitores a operar a consola. Deu-me a indicação de que podia ocupar o meu lugar. Subi pelas escadas metálicas prateadas. Uma rajada de vento levantou-me a saia do vestido, revelando ao mundo as minhas cuecas brancas com florzinhas azuis.

Entrei na cabina, acomodei-me na cadeira vermelha. A cúpula baixava devagar. A máquina vibrava. Procurei por um cinto de segurança mas não o encontrei. Aconcheguei a saia do vestido, encaixei-me no assento vermelho. Na cúpula havia uma janela redonda de vidro verde por onde se podia ver o exterior, semelhante à escotilha de um navio.

Um estalido e estava fechada dentro da máquina das dimensões. No pequeno monitor onde corriam linhas de código piscava um relógio no canto superior esquerdo. Dez horas e cinquenta e quatro minutos. Seis minutos antes do horário. Era importante cumprirmos os horários, antecipá-los se possível, ganhar tempo.

Através da escotilha, vi Trunks e só o vi a ele.

Sem vacilar, agora. E sem lágrimas, Ana-san.

Carreguei no botão amarelo.

Os olhos azuis de Trunks foram a derradeira imagem que levei da Dimensão Z.

***

A viagem entre dimensões começou.

Agarrei-me à cadeira. As engrenagens tinham sido postas em movimento, o sistema arrancava. A cabina tremia terrivelmente e julguei que a máquina se ia desfazer. Fechei os olhos.

O ronco ensurdecedor dos motores encheu a cabina e eu já não sabia se devia utilizar as mãos para me segurar à cadeira, se para tapar os ouvidos.

Com um solavanco maior olhei para a escotilha verde. Já não havia nada, apenas uma mancha indefinida e cinzenta, como se estivesse a atravessar uma gigantesca pastilha elástica. Com um segundo solavanco, o corpo ficou colado à cadeira, todo esticado, a força da gravidade a multiplicar-se e o meu peso a aumentar até à raia do insuportável. Gritei sufocada.

A máquina chiou, imobilizando-se repentinamente.

Inspirei uma golfada de ar que me provocou uma tosse seca. Estava afogada, um peso medonho no peito, nos braços, nas pernas e no corpo todo. Mexi-me devagar, habituando-me à sensação de ter entrado noutra existência. Reparei nas mãos crispadas na cadeira vermelha. Eram as minhas mãos verdadeiras.

Levantei a cabeça.

A Dimensão Real.

O vidro da escotilha partiu-se. A cabina abriu-se com um rangido assustador e eu saltei da máquina, esquecendo-me que tinha uma escada metálica prateada para ajudar-me a sair do veículo. Aterrei de joelhos no relvado, gemendo com a dor. Olhei para trás. A fuselagem estava toda retorcida e, poucos segundos depois de a ter abandonado, a máquina desfez-se em sucata. Fugi dali, esfregando os joelhos magoados.

Estranhei o frio e abracei-me aos braços despidos. O vestido que tinha escolhido não era o mais indicado para um dia pardacento e húmido de outono e dei um estalido com a língua. Devia ter-me lembrado desse detalhe, que não estava programado no computador de Bulma.

A urbanização das Gambelas estava silenciosa.

Regressava aos poucos, respirando a medo aquele ar diferente, reocupando o meu lugar naquela existência, reconstruindo recordações, reorganizando a mente, preenchendo-a com as cenas a preto e branco do telescópio e colorindo-as no processo, apossando-me daquilo que eu já tinha tão resolutamente descartado. A máquina das dimensões estava agora irreconhecível, convertida numa amálgama enferrujada, uma relíquia arqueológica. Não passava de um pedaço de lixo a enfeitar o jardim de uma vivenda. Reconheci o lugar e senti o rosto arrepanhar-se. Era a vivenda de Trunks…

O meu carro estava no sítio onde eu o tinha estacionado, depois de ter vindo da praia. Entrei no carro para me proteger do frio. Tinha a mala no banco do pendura. Que inconsciência! E, ainda por cima, com o carro destrancado. Encontrei as chaves, liguei o motor, agarrei-me ao volante. Conferi a data e a hora. Os cálculos de Bulma estavam corretos, tinha acabado de fazer uma viagem no tempo.

Bem, estava na altura de voltar para casa.

Aumentei o volume do autorrádio.

