Diário Póstumo - Para Ryoko-chan escrita por Amigo Secreto


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/312078/chapter/1

Tudo na vida é assim. E não, eu não gosto desta maneira de imaginar que as coisas são necessariamente premeditadas. Nunca acreditei em destino pré-definido e justamente por isso que eu me dediquei por anos da minha vida a minha profissão. Profissão esta que me fez desviar dos meus outros compromissos.

E hoje, hoje eu pago por isso.

No terraço deste hospital, jogado às traças, completamente sozinho na vida. Tudo acabou.

A esperança acabou.

Sempre trabalhei em função da saúde e do bem estar dos outros, colocando minha saúde e minha vida pessoal sempre em segundo plano. E o que eu ganhei com isso? Divórcio.

Minha esposa, a Agnes, era a melhor mulher do mundo. Esposa perfeita, mãe perfeita. Sempre disponível para mim, para nosso lindo filho. A amiga que qualquer pessoa desejaria ter. A companheira que qualquer homem desejaria ter para si. E eu estraguei tudo sendo o médico perfeito, o assistente perfeito. Para todos, nunca para minha família. Restou a mim mendigar o pouco tempo que eles me ofereciam a cada quinze dias.

Hn, a quem eu quero enganar?

Eles me dariam toda a atenção e o tempo que eu quisesse, mas ainda assim eu continuei a me dedicar ao meu trabalho no pronto-socorro. Pior, na verdade. Eu me dediquei ainda mais, me chafurdei inteiro no emprego, quase como um workaholic.

E foi então que eu o conheci.

Roberto era professor de literatura em uma conceituada faculdade de letras da região. Um homem culto, fácil de lidar, de conviver. Inteligente, bonito, sorriso fácil e largo. Logo viramos amigos. O que um atropelamento não faz né? Conhecemos as pessoas das maneiras mais inusitadas! Tratei de sua perna quebrada e ganhei ingressos para um recital de poesia. Qual a ligação? Demorei muito pra entender.

Pensei muito se iria ou não ao tal do recital. Pensei, pois não queria ir (workaholic é assim), porém, sua insistência havia sido tão grande, e ainda mais que estava desanimado com tudo o que havia acontecido, que não tinha como evitar. Resolvi, em uma das minhas raras ocasiões, chutar o balde e ir ao recital.

Foi a melhor coisa que eu fiz. Esqueci por um dia tudo o que me pesava nos ombros. Esqueci da vida, dos problemas, só trabalho, dos meus amores, das minhas mazelas. Apenas eu comigo mesmo. Foi uma noite agradável, e eu não sabia o que era me sentir assim há anos! Talvez, nunca tivesse me sentido assim.

Você pode estar pensando “mas nem no seu casamento?” ou “nem quando seu filho nasceu?”. Não é isso, as sensações são diferentes. O que eu sentia era alegria de construir algo, de me deixar levar por novos objetivos, novas perspectivas e sim, isso me proporcionava imenso prazer, imensa alegria. Mas era uma felicidade que não dependia exclusivamente de mim. Hoje eu enxergo que era essa a felicidade que eu deveria ter abraçado. Eu feliz comigo mesmo e transbordando de contentamento, contagiando quem eu amava. Mas não. Não foi o que eu fiz.

Aquela alegria de estar bem comigo mesmo foi o que me preencheu por um bom tempo ainda durante a semana. Diferente do que muitos podem ter imaginado, eu não encontrei o Alberto naquela noite. O vi de longe, afinal, só quando cheguei lá no sarau é que eu percebi que el era um dos organizadores e estava muito ocupado. Se tivesse uma oportunidade, adoraria agradecê-lo pelo convite. Ele não fazia ideia do bem que havia me feito.

No dia seguinte era meu dia de folga e eu resolvi que não pensaria em emprego, trabalho, problemas, nada! Ainda movido pela pequena e ingênua onda de felicidade que me abatera, resolvi buscar novos lugares para estar comigo e me sentir bem como no dia anterior. E acabei descobrindo que era bem mais difícil do que parecia. Andei a esmo pelo centro da cidade, sem nem ao menos saber onde ir, aonde chegar, o que fazer. Nada. Já estava ficando frustrado quando ouço uma voz me chamando. Imagino ser um antigo paciente pelo tom de voz usado e já me via conversando amigavelmente no meio da rua quando eu percebi que era sim um ex paciente, mas não um ex paciente qualquer.

Roberto.

