Relatos. escrita por Gabbi Marina
Ainda tenho medo. Ainda tenho medo que aconteça de novo. Ainda tenho medo que aquela dor insuportável tome conta do meu peito de novo. Ainda choro quando me lembro. Ainda acho que a culpa foi minha. Ainda acho que vou ser culpada por todos. Ainda acho que a morte é a melhor saída.
Quase três anos depois e eu ainda não consegui esquecer por completo. Ainda tenho alguns poucos flashs, ainda sinto a dor. Ainda consigo me sentir ficando mole, posso quase sentir a bebida descendo por minha garganta. Posso, se forçar um pouco a memória, me lembrar do rosto dele. Ainda posso sentir as suas mãos em mim, e com náuseas, ainda posso me lembrar do seu cheiro. Ainda consigo sentir as lágrimas correndo por meu rosto enquanto, em desespero, implorava para que parasse com aquilo. Ainda posso sentir ele me tocando. Ainda posso sentir o medo que senti de tudo acabar. Ainda sinto raiva de mim por ter desistido de lutar. Consigo sentir com facilidade o que senti quando me entreguei. Ainda consigo me lembrar dos meus olhos fechando, e como se estivesse olhando de fora da cena, consigo me ver petrificada pelo medo e pela desistência. Ainda consigo sentir a mão dele tirando a minha calsinha. Consigo, se forçar a memória, sentir seus dedos, sua língua, e seu halito que ainda me dão crises de enjoo e vômito. Não era para ser assim! Desde tão nova sonhava com a “minha primeira vez” de um modo especial. Sonhava com o cara certo, sonhava com quarto cheio de rosas. Mas ao contrário do que sonhei, foi terrível: eu estava quase desacordada. Ainda posso ouvir o zíper se abrindo. Ainda posso me sentir voltando a vida, quase que acordando enquanto ele começava a se preparar para o que iria fazer. Ainda posso me sentir orgulhosa por ter o empurrado e conseguido sair daquele banheiro... Ainda sinto o cheiro do desinfetante. Ainda me lembro de ter corrido, encontrado uma colega e saído dali. Por incrível que pareça, esqueci isso por um tempo. Não pensei naquilo aquela noite, nem na outra, nem na outra. Não pensei por meses. Mas assim como o diabo volta a terra buscar a alma que o fora prometido, as lembranças voltaram.
As lágrimas escorriam. A dor no peito era incontrolável. A dor na alma era terrível. A vontade de desistir, que desde sempre me acompanhava, estava ali, do meu lado, mais forte do que nunca.
Oitenta e quatro comprimidos. Não escolhi nenhum, não me lembro pra que eram, muito menos seus nomes. De montes em montes, de goles em goles, eles era engolidos. As lágrimas já haviam secado. Deitei em minha cama, fechei os olhos, e esperei desesperadamente que ela viesse.
Ela não veio. Ela não quis me encontrar naquela noite. Os cortes nos meus pulsos poderiam muito bem ser um convite maravilhoso para ela, e ainda sim ela se recusou a me buscar. “Tão inútil! Nem para morrer presta.”
Calei-me. Decidi que era melhor esquecer tudo aquilo. Era melhor colocar panos quentes na dor que eu sentia. Errado seria se você pensasse que eu contei a alguém. Não contei. Para ninguém. A não ser para a minha psicóloga, que fui forçada a ir depois que minha mãe deu falta dos comprimidos e viu as centenas de cortes em meus pulsos.
A dor me corroia. Os julgamentos diários pioravam tudo. “Você é gorda. Você é feia. Ninguém nunca vai amar você.” Ainda me lembro de uma piada de mau gosto que dizia que por eu ser gorda e feia eu deveria agradecer o meu estuprador por ter me dado alguns minutos de prazer. Pois então, aqui vai meu agradecimento:
Obrigada. Obrigada por tirar toda a alegria dos meus olhos. Obrigada por tirar toda a vontade de viver do meu ser. Obrigada por ter dado aquele empurrão que eu precisava para tentar acabar com tudo isso. Obrigada por me fazer de atriz: finjo. Finjo que estou bem, finjo que estou feliz, finjo que estou contente, finjo que a minha vida é maravilhosa. Ninguém me conhece. Ninguém realmente me conhece. Ninguém sabe que choro todas as noites. Ninguém sabe que eu não me amo. Ninguém sabe que eu estou destruída.
Obrigada.
Meu estuprador não se lembra de mim. Ele se quer chegou a concluir o que de fato queria fazer. Meu estuprador não se lembra do meu nome, da dor que me causou, dos meus gritos, de minhas lágrimas. Não se lembra do meu pedido de piedade. Ele não sabe que me matou por dentro. Ele se quer sabe que eu penso em me matar todos os dias. Ele se quer sabe que sou infeliz.
Ele não se lembra. Mas eu me lembro. Ele não sabe. Mas eu sei.
“A dor, hora ou outra passa. De um jeito ou de outro, passa.”
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