Ela corria pela grama, enquanto a cachorrinha tricolor beagle corria atrás, parecia feliz. Usava suas justas roupas de verão e os longos fios cor de mel estavam presos em um alto rabo de cavalo. Ela estava descontraída e segura nos fundos da nada humilde casa de verão de seus pais. Parou de correr e pulou virando o corpo, ficando de frente para cachorra que a perseguia, atenta a cachorrinha parou empinando o rabo esperando o próximo movimento da dona. A garota sorriu travessa, pulou para o lado se abaixando e pegou um osso branco encardido feito de algum material esquisito e fibroso, típico brinquedo para cachorro morder, mais dois passos e tinha um disco de plástico azul na outra mão. A cachorrinha latiu, enquanto a menina a encarava como alguém que chama para o duelo.

“Este é meu escudo” a garota levantou o disco azul menor que a sua mão e mordido nas bordas. “Esta a minha espada.” Sacudiu o osso encardido. A cachorra sacudiu o rabo empinado, em meio a um sorriso a garota gritou: “E você é o dragão que irei derrotar!”

A menina sai correndo atrás da cachorra que fugiu. As duas correram em círculos, de um lado para o outro, paravam, encaravam se e voltavam a correr, até que a garota sentou se jogando no chão. Entendendo o chama a pequenina de quatros patas deu meia volta pulando encima da dona.  As duas travavam uma verdadeira batalha, e nenhuma delas parecia irritada ou cansada daquilo. A cachorrinha lambia o rosto da garota que a puxava para baixo, tentando prende-la com os braços e pernas, a cachorra se sacudia toda se livrando da dona e depois avançava a lambendo novamente.

Lá de cima do telhado, atrás da cacha d’ agua, Hugo via a brincadeira que não tinha fim. Estava encantado com o sorriso da morena, com a felicidade que ela emanava, com o ar infantil ainda envolto naquele corpo que começa a se tornar de mulher. As risadas, os gritinhos, era uma doce melodia que o puxava para o passado.  O garoto quase homem, tinha os cabelo moreno curto caindo nos olhos, usava roupas escuras, se camuflava bem na sombra. Já não via mais uma morena quase mulher, mais sim a criança que era quase dez anos atrás. Vi sua garotinha que usava camiseta do personagem favorito e short florido.

Aquela garotinha corria atrás dele, assim como aquela garota corria atrás da cachorra. Sorridente pulava encima dele, enquanto ele tentava segurar os braços dela dizia: “Dragão você não irá me pegar!” Depois começava a fazer cosquinhas arrancando gargalhadas e até gritos da pequena. Todas as tardes eles rolavam naquela grama, em batalhas que ela parecia sempre ganhar. E anoite, quando ela se deitava na cama, ele passavam a mãos sobre seus cabelos cor de mel, e a beijava na testa sussurrando: “Boa noite, dragãozinho.”

O som das risadas da garota, ao fundo de suas lembranças fazia o peito dele doer. Sentia nos olhos lágrimas que não iriam cair, nem mesmo chegavam a brotar, mas estavam ali para lembrar de sua dor, faze-lo sentir o peso do abismo entre ele e a garota. Hugo respirou fundo, tentando amenizar a vontade quase insana de ir até lá. A telha que sustentava seu pé esquerdo escorregou, e em um movimento ágil retomou o equilíbrio segurando o pedaço de cerâmica antes que escorregasse caindo no quintal. Mesmo evitando o mais espalhafatoso, o barulho estranho foi o suficiente para parar a brincadeira na grama. A garota se levantou a cachorra latiu para o teto, e ambas decidiram entrar para a casa. A garota porque perdeu a vontade de brincar, a cachorra simplesmente seguiu a dona, talvez brincassem mais lá dentro.

Hugo se levantou e desapareceu na escuridão. A garota havia esquecido a tristeza e ele deveria esquecê-la. Mesmo que não estivessem no além, céu, purgatório ou qualquer lugar que significasse morte, já não era mais vivo e ainda que tivesse um corpo sólido, naquele lugar não passava de uma assombração.