Ele me alcança com um sorriso nos lábios, arfando um pouco já que teve que correr um pouco até me alcançar. Ao se recuperar, ergue-se e agradece entusiasmado por eu ter aceitado o convite e ter ido ao recital. Achei que ele não tinha me visto, já que eu o vira andando apressado por todos os lados, preocupado com a organização. Ledo engano pelo visto.

Achei engraçado como foi fácil engatar um papo agradável com o Roberto. Realmente ele era um homem bem inteligente, tinha boa locução, comunicava-se como poucos. Uma pessoa indubitavelmente interessante e envolvente. Tanto era que só me dei conta da nossa situação quando já estávamos dentro de um café, comendo um bolo com chá e eu nem era tão fã assim de chá. Disse-me ele que o chá era suave e por isso casava melhor com o bolo. Não reparei essa coisa de casamento, mas a conversa estava muito boa. Melhor que o chá, inclusive.

Por algum tempo fomos mantendo esse tipo de convívio. A companhia dele aquele dia me foi tão aprazível, que assim como o recital, senti-me satisfeito. Repleto de algo que eu ainda não entendia na época. E pelo que eu podia notar, ele se sentia igual na minha presença. Tanto foi que ele quem marcou um novo encontro daqueles para daí três dias. Ainda havíamos dado uma esticada até a biblioteca central da cidade para buscarmos algumas indicações de leitura para mim, que muito simpaticamente ele havia feito durante nosso encontro casual.

Os dias então se passaram tão tranquilos que eu nem mesmo havia reparado que o dia do encontro havia chegado. Sem grandes expectativas, sem grandes atenções. No horário marcado lá estávamos os dois, pontuais. O entusiasmo visível. Definitivamente era aquilo que eu precisava para a minha vida. Esse entusiasmo, essa alegria. Havia encontrado um amigo.

E eis que começaram os primeiros problemas.

Sempre me considerei um homem de mente aberta, que respeitava as condições das pessoas sem me importar com estigmas sociais. Não me achava um homem preconceituoso, até descobrir que Roberto era gay. Bom, não tinha descoberto antes simplesmente porque não quis, afirmava meu próprio amigo, uma vez que ele nunca escondeu sua sexualidade. Por alguma razão fiquei muito mexido, bastante sentido, pensei, por ele não ter se aberto comigo.

Mas eu te falei dos meus namoros antigos” disse-me Roberto transtornado quando me viu afetado por esta revelação não tão bombástica. “A diferença é que eu não sou como os outros homens, que saem contando vantagens de como foi a pegada, do quanto sou bom, ou mesmo como eu fazia. Não dizia nomes, sempre fui muito discreto unicamente porque eu estava com pessoas, e não com objetos sexuais. Esses caras foram importantes na minha vida, e se você tivesse prestado atenção, perceberia nos meus relatos que jamais poderia se tratar de um envolvimento com uma mulher! Você, meu caro, que não quis ver”. Não aceitei de imediato, mas depois com o passar do tempo, tive que dar o braço a torcer.

Eu, por mais que não fosse homofóbico, estava sim impregnado até a alma de preconceitos e condutas pré-estabelecidos que nos passam tão batidos que achamos que não é preconceito quando na verdade não passa de descriminação pura. Tive que ver que eu tinha errado sim, que eu tinha sido intransigente e ainda mais, havia sido omisso quanto aos sentimentos do meu amigo. “Sou discreto nos meus relacionamentos” disse ele. E mesmo sendo discreto, compartilhou comigo e eu não havia dado a tenção necessária, a atenção que ele merecia.

Submeti-me evidentemente a humilhação para que ele entendesse que eu estava me sentindo mal e verdadeiramente culpado por ter sido um perfeito imbecil. Amigavelmente ele pediu para que eu parasse, que aquilo era exagero. Apenas queria deixar claro para ele que para mim não havia exagero quando se tratava de amizade, quando se tratava de alguém importante de verdade para mim. Exagero ou não, parece que ele ficou satisfeito em perceber que eu estava falando sério. Daquele momento para frente, nossa amizade apenas cresceu.

Mais do que amizade, eu diria.

No fundo, eu apenas não estava sabendo lidar com os meus sentimentos. Tanta admiração, tanto carinho, haviam sido suplantados por todos estes anos sendo massacrado por mensagens de heterossexualidade. Nada me permitiu perceber fácil o meu interesse por meu caro amigo. Porém, meu corpo me traiu ao ser um dia abordado mais intensamente por ele. Minha cabeça girou, minha boca queria gritar, porém, minha língua guerreava com a dele, e minhas mãos em vez de afastá-lo apenas o aproximava, com urgência, mais e mais do meu corpo quente e em chamas.

