Somebody That I Used To Know escrita por Luke Lupin


Capítulo 1
"Most nights I dont know anymore"


Notas iniciais do capítulo

Some Nights - Fun.



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“Ora, como eu sei em quem confiar assim, do nada?

“Nunca tive uma amizade forte em nível de poder contar tudo. Já tive amigos, aliás, ainda os tenho, claro; mas nunca algo com laços fortes do tipo que a gente vê em filme estadunidense com confissões e juras de amor eterno etc. e tal, não sei nem se eu quero alguém assim, porque normalmente nesses filmes essas pessoas acabam traindo umas às outras, isso é triste.”

Escrevia Henry em seu caderno de capa marrom meio rasgada e lisa, durante a madrugada, deitado em sua cama com o abajur ligado e os cobertores nos joelhos.

Estava sem sono.

Olhou no relógio que ocupava o meio do criado-mudo e constatou que eram quase três da madrugada e vagamente se lembrou de que seu primeiro dia de aula seria no dia seguinte, numa escola nova, estava ansioso, por isso não dormia.

Sempre trocara muito de escola, porque sua mãe sempre teve que migrar de um escritório a outro de tempos em tempos porque essa era basicamente a função dela. Ela tinha que colocar em ordem tal empresa de tal grupo porque essa tal empresa precisava voltar a crescer no mercado, mesmo que ela não estivesse de fato ruim nele. Henry nunca entendeu muito bem o porquê disso, mas sempre entendeu que tinha que se mudar.

Mudou-se uma vez quando ia para a segunda série, depois se mudou novamente quando iria entrar na quarta, quando ia entrar na sexta e finalmente quando ia entrar na oitava. E ainda continuava na cidade desta última, agradecendo a todos por isso.

Sua mãe havia lhe dado certeza plena que ficariam no mínimo seis anos na atual cidade porque havia várias empresas ali que precisavam dos serviços dela e todas elas eram multinacionais, portanto grandes e complicadas e vários outros nomes complicados.

Entrar em uma escola nova de tempos em tempos é frustrante e impactante para muitas crianças, mas Henry nunca entendeu esse fato, já que nunca aconteceu nada com ele e achava aquela mudança bem normal.

Sempre que via filmes em que as crianças problemáticas tinham como característica principal terem mudado de escola muitas vezes devido às mudanças trabalhistas de seus respectivos pais, ficara se questionando se ele era o anormal ou o normal. Mas no fundo não se importava.

Só se importava mesmo com seu irmão, Thiago, de 19 anos, que cursava engenharia de alimentos na faculdade e tinha que ficar sozinho na cidade onde estudava, porque não podia ficar pulando de uma para outra com ele. Sempre que possível passava um sms e perguntava se estava tudo bem e se ele estava comendo direito, coisas que sua mãe deveria fazer, mas nunca fazia, dizia que não tinha tempo, ou qualquer outra desculpa esfarrapada.

Henry sempre ficava sozinho em casa, de um dia ao outro, repetidamente. Às vezes sua mãe aparecia para almoçar ou para jantar e de vez em quando para passar a noite ou até mesmo um final de semana, o garoto sempre perguntava onde ela ficava e ela sempre “ficava num hotel perto da empresa” porque era mais fácil e ela podia economizar com transporte. Entendível, de certa forma. Mas mesmo assim o garoto sentia falta dela.

Às vezes ele tinha sorte de seu irmão ligar para ele, durante o dia, só para saber como estavam as coisas e se ele “estava pegando alguma gatinha”, perguntava da mãe e também como ia a escola.

Afirmar que Henry e Thiago se criaram sozinho não era mentira, desde que o pai deles havia morrido (e isso completaria seis anos no próximo Natal) e a mãe deles os deixara sozinho em casa para trabalhar, eles foram obrigados a saber como se virar.