Escutei uma canção dos Oasis, muito na moda por aqueles primeiros dias do outono de 1996, “Don’t look back in anger”. Pois, devia voltar para casa…

Olhei desesperada para as janelas do primeiro andar da vivenda.

Solucei, ainda mais desesperada.

Nós ainda estávamos ali. Eu… e Trunks. Nos braços um do outro, saboreando a primeira vez que nos tínhamos amado. Dormitando com a cabeça cheia de sonhos. Sem música, porque não tinha havido ninguém disponível para mudar o lado da cassete enfiada na aparelhagem.

E então lembrei-me, numa erupção de som e de luz, qual era a canção que acompanhou os nossos primeiros beijos, a nossa descoberta, as carícias dele nas minhas costas nuas, as minhas mãos pousadas no peito macio dele.

Earth angel, earth angel,

Will you be mine,

 My darling dear,

 Love you all the time

 I’m just a fool, a fool in love with you.

 Earth angel, earth angel,

 The one I adore

 Love you forever, and ever more

A música, que sempre nos acompanhara na minha dimensão, vinha para me assombrar, juntamente com o passado prenhe de memórias dispersas, colagens sem nexo num imenso álbum de fotografias.

Quebrei a promessa feita a Son Goku.

Apertei o volante até a pele das mãos estalar. Os soluços pareciam que me iam estilhaçar as costelas. O rio que despejava dos olhos ameaçava inundar-me o carro.

O meu anjo… O meu anjo perdido.

Take that look from off your face…

Dei um murro no autorrádio para calar o meloso Noel Gallagher, que foi acertar no botão da sintonização automática. Os números correram no mostrador e segundos depois pararam na estação mais próxima.

Ofeguei. Devia ter continuado com o meloso Noel Gallagher.

When the night has come

 And the land is dark

 And the moon is the only light we see

Olhei estarrecida para o autorrádio que transmitia “Stand by me” de Ben E. King. As ironias prosseguiam para me secar a alma. Soluçava, chorava. A última canção que ouvira antes de ter sido sugada para a Dimensão Z.

Olhei para a vivenda. Ainda estávamos ali, os dois, eu e Trunks. Eu escutava aquela canção enquanto me vestia. Ele tinha ido até à cozinha para preparar um lanche, pois eu gastara-lhe as energias e estava esfomeado.

A minha voz tremeu:

- “…No I won’t be afraid… Just as long, as you stand… stand by me…”

Um clarão, um estalido.

A Porta dos Mundos abriu-se e fechou-se.

O silêncio foi ainda maior. Sólido, como uma nuvem de algodão sufocante. Escutei um trovão ao longe, o prenúncio de chuva.

Tinha de voltar para casa. Era tarde… Tarde demais.

Não me apetecia voltar, tinha medo de não me adaptar ao que era a minha vida. As minhas amigas, o trabalho, a vida enfadonha de solteira a morar na casa dos pais, ser a ex-namorada do André.

Sentada no carro, agarrada ao volante, a recordar, a tentar agarrar o momento que já tinha sido, a saber que a aventura tinha mesmo finalizado. Eu e Trunks. Eu e a Dimensão Z.

Apoiei a testa no volante. A corrente dourada mexeu-se e o triângulo dourado saltou para fora do decote. Já não palpitava, estava morto e frio como o meu coração.

A Dimensão Z sumira-se na espiral do Universo, misturara-se com as demais dimensões, transformara-se no lugar mais remoto do cosmos.

Num lampejo de loucura, implorei ao espírito despedaçado do feiticeiro:

- Zephir, faz-me regressar…

Só o vento me respondeu num uivo, gelando-me até aos ossos.

A dor rasgava-me em duas e compreendi que, apesar de ser o meu desejo mais fervoroso, não os veria nunca mais.

Nunca mais.

Continuava a chorar.

As minhas lágrimas, porém, eram partículas minúsculas naquele Universo que eu tinha ajudado a salvar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E com este capítulo corre o pano sobre esta fanfic. Como perceberam, as aventuras de O Feiticeiro chegaram ao fim.

Mas a fanfic ainda não terminou. Falta o epílogo, que irá ser publicado em duas partes. Por isso, deixo-vos com a indicação de sempre:

Próximo capítulo:
Epílogo - 1. O sonho.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Feiticeiro Parte III - O Medalhão de Mu" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.