Quente dele.

Em chamas por ele.

Aquilo foi completamente fora de realidade. Não entendi como começou, como a gente acabou daquele jeito, como tudo foi. Só sei que gostei. Lá no fundo eu sabia que tinha gostado. Não havia sido, de longe, o melhor sexo da minha vida, mas havia sido diferente e não diferente por ter sido a primeira vez que eu transava com um homem. Mas foi diferente. E eu não entendia. E novamente aquela sensação estranha de que, no fundo, estava tudo certo, uma felicidade que preenchia meu interior. Uma tranquilidade na qual eu poderia me abandonar eternamente. Nada de euforia, nada de grandes arroubos. Algo calmo e aconchegante, como os chás que eu aprendi a saborear nos últimos 5 meses que eu convivia com ele.

Naquele momento, fui arrebatado em corpo por aquele homem.

Aos poucos fomos nos envolvendo, aos poucos fomos nos acostumando um com a presença do outro e eu fui me acostumando com toda a minha nova condição. Ele a pessoa mais calma e paciente do mundo e eu ainda tentando entender tudo ao meu redor, a assimilar meu novo universo.

Três anos.

Três anos é o tempo máximo da alegria.

Nesse tempo fomos felizes. Aliás, fui bastante feliz e aceitei me jogar nessa novidade. Resolvemos em algum tempo ir morar juntos. E eu na minha adaptação eterna. Para minha sorte, minha ex esposa foi uma irmã nessa minha transição. Ela não retrucou, me apoiou, gostou do meu namorado, assim com meu filho também gostou bastante com o Roberto. No fim, formamos uma família feliz, ao nosso jeito, mas feliz.

Mas meu temperamento, minha introspecção e a mesma droga de mania que eu tenho de colocar o trabalho em primeiro plano fizeram com que eu terminasse onde estou, nesta maldita sarjeta. Via meu novo relacionamento indo pelo mesmo caminho do meu antigo relacionamento, e o pior: não fazia força para mudar ou para melhorar. Sentia que eu me distanciava, percebia que eu não cooperava, nunca estava presente.

E o pior aconteceu.

Naquela maldita noite.

Eu que sempre trabalhei em plantão, sempre ajudei as pessoas sem ao menos querer saber suas origens. Para mim todos eram iguais na minha frente, aos meus cuidados. Nunca distingui e sempre me doei ao máximo, sempre colocando meus pacientes acima de minha própria vida. Tudo para eu receber aqueles feridos. Para receber aqueles corpos.

Minha queria amiga Agnes e meu amado filho. Ambos assassinados.

Motivo? Tentativa de roubo.

Chegaram ao hospital ainda vivos, mas nada pude fazer por eles, pelos meus amores. Me senti, naquele momento, o ser mais oco da face da Terra. Por sorte, tudo o que eu tinha era o Roberto.

Mas como disse, felicidade só dura 3 anos.

Não porque não havia mais nada entre a gente.

Não porque ele quis pular fora.

Mas unicamente por minha inabilidade em lidar com pessoas.

E eu achando que sendo médico eu lidava com pessoas, que sabia lidar com humanos, mal sabia eu que não sabia de nada. Nunca me entendi. Nunca consegui entender meus próprios sentimentos.

Roberto ainda me deu todo o suporte que minha dor lhe permitia aproximar e oferecer. Eu o afastava ainda mais de mim. Não entendia porque, afinal, sentia necessidade dele. Precisava dele. Ele era mais que meu porto seguro, era minha tábua de salvação. Meu tudo, meu chão, minha razão.

Hoje eu entendo o que eu sinto. E o que ele me oferecia.

A presença dele me era agradável, eu me sentia completo. Sentia que o mundo poderia acabar, que se ele estivesse ao meu lado, não existiria nada que me impedisse de continuar andando. E foi nele a força que eu consegui para suportar a morte do meu filho.

Mas não fui a melhor das companhias. Despejava nele toda a minha frustração. Jogava pra cima de seus ombros o peso daquilo que me sufocava, aquilo que me exauria. Ele estava lá por mim, e eu o fiz de lixeira, o fiz de gato e sapato. Despejava nele tudo o que podia e não devia. Por quê? Não faço ideia. Uma mistura de motivos: culpa por não estar com meu filho, culpa por mesmo diante da morte de quem eu amava ter conforto e me sentir bem, culpa por mesmo diante de tamanha catástrofe ainda me sentir feliz e amado.