Para se ser justo com ambos os lados da história, deve-se dizer que eles nunca ficaram precisando de nada, sempre que pediam dinheiro para a Marie, a mãe deles, ela encontrava um jeito de mandar ou sempre que precisavam de algo mais caro eles pediam e ela ia junto com eles comprar, sempre que era o dia de matrícula na escola, ela estava prontamente presente, sempre pagava todas as contas em dia e sempre passava os feriados como Páscoa, Dias das Mães, Natal e Ano Novo com eles.

Irritado consigo por não conseguir dormir, Henry se levantou da cama e foi ao banheiro lavar o rosto. Ao voltar, desistiu de dormir. Acendeu a luz do quarto, puxou seu notebook, se sentou na cama, com as costas na parede, e ligou o aparelho.

Estava entediado e ainda era três e meia da manhã e só sairia de casa para a nova escola dali duas horas e meia. O que faria na internet a essa hora da manhã? Bom, não tinha ideia. Estava sem vontade de assistir aos vídeos que os adolescentes assistem de madrugada, estava sem vontade de ficar no facebook. Decidiu por deixar o Twitter aberto, como de costume, e foi ver imagens que lhe davam vontade, buscava inspiração para um poema, o primeiro poema antes de sua nova escola.

Acabou por encontrar uma imagem do universo, com todas suas estrelas e algumas formações de constelações e uma ou duas outras estrelas importantes. Puxou seu caderno que estava logo ao lado e, embaixo do texto onde se confessava, começou a rabiscar uns versos. Acabou por escrevê-los tantas e tantas vezes que no final nenhuma delas ficou de fato aceitável, estava desconcentrado demais para conseguir escrever algo com nível, mas deixou-os lá, uma das regras de seu caderno era que não poderia apagar nada.

Encostou sua cabeça na parede e se perdeu em pensamentos.

“Cara, amanhã entro numa escola nova pela quarta vez e por que eu estou tão ansioso para isso? Das outras vezes foi tão normal que...”

E de fato foram.

Henry sempre ligava o “foda-se” e encarava a nova escola na boa. Demorava no máximo uma semana ou duas para conseguir alguém para passar o intervalo junto e para trocar uma ideia e depois sua vida voltava a se repetir, escolarmente falando.

Nunca foi o melhor exemplo e notas, sempre na média ou no máximo algum oito ou nove, ter mais de um “dez” era raridade, mas ele sempre fora esforçado, principalmente em química e português, onde fazia questão de ir bem. Tinha planos de entrar numa ótima faculdade pública onde poderia estudar engenharia química, ser feliz para o resto da vida e escreveria ficções.

Mas dessa vez estava diferente, estava ansioso.

A escola para qual ia era técnica e tinha certo nome na atual cidade que residia. Sabia que teria que estudar mais e que passaria mais tempo na escola, mas não era esse o motivo de ansiedade, pelo menos achava que não era.

Sempre julgara sua mente como algo confuso, mas dessa vez ela passara dos limites.

“Será que estou com medo do que vai acontecer quando eu entrar?”

Era uma possibilidade, mas era muito remota. Não se importava muito com nada nem ninguém, porque não queria criar laços afetivos, já que sabia que iria ter que partir alguma hora. Mas estar ansioso é algo que nunca esteve, nem algo que queria estar.

“Por Rá, o que está acontecendo comigo?”

Olhou no relógio, quatro horas.

Duas horas até sair de casa, ele estava sem algo para fazer, sua cabeça estava literalmente vazia e seu cérebro não sentia sono.

Começou a rir.

Já tinha aceitado que não dormiria, mas só percebera agora que ele iria sem dormir para a escola, estava refletindo o número de bobagens que faria e acabaria por dizer caso alguém puxasse assunto com ele.

Colocou o notebook de lado, levantou-se e foi para a cozinha. Abriu a geladeira e constatou que não tinha comida feita.

Pegou três ovos, queijo, presunto, ketchup, manteiga, tomate, cebola, batatas, calabresa, shoyu e salsinha. Uma receita própria, que apenas ele sabia e que era a melhor coisa que ele já tinha comido na vida.

