Enquanto observávamos as almas, escondidos por sobre a pedra, eu pude me dar conta da crueldade dos métodos de Tifão e dos Menelaus.  O patrão de Harriet era o encarregado de  supervisionar os trabalhos dos fantasmas, enquanto outros dois espectros, um homem e uma mulher, chamavam as almas  para reencarnarem.

Enquanto a mulher cantava, convocando as almas, o homem as aprisionava assim que elas  apareciam na outra margem do Lete.  Cerca de 15 fantasmas, que eu suspeitava serem escravos, ajudavam o homem a sequestrar as almas.  Senti uma fúria imensa tomar conta de mim. Eles estavam roubando a liberdade daquelas pobres pessoas, mesmo depois da morte.

- O que nós vamos fazer? – Perguntou Tales. Eu sentia a raiva dele só pelo tom de Voz.

-Temos que mandar eles de volta para o fundo do Tártaro- diz Harriet.

-Mas como nós vamos fazer isso? – Pergunto observando o homem- Quer dizer, eles não podem morrer,  podem?

-Há coisas piores do que a morte Penny- disse Harriet séria- Essas pessoas não merecem a honra de uma vida pós morte limpa.

Com isso eu podia concordar.  Enquanto eu os observava percebi que não havia outra alternativa, teríamos que lutar.

-Eu acho que teremos que enfrentá-los- falei olhando para os dois.

Tales concordou com a cabeça.  Percebi que era exatamente o que ele queria.  Harriet pareceu um pouco assustada, mas assim que olhou de novo para o antigo patrão, seu rosto assumiu um ar de desafio e eu soube que ela estava pronta para a luta.  Então, como se seguíssemos uma ordem, saímos do nosso esconderijo na pedra e caminhamos em direção aos fantasmas.  

Assim que o patrão de Harriet nos viu ele soltou um riso zombeteiro.

-Olha só quem está aqui! Se não é a encrenqueira da Harriet Tubman.  Ouvi dizer que nem na morte você deixou de arrumar confusão.

-Eu nunca vou deixar de arrumar confusão Charles! Não para você.

-Não me chame pelo primeiro nome sua imunda!

Ele tenta atingi-la com o mesmo feitiço que usara para torturar a pobre alma que vimos antes mas, antes que ele possa atingi-la, Tales lança um contra feitiço e Charles começa a gritar.  

-Você não vai machucá-la- diz Tales- nem desrespeitar o reino do meu avó novamente.

-E quem é você para me dizer o que fazer neto de Plutão?

Tales atirou uma flecha certeira em Charles. Como o esperado, nada aconteceu.

-Ha! Semideus idiota. Você acha que eu posso ser derrotado com uma flecha?   Eu sou poderoso demais para você criança. 

       Ele diz mais algumas palavras em latim. Para meu completo desespero, Tales começa a se dobrar de dor.

-Tales!- Grito, fazendo com que ele se apoie em mim.  Assim que o homem para de lançar o feitiço, ele se recupera.

-Estão vendo? Vocês são patéticos.  E o melhor de tudo é que foi seu avô quem inventou esses feitiços- diz o homem completamente alegre.

-Seu...- diz Tales

- Deixe o menino em paz Charles! 

-Ah Harriet, sempre cuidando dos escravos menores. Sabe esses dois seriam muito uteis para meu irmão. Quanto a você, eu poderia mandar sua alma para a danação eterna, num piscar de olhos.

-Você não ousaria- digo tentando parecer corajosa. A má noticia é....isso não funcionou.

O homem olhou para mim e começou a rir.

-O que você vai fazer Grega? Lutar comigo? Você deveria ser mais esperta.  Você não tem a menor chance, eu posso acabar com sua alma num segundo.  E sabe, somos praticamente 50 contra três.

Como se para provar o que Charles estava dizendo, cerca de umas 20 almas se aproximaram sibilando raivosas para nós.  Elas pareciam extremamente satisfeitas com a oportunidade de nos fatiar em pedacinhos, ou conseguir cada pedaço de nossas almas.  Elas me lembravam muito aqueles zumbis do clipe do Michael Jackson. Eu sei, é um pensamente idiota, mas minha mente costuma pensar essas coisas absurdas quando está numa situação de perigo iminente.

-Lute comigo demônio!- Diz Harriet- Eu sei que você quer isso!  Eu sei que você adoraria ganhar de uma grega negra como eu.

-Harriet, não!- digo tentando chamar a atenção dela. Ela não poder se arriscar sozinha, não dessa maneira.

Mas Harriet me ignora. Sinto minhas pernas enfraquecerem com o olhar do homem sobre Harriet.  Acho que minha amiga havia tocado num ponto sensível dele por que o homem dá  seu melhor sorriso tirânico e a avalia com superioridade.

-Harriet, não. Você não tem que fazer isso!- Diz Tales, olhando para nosso Moisés negro desesperado.  Eu senti que ele sabia de algo mais, o que só me deixou mais preocupada ainda.

Harriet lhe dá um sorriso triste.

-Não se preocupe, eu vou ficar bem- e depois, com seu sorriso sumindo ela nos olha intensamente- Vocês devem estar preparados para lutar!

-Harriet!- Começo.

Mas ela não me ouve mais. Ela tem toda sua atenção voltada para o homem na nossa frente.

 -Então, é isso que você quer Harriet, o anjo?

Harriet olha com mais determinação para ele.

-Perfeito!- diz ele mostrando todos os dentes amarelos.

Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa os dois já estavam duelando.  Por mais que eu odiasse isso, o adversário de Harriet era muito forte, felizmente Harriet também não era qualquer guerreira. Ver um combate já era algo que te enchia de adrenalina, agora ver um combate entre dois mortos no mundo inferior... era  algo que eu jamais ia esquecer.