A quem eu quero enganar? Sou o maior sabotador que existe e nunca fui capaz de lidar com minha felicidade. Felicidade esta que apareceu em minha vida algumas vezes e eu fiz questão de mostrar a porta de saída, expulsando-a descaradamente.

Fui estúpido, falei grosserias, desrespeitoso. Machuquei o Roberto mais do que era esperado nesse meu processo de cura de alma. E na verdade, eu estava em processo de deterioração pessoal.

Claro que tudo tem um fim.

Ele falava, gesticulava. Era visível seu desespero e sua dor. A mim chegavam sons, mas não distinguia palavra alguma, não entendia o que ele falava. Mas eu sabia do que ele estava falando.

E aquilo era um adeus.

Nunca entendi na verdade porque havia durado tanto tempo. Hoje eu vejo que nem ele nem eu éramos apaixonados um pelo outro. A nossa convivência era pacífica, era calma, tranquila e aconchegante. E mesmo sem o frisson que a paixão nos traz, mesmo sem o coração arder toda vez que eu o via. Sem meu corpo se arrepiar ao seu toque, ainda assim eu era feliz. Ele me fazia feliz. E sabia que eu também o fazia feliz.

Finalmente as palavras que eram nada mais que chiado começaram a tomar forma em minha cabeça.

Não era paixão.

Nunca foi paixão.

Era amor.

E daqueles que a gente raramente encontra na vida.

Cumplicidade, respeito, carinho. A cabeça não rodava nem o coração palpitava. O peito se enchia de calor gostoso. É uma calma, uma tranquilidade, uma necessidade de estar perto e ser preenchido única e exclusivamente pela existência do outro.

Hoje, sozinho, eu entendo o que muita gente leva a vida inteira para encontrar. Mas meu tempo se esgotou. Ele me deu adeus naquela tarde. Havia finalmente se cansado de mim. Se cansado das minhas fugas, dos medos que eu nunca enfrentava.

Tenho certeza que, se eu o procurasse, e falasse tudo isso, eu teria Roberto de volta.

Mas não mudei. Nunca mudarei.

Sou covarde suficiente para continuar a fugir de mim e a expulsar a felicidade da minha vida.

O dia me lembra do sorriso dos três.

Pelo menos isso o sol no céu azul pode me fazer. Trazer a lembrança deles que sempre ficarão em meus pensamentos. E é justamente esta imagem que eu quero carregar para sempre comigo.

Estou cansado demais. Sou jovem, mas estou cansado. Nunca antes este jaleco me pareceu tão quente. Nunca antes também, o vento soprou tão gostoso nos meus cabelos. Acho que nunca me permiti, em dez anos de trabalho neste hospital. Mais uma das coisas que eu nunca me permiti fazer, e a sensação é ótima.

A mesma sensação de liberdade que eu senti naquele dia, graças ao Roberto.

Tudo de inovador em minha vida foi graças ao Roberto.

Toda a liberdade da minha vida foi graças ao Roberto.

E só é verdadeiramente livre quem ama. E eu hoje sei exatamente a profundidade de “a liberdade de amar”.

Os carros lá embaixo na rua nem parecem irritantes como todos os dias. O vento gostoso e o calor do sol tornam o tráfego insignificante. Nada é maior que esta liberdade que sinto neste momento.

É a sensação máxima que posso sentir. Meu corpo agradece este ato desesperado. E a sensação de liberdade é boa.

Pena que só se faz isso uma vez na vida. E logo em seguida ela já não existe mais.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Quando vi quem era no amigo secreto, me desesperei. Dei o azar de tirar justamente uma autora de um livro mundialmente conhecido. Tá, ainda não é um best seller, mas já está sendo vendido no exterior e sim, isso assusta. Também assusta o fato de na ficha não ter nada com o que eu estivesse acostumada a escrever. Nunca escrevi um drama onde a tristeza fosse imperativa. E também, nunca escrevi um original. Este presente trouxe várias inovações e novidades para mim, a ponto de eu me desesperar. Comecei este presente duas vezes e não consegui terminar dentro do prazo e ainda não está como eu gostaria, mas precisava escrever algo, precisava terminar este presente.
Peço desculpas por todos os transtornos: fic que não deve estar muito dentro dos padrões e pelo atraso na entrega.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Diário Póstumo - Para Ryoko-chan" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.