Descascou três batatas e cortou-as em cubos, colocou para cozinhar; jogou óleo e manteiga numa frigideira e ligou em fogo baixando, enquanto picava a cebola, o queijo e o presunto; quebrou os três ovos e colocou todos eles na frigideira, adicionou a cebola, o queijo e o presunto e mexeu com uma colher de pau, misturou tudo muito bem e tampou a panela; picou o tomate e a calabresa e adicionou na panela, ficou mexendo tudo enquanto ia aumentando o fogo de tempos em tempos, adicionou o shoyu e a salsinha e começou a mexer como se a vida dependesse disso.

“Quatro horas da manhã e eu to fritando ovo, o que meus vizinhos vão pensar”.

Morava num prédio de vinte andares e morava no décimo, o que significava que alguém poderia sentir o cheiro de um jeito ou de outro, caso o nível de fritura fosse poderoso. A simples ideia de imaginar alguém se perguntando quem seria o infeliz que estava com a frigideira ligada fez com que Henry risse.

E por isso quase queimou sua comida.

Mas caiu na real antes, viu que o queijo tinha derretido e as batatas estavam cozidas, com uma escumadeira pegou todas elas e jogou na frigideira, deixando-as lá até que sua casca ficasse crocante.

Desligou o fogo e colocou o seu mais-que-omelete-menos-que-comida-de-verdade no prato, pegou garfo e faca e voltou para seu quarto, sentando em sua cama para comer enquanto olhava para a janela e via a escuridão das quatro e meia da manhã no céu.

O sono realmente estava longe dele, na verdade, parecia que ele tinha tomado um litro de café forte e sem açúcar antes de ir se deitar e agora estava sofrendo as consequências disso, isso era intrigante, acredite.

— Caralho, isso é muito bom – falou em alto e bom som para as paredes do seu quarto. – Ainda tenho que arranjar um jeito de dar isso aqui pra algum chefe de cozinha foda e fazer com que vire mundial. Mas eu tenho que patentear antes. Mas se faz patente de comida? Bom, sei lá.

Não era a primeira vez que Henry falava consigo mesmo fora de seus pensamentos. Essa prática tinha se tornado muito comum depois de que seu irmão entrou para a faculdade e ele passou a ficar dias inteiros sozinho.

Como não costumava se ausentar muito tempo de sua residência, provavelmente ninguém já tinha ouvido Henry falar com si mesmo, a menos que haja câmeras em sua casa e ele nunca percebera.

— Eu acho que isso é engraçado, sabe, toda essa frescura de não conseguir dormir. Porra, é só mais uma escola que eu vou entrar! Claro que essa vou ficar até o final, mesmo que só dure três anos, eu ainda vou ficar até o final! Por que na Terra Ísis está fazendo isso comigo? Achei que você gostava de mim – terminou o garoto, olhando pra cima logo depois de terminar de comer.

A noite era iluminada apenas pela lua, em sua fase minguante. As estrelas que apareciam eram poucas e tímidas, seus brilhos eram fracos, talvez pelos seus anos-luz de distância. Henry resolveu se apoiar da borda da janela e colocar a cabeça para fora.

Uma leve e gelada brisa atingiu sua franja, fazendo-a se mover no sentido do vento.

Olhou para baixo e viu as luzes dos postes acesos na rua, algumas motos passando em sua rua, de vez em quando buzinavam. Voltou seu olhar para cima e prestou mais atenção na Lua.

Linda e poderosa.

— Khonsu está querendo se aparecer hoje, mas não nego que de fato está bem atrativo. – falou para o ar – Acho que todos deviam fazer oferendas para ele. Para ele ou para Ártemis. Acho que ninguém deveria parar de cultuar os deuses de mitologias antigas.

Riu de si mesmo. Agora conversava com o vento. Vish.