Os dois lançavam golpes que iluminavam toda a área em que estávamos. Eles lutavam com feitiços, com antigas maldições, com tudo o que podiam. Eu podia sentir a áurea deles tremulando.  Podia sentir cada golpe em Harriet, e podia, com alguma satisfação, perceber que Charles estava ficando cada vez mais fraco.

Enquanto Harriet lutava contra seu pior inimigo, Tales e eu tínhamos nossos próprios problemas. Os outros fantasmas, incitados por Charles, resolveram que nós seriamos bons petiscos. Quando Harriet disse que nós tínhamos que estar preparados para lutar não estava brincando

Eu tinha que a toda hora afastá-los com contracorrente. Eles eram burros demais para perceber que não se feriam com minha espada, então quando eu encostava em um, eles saiam correndo.  Seria hilário... se eles não voltassem mais raivosos para cima de mim. Infelizmente essa era a única coisa que eu podia fazer.

De repente sinto que a energia está mudando no lugar. Olho para onde Harriet está lutando e meu coração quase para quando vejo a alma dela caída no chão.  Mas antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, além de olhar apavorada, Harriet dá um sorriso triste e olha para trás, na direção de Tales.

-Tales, acho que chegou a hora. 

-Harriet, deve haver alguma outra maneira.

Ela dá um leve aceno de cabeça, sinalizando que não há outro jeito.  Eu estava no mundo inferior, não era um lugar frio, mas eu congelei.

-O que está acontecendo- perguntei-  O que Harriet quer que você faça?

Percebo uma lágrima escorrendo de Tales.

-Sinto muito Penny.

-O que...?- Pergunta Charles

 Mas ele não tem tempo de terminar a pergunta.  Tales começa a recitar um comando em latim.  Eu falava grego fluentemente, e sim, eu me orgulhava de poder me virar em latim, mas daquela vez, eu juro por todos os deuses, eu não queria ter sabido a tradução daquele encanto.

lectuli animas redire arans

sum iam liberatus mancipia

animas succendi cum calore mors

natare flumen oblivionis   

Que as almas voltem ara seu lugar de descanso

escravos agora eu vos liberto

almas aquecidas com o calor da morte

nadem para o rio do esquecimento

-Tales!- Gritei, mas já era tarde demais.  Eu senti uma força poderosa me atraindo para o Lete, mas de alguma forma eu sabia que tinha que lutar. As almas começaram a nos atacar desesperadas mas,  a cada golpe delas, Tales apenas continuava recitando o feitiço e elas continuavam partindo.

-Não!- gritou Charles, tentando atingir Tales, mas ele estava sendo impedida por Harriet, que heroicamente bloqueava o caminho dele. Quando as últimas almas se foram, Tales vacilou.

-Continue!- gritou Harriet, enquanto continuava protegendo o amigo.

-Tales não!- gritei. Mas foi inútil. O rio já havia tragado Charles, levando  Harriet junto.  Harriet, o Moisés negro, o nosso anjo, minha amiga.

Corri até a margem do rio, enquanto as almas partiam, mas Tales me segurou.

- Não Penny, você não pode interferir.

Me sentei na margem do lago, esperando que Harriet voltasse. “Ela vai voltar, é Harriet Tubman, ela conhece o caminho, ela sempre conhece”. Fiquei sentada durante uma hora na mesma posição.

-Penny- disse Tales numa voz que parecia muito longe- Você precisa ir.

- O que? Não,  eu preciso esperar Harriet aqui.

-Penny,- Diz ele me segurando pelos ombros e olhando direto nos meus olhos- Harriet não vai voltar para cá. Ela se sacrificou por nós. Ela bloqueou o caminho de Charles enquanto eu mandava as almas de volta para seu lugar. Você consegue entender isso, não consegue?

Eu não entendia, eu não queria entender.

-Ela...

-Penny, me escute, eu vou ficar aqui. Eu tenho que cuidar para que mais nenhuma alma mal intencionada volte. Vou honrar Harriet, vou procurar por ela, devo isso a ela. Ela provavelmente está perdida no mundo inferior, sem saber quem é ou sem lembrança alguma. Ela é uma alma pura, vai conseguir retornar. Eu vou cuidar dela.

-Não, isso é horrível... ela esqueceu... eu..- Eu não conseguia pensar em nada. Eu havia perdido Alex, Harriet... e agora Tales estava me dizendo para seguir sem ele- Eu não vou conseguir encontrar o caminho sem você.

Isso era verdade. Eu jamais conseguiria sem ele.  Tales toca meu colar.

- Por que você acha que Psique lhe deu isso? Você teria que seguir sozinha em algum momento. Eu nunca abandonaria você... achei que... mas eu tenho que ficar.

-Tales- começo, mas não consigo continuar, por que ele está certo.- Eu não sei, preciso de vocês- digo fraca.

- Fale com Tirésias. E depois, eu espero conseguir trazer Harriet de volta, me encontre no Palácio de Hades com Alex.  Vamos enfrentar Crio juntos.

-No palácio...

-Sim, me encontre lá. Afinal, é lá que seu coração está não é?

Ele tem um ar tão triste quando diz isso que tenho vontade de mergulhar no Lete também.  Alex. Eu queria dizer que era mentira, queria dizer que tínhamos que seguir, que procuraríamos Harriet juntos, queria dizer para ele ficar comigo. Mas todas essas palavras se perderam enquanto ele me alcançava a mochila e me olhava com os olhos dourados. Antes que eu percebesse, antes que pudesse ao menos dizer adeus, nós dois já estávamos indo em direções opostas, sem nem ao menos olhar para trás.