Jogos Vorazes por Cato escrita por AmndAndrade


Capítulo 17
Capítulo 17 - Primeiros socorros




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Tenho tempo de sobra para pensar agora, já que meu passatempo predileto no momento é olhar Clove dormir. Ela é igualzinha à Cathy dormindo. Não ronca, mas abre a boca num círculo pequeno e delicado. As sobrancelhas se arqueiam vez ou outra e adiciono outro passatempo à lista: tentar adivinhar com o que Clove está sonhando. Pela respiração pesada, posso sentir o quanto ela está cansada e isso meio que me dói.

Deus, acho que estou ficando sentimental demais.

Mas me dói, não vou negar. E não consigo explicar. Simplesmente me dá um aperto no peito, sei lá, ver o curso que as coisas tomaram. Sempre me referi aos outros tributos como a minha caça, minhas presas, mas depois da mudança nessa regra me dói ver o quanto ninguém tem culpa. Dói ver o quanto Clove está se esforçando para viver e me dói também que os outros estejam passando por isso. Pensando em suas famílias que assistem enquanto eles levam facadas, marretadas e tudo mais. Pensando em seus amigos que os estão vendo desidratar ou morrer de fome. Vencer agora se tornaria uma tarefa um tanto quanto vazia sem Clove. Sem o carinho dela, sem a cumplicidade. A única coisa que me dá alegria é saber que nós dois voltaremos para casa. Com a ponta dos dedos, consigo tocar seu rosto. Marcas de arranhão e tudo mais. Tão quente e tão viva. Tão... Humana. Não sei se consigo achar outra palavra agora, é isso que têm faltado em Panem. Humanidade.

O céu ainda está escuro quando ela acorda. Ela se espreguiça, ajeita os óculos no rosto e sorri.

– Perdi alguma coisa?

Balanço a cabeça em resposta. A hora do show está chegando. Passo os dedos pela lança que trouxe, segurando firme. O céu começa a ficar lilás e tiramos os óculos, uma vez que tudo fica embaçado quando eles são usados na luz do sol. Me pego pensando se quero que Clove vá, então lembro da despedida com Cathy.

Não gosto de ficar pensando muito nas coisas. Toda vez que penso demais, acabo tomando uma decisão que me faz perder, mas não consigo deixar de lembrar o que Cathy me disse.

Eu acredito, ela disse. E eu também acredito em Clove. Só não quero que ela vá. Devo estar com a expressão bem engraçada, pois o rosto de Clove passa da preocupação ao sorriso em alguns segundos.

– Cato? O que foi? – Ela estala os dedos bem na frente do meu nariz.

– Nada. Só pensando.

– Ah. Achei que você estava tendo um colapso, sei lá. Estava quase te esperando cair desmaiado para começar meus primeiros socorros.

Uma onda de brincadeira me tira do meu conflito. Sorrio e deito no chão.

– Tipo assim?

– Talvez com um pouco mais de emoção – diz com um tom de desdém e diversão.

– Que tal agora? – Fecho os olhos e coloco a língua para fora, como num desenho animado.

– Continua com os olhos fechados que eu vou avaliar – exige, e eu obedeço. Consigo escutar seu corpo de arrastando por cima do meu, como na nossa noite na Cornucópia. Ela senta no meu abdômen e vira meu rosto de um lado para o outro com uma das mãos, ainda avaliando. – Acho que já dá pra fazer respiração boca a boca. – Ela ri.

Seguro seu cabelo com a mão livre da lança, mas logo a solto para ter mais controle sobre a cabeça de Clove enquanto a guio no beijo. Começo a me sentar, mas não me dou ao trabalho de abrir os olhos. É desse toque que eu preciso, única e simplesmente. Quente. Vivo. Humano. Quando não consigo mais suportar a falta de ar, afasto-a lentamente, olhando seus olhos verde-escuros. Ela me olha e sorri do jeito mais bonito que eu já vi alguém sorrir em toda a minha vida. Merda, eu penso. Acho que finalmente estou apaixonado.


Os primeiros raios de sol começam a surgir e ainda me sinto num impasse.

Então uma figura ruiva corre na direção oposta à Cornucópia, agarrada a uma mochila verde. É a garota do Distrito Cinco que desaparece entre as sombras. Droga! Não acredito que ela se escondeu dentro da Cornucópia! Estou dividido entre ficar com muita raiva e muito surpreso. Ergo a lança e preparo-me para atirar, quando Clove coloca a mão em meu antebraço.

– Não agora. Vai denunciar onde estamos – sua voz está suave.

Ela está certa. Calculando rapidamente à distância, sei que não vou conseguir acertá-la. E uma lança voando num espaço aberto certamente atrairia olhares. Não podemos arriscar o posto de guarda.

Um barulho à leste faz com que nos postemos em pé. Então vejo a brasinha correndo desesperadamente em direção a onde as mochilas provavelmente estão. Clove se prepara para correr, pelo lado oposto de modo a surpreendê-la. Seguro seu braço.

– Tome muito