Em silêncio, ficou olhando a grande cidade que estava, uma zona de manhã, um silêncio poderoso de noite, não pensava em nada e, agora, não falava nada. Apenas estava lá, observando e se deixando observar.

Qualquer pessoa que passasse pela rua, se tivesse uma visão digna, veria um rosto que saia pela janela do décimo andar, provavelmente não distinguiria nenhum traço marcante, mas ainda assim veria alguém.

Se por algum motivo do destino alguém que passasse pela rua carregasse um binóculo, poderia vê-lo completamente. Veria um rosto magro, marcado principalmente por lábios finos e mais claros que o normal, cabelo preto feito nanquim e liso, penteado no estilo de Andrew Garfield, olhos azuis claros, maçãs do rosto marcadas com uma precisão quase imperceptível, sobrancelhas meio grossas e um nariz nem pequeno nem grande.

Retornou seu rosto para dentro do seu quarto e olhou para um espelho que ocupava o lado esquerdo de seu armário. Seu corpo era refletido com perfeição. Estava apenas de cueca azul clara, não estava acostumado a ficar com coisas como pijama para dormir porque não sentia a menor necessidade, além de ganhar tempo no outro dia para colocar sua roupa para ir à escola.

Seu corpo seguia os traços de seu rosto, era magro por inteiro. Os únicos lugares que tinham um pouco mais de carne eram suas coxas e sua bunda, não era algo muito avantajado ou mesmo muito atrativo, mas eram as únicas partes que mudavam do resto.

Sabe-se lá quanto tempo ficou se olhando no espelho, mas quando sentiu vontade de parar de se admirar, resolveu olhar para o relógio. Cinco horas. AINDA.

— Que coisa frustrante do caralho, mano! – falou para as paredes, novamente – será que essa porra de tempo pode passar mais rápido? CRONOS! O que você anda fazendo aí no Tártaro? Tá na hora de parar de focar em humanos e passar a se preocupar com os seus pedaços aí.

Resolveu tomar banho, talvez pela quarta vez no dia.

Demorou a maior quantidade de tempo que conseguiu sem se sentir incomodado com o excesso de água e saiu assim que seus dedos começaram a se enrugar. Secou-se, saiu do banheiro e voltou para o quarto, nem olhou para o relógio e voltou a se deitar em sua cama, jogando sua toalha molhada no chão e sem secar seu cabelo.

Começou a cantarolar uma música aleatória enquanto observava o tom de branco-acinzentado que o teto de seu quarto tinha. O tempo não passava rápido. Ele não tinha o que pensar. Ele não tinha em quem pensar. Ele estava começando a se irritar de verdade.

Num último suspiro de desespero, voltou a pegar seu caderno com capa marrom e seu lápis perdidos em seu edredom.

“Parece que algo mudou em mim, tipo, de verdade. Estou com medo do que vai acontecer depois disso. Agora estou ansioso para o primeiro dia de aula (que é daqui algumas horas) e depois? Não vou conseguir escrever uma dissertação ou vou esquecer algo importante da história brasileira?

“Será que sentir medo é algo normal para jovens de quase dezesseis anos ou nem? Queria conhecer mais gente para poder me espelhar...

“Acho que já faz uns três dias que minha mãe não volta pra casa, ela já chegou a ficar uma semana fora, mas eu estou sentindo falta dela dessa vez, poxa, ela podia aparecer para pelo menos me desejar boa sorte ou me levar de carro, ao menos um dia, não é pra tanto, ou será que é?

“Ela me deixa tão... confuso”

Parou para ler o que tinha acabado de escrever, o que era isso?

— Desisto dessa porra!

Levantou-se e foi estender a toalha no varal. Voltou, abriu o armário e começou a ver o que ia vestir. Acabou escolhendo pelo quase usual: calça preta, tênis branco e a camiseta da escola, não sabia se era obrigado a usá-la, mas decidiu que usaria pelo menos no primeiro dia.

