Hades era um gatinho. E como. Tinha uma vida fácil, as custas de sua proprietária. No máximo espreguiçava-se no sol, se estivesse bem disposto, e dormia no sofá, mais precisamente, aonde a mulher preferia sentar. Pirraça, talvez. Entretanto, durante a noite, não tinha preguiça nenhuma, e saía sempre para brincar com as gatinhas.

Era belo, bem cuidado, saudável, carinhoso. Varava noites tendo nada mais que diversão com todas que encotrasse. Era comum ouvir elogios por sua educação, seu jeito nobre e, principalmente, sobre seus olhos azuis. Eram tão, mas tão azuis, que pareciam tragar qualquer um que os fitasse.

Apesar de sua vida boêmia, Hades amava sua dona, e ela o amava de volta. Mesmo que sofresse com suas saídas noturnas, que não eram nada secretas. Por vezes, a pobre era obrigada a ouvir os barulhos durante a noite toda. Jamais o repreendera por isso, pelo menos até recentemente. A mulher andava emocional, comendo mais do que o normal, o que explicava o peso extra. Gritava com Hades, e nem seus belos olhos azuis a acalmavam.

Certo dia, a senhora perdeu as paciências. Farta da boa vida e falta de interesse do companheiro, resolveu abandona-lo. Livraria-se dele, e mudaria de casa. Deixaria para trás tudo que a ligasse ao amado. Pagou-lhe uma longa estadia em um hotel local, mas não avisou a ninguém que não o buscaria ao acabarem as diárias.

Assim foi feito. empacotou o essencial e mandou embora, enquanto Hades curtia o hotel, sabe-se lá fazendo o que; Seu coração era mole, e teve o cuidado de contratar um hotel de renome e cheio de mimos. Mas, aos olhos do gato, não passava de longas e frias noites. Queria sua amada de volta, e não ficou no hotel durante o tempo previsto. Burlar regras, chegar às escondidas e passear pelas ruas, eram coisas que sabia fazer muito bem. Conhecia toda aquela cidade, chegaria, mesmo se tivesse de andar o dia todo. E chegou.

Era tudo que Hades queria, voltar pra casa. Mas quando chegou lá, não havia ninguém. Procurou em todos os quartos, e não encontrou nada. Nem mobília, nem eletrodomésticos, nem comida, nem a amada. Apenas algumas caixas. Voltou para a rua, desiludido, pensando se ela, ou alguém o estaria procurando. Não entendia o que estava acontecendo. Andou sem rumo pela rua escura, o sol havia se posto há algumas horas. De tão preocupado, nem reparou que um carro se aproximava.

O remorso tomou conta de seu coração, como num aperto. Desceu do carro, já em prantos, e correu até o cadáver. Os belos olhos azuis ainda estavam abertos, mas o coração já não pulsava. Olhou para a antiga casa, e não teve coragem de entrar para pegar as últimas caixas da mudança. Sentia uma forte dor na barriga, e achou que fosse vomitar. Olhou para o amado no chão, e teve certeza de que não era o único que morrera naquela noite.