Arrumou sua cama, desligou seu notebook, checou suas coisas para a escola, lavou a louça, colocou seu relógio, penteou seu cabelo, arrumou seu quarto, colocou as almofadas em ordem no sofá, deixou o tapete reto, organizou todos os quadros da casa, regou todas as plantas, abriu as janelas, colocou as cortinas para dentro, levou o lixo para fora e substituiu por sacolas novas, abriu a geladeira, abriu o freezer, tomou refrigerante, lavou o copo, secou toda a louça, guardou toda a louça.

Cinco e meia.

— MEU RÁ! – explodiu o garoto. Queria gritar, na verdade. Gritar como se não tivesse mais motivos para viver e perder todo o seu ar. Mas não podia porque ainda era cinco e meia e só podia fazer barulho depois das sete, repare como o tempo estava odiando ele. – Quer saber? Vou sair agora também, demora uma hora pra chegar lá e se eu andar devagar faço demorar uma hora e meia.

Foi para o banheiro e escovou os dentes, logo antes de apagar a luz olhou de relance para o espelho em sua frente e percebeu que seus olhos estavam terrivelmente fundos.

— Essa é a cara que todos vão ver no primeiro dia de aula, sortudos eles, só que não muito.

Pegou dinheiro para poder comer algo no intervalo e enfim saiu de casa.

Precisava pegar um ônibus, um metrô e um ônibus de novo para chegar a sua escola.

— Viverei uma odisseia toda manhã a partir de hoje, vida você é legal, curto muito você – falou, sem medo de ser taxado como louco, parado no ponto de ônibus, enquanto esperava por ele. Este que não demorou mais do que dez minutos para passar.

Entrou.

Basicamente só estavam no ônibus ele, o cobrador e o motorista.

Sentou-se no banco que estava mais perto da porta de saída e pegou o livro que carregava em sua mochila. Sempre carregava um livro quando era possível, de acordo com seus próprios princípios: nunca se sabe quando vai ser necessário fugir um universo desconhecido. O livro da vez era The Perks of Being a Wallflower por Stephen Chbosky, estava envolto num plástico onde sempre guardava seus livros, pois não queria que eles dobrassem ou ficassem com qualquer tipo de marca, cuidava deles melhor do que cuidava do seu estômago. Era a quarta vez que lia aquele livro e simplesmente achava melhor a cada nova vez que começava. O garoto teria perdido o ponto em que desceria se este não fosse o ponto final.

Desceu do ônibus e pegou as escadas para chegar ao metrô, não tirou os olhos do livro uma única vez. Felizmente ou não, o terminal estava mais cheio que o ônibus, o que significava mais pessoas para ele desviar enquanto lia seu livro. Muitas pessoas juntas irritavam-no, principalmente quando elas transpareciam serem incapazes de ver coisas óbvias, como deixar as pessoas saírem do vagão antes deles entrarem.

— Cercado por idiotas – cochichou para si mesmo. Uma senhora que tinha no máximo quarenta e cinco anos pareceu ter ouvido e ficou encarando o garoto enquanto não chegava seu ponto de descida.

Henry teria que andar onze estações antes de descer, não andava muito de metrô porque não eram todas as cidades que ele viveu que o possuíam, mas ele tentou aprender o nome das estações e a que teria que descer o mais rápido possível antes que começassem as aulas, além de fazer o caminho de ida pelo menos duas vezes para ter certeza de que não erraria nada no primeiro dia. Ele tinha pouca confiança com algumas coisas, essa era uma delas.

Sua descida chegara e ele resolveu fechar o livro (preocupante). Subiu as escadas e ficou atento nas placas que passava para ter certeza de que aquele era o caminho a seguir. Queria que acontecesse tudo, menos se perder na cidade grande em que se encontrava no momento.

Depois de algumas curvas e alguns lances de escada chegou ao terminal de ônibus. Resolveu olhar no relógio, seis e três. Pelo menos foram os últimos trinta minutos que passaram mais rápido naquele dia.

O ônibus chegou rápido, talvez fosse por causa da hora, ônibus sempre chegam em horas engraçadas.

Subiu e viu que dessa vez o ônibus viria mais cheio que o primeiro, coisas do horário novamente. Sentou-se perto da porta e voltou a ler. De vez em quando olhava por cima de seu livro para ter certeza que seu lugar de descer ainda não tinha chegado.

Já tinha lido umas quinze páginas quando sua parada chegou, guardou o livro cuidadosamente e desceu.

O vento bateu e o atingiu em cheio no rosto, percebeu que não tinha se lembrado de pegar um casaco para ele. Se fizesse frio durante aquele dia, com certeza passaria frio. Henry era o tipo de pessoa que sempre sentia mais frio que as outras.

Caminhou por algumas ruas e enfim atingiu o objetivo. Consultou o relógio e constatou que eram seis e meia. As aulas só começavam às sete, será que poderia entrar antes do sinal para a primeira aula bater? Bom, esperava que sim. Sua resposta foi obtida assim que chegou ao portão da escola e viu que ele estava aberto.

Entrou.

O pátio estava do mesmo jeito que estava quando ele foi fazer a matrícula, exceto pela pouca quantidade de gente dessa vez. Foi caçar seu nome nas listas que tinham como título “Química – EM” e não demorou muito para encontrar Henry Fritz na lista do Primeiro G, de acordo com essa mesma lista, sua sala era terceiro andar do prédio três.

— Será que se eu pedir para Atena um pouco de ajuda hoje ela me dá? Ou será que Toth está melhor ultimamente? – suas mãos foram até sua mão esquerda, no dedo mindinho, em busca de um anel que mostrava a metade de uma coruja e a metade de um íbis no meio. – Nossa que legal, que mais você vai esquecer no dia de hoje, senhor Fritz? Que tal sua cabeça no banco de trás do primeiro ônibus.

Afastou-se das listas com os nomes e deu uma olhada geral, tentando ver se conseguia identificar algo. Sem sorte. Tentou usar a lógica. Havia um edifício perto dele que só possuía dois andares, logo não era o seu. Um a menos. Olhou para os outros quatro e percebeu que todos tinham, pelo menos, três andares, logo teria que ir um por um e descobrir qual era o seu.

O último que olhou era o que devia entrar.

— Mas que tipo de numeração é essa? Como que o prédio cinco é o primeiro e o três é o último? I mean – estava confuso, mas entrou de qualquer jeito.

Subiu pelas escadas até o terceiro andar e viu que sua sala estava vazia, nada diferente do que esperava. Sentou-se na fileira mais perto da janela, na terceira carteira, teria uma visão ótima da porta e da lousa, poderia ver todos que entravam e prestar atenção às aulas.

Em menos de dez minutos, outras pessoas começaram a entrar na sala de aula, Henry olhou detalhada e disfarçadamente para cada uma delas, mas aparentemente eles não fizeram a menor questão de notar um menino magro com rosto enfiado num livro. Talvez por causa disso ou não, ninguém sentou perto dele também, exceto quando os lugares começaram a ficar escassos longe da fileira da janela.

Passando os olhos pelo seu relógio, notou que faltavam cinco minutos para o sinal bater. Resolveu ficar de olhos em seu livro até ter que encarar as pessoas com quem passaria o resto do ano. Não estava lá tão ansioso para isso.

O sinal bateu, a professora entrou na sala e fechou a porta.

— OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOláááááá – falou a professora fazendo um tom agudo no prolongado som do fonema /o/ e um mais agudo ainda no resto da palavra, lembrava muito um pássaro. A maioria riu, Henry virou uma página de seu livro. – Sou professora de gramática e literatura para vocês esse ano, meu nome é Clara. – Nesse momento, Henry resolveu fechar seu livro e olhar para a professora, foi só então que percebeu que ela o encarava. Descrever seu rosto era um tanto quanto difícil, era meio gordo e magro ao mesmo tempo, olhos e cabelos castanhos, dentes amarelados e o nariz estranhamente menor que o dele. – Eu espero que esse ano seja gratificante e educativo para todos, assim como espero que não tenhamos muitos problemas. Gostaria que cada um se apresentasse dizendo seu nome e idade.

Todos foram falando, um a um, começando pela fileira da porta. A vez de Henry demorou, mas chegou. Depois dele, restavam três pessoas, ao chegar na última ouviu-se uma batida na porta.

Todos voltaram a atenção para ela e depois para a professora, que parecia em choque. Era uma garota de cabelos azuis, que usava óculos preto e maior que o rosto dela, mas que combinava muito bem com ela, usava uma camiseta preta com escrituras em branco que diziam “Not from the real world”, all-star preto estava em seus pés e jeans cobriam suas pernas, sua mochila também era preta e com bottons que Henry acabou por reconhecer de primeira, porque faziam parte de sua coleção de séries favoritas.

— Com licença, professora – disse a garota – acabei errando o prédio, porque confundi os números, a senhora me permite entrar?

Um aceno positivo com a cabeça foi a resposta da professora. Henry tomou a liberdade de dar uma olhada por toda a sala enquanto a garota se sentava. Todos os alunos olhavam para a garota, todos com olhos vidrados e chocados. O garoto se perguntava se aquilo era porque a menina tinha chegado minutos depois do sinal bater ou se, onde apostava com mais certeza, todos ficaram espantados com o cabelo azul da menina, azul escuro, puxando bastante para o roxo.

Voltou sua atenção para a garota, já sentada em seu lugar, que ocupava o último da segunda fileira. Ela retirava os materiais da mochila e os colocava em cima da mesa, um fichário azul, que lembrava uma cabine telefônica, “Você deve estar brincando com a minha cara”, pensou Henry. Ela retirou seu estojo e pegou algumas folhas. A sala ainda em silêncio.

— Então, querida – recomeçou a professora – poderia nos dizer seu nome e sua idade?

— Billie, quinze anos. – Henry não tinha percebido antes, mas agora via que a garota possuía um sotaque levemente diferente, arriscava dizer que vinha dos Estados Unidos.

— Muito prazer, sou Clara, professora de gramática e literatura.

A garota escreveu algo em sua folha, provavelmente o dia e o nome da professora, Henry não tinha percebido, mas era o único que ainda encarava a garota, e não era de uma forma discreta. Billie deve ter percebido e o encarou de volta. Os dois ficaram se olhando por poucos segundos até que ele percebeu que ela o encarava de volta. Sua atenção voltou rapidamente para o seu caderno, sentia que seu rosto tinha ficado um pouco mais quente. “Mas o que foi isso?”, Henry estava em choque, sempre fora muito discreto, o que tinha acabado de acontecer?

Soltou uma risadinha abafada e o menos audível possível, para tentar não chamar muita atenção. Foi só, então, que percebeu que o cabelo azul da menina não tendia diretamente para o roxo, mas que combinava perfeitamente com o tom de azul vindo do fichário, como ele não tinha percebido esse tom antes?

E aquele tom de azul era o seu preferido, afinal, não conhecia muitas pessoas de seu país que também gostavam de um certo homem louco com uma cabine telefônica azul.


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Notas finais do capítulo

Ísis - deusa da magia (mitologia egípcia)
Khonsu - deus-lua (mitologia egípcia)
Rá - deus-sol (mitologia egípcia)
Ártemis - deusa da noite e da caça, representação da Lua (mitologia grega)
Cronos - titã que possuía poderes que envolviam o tempo (mitologia grega)
Tártaro - prisão subterrânea (mitologia grega)
Atena - deusa da sabedoria (mitologia grega)
Toth - deus do conhecimento (mitologia egípcia)
"um certo homem louco com uma cabine telefônica azul." Para quem conhece, referência clara a Doctor Who
Reviews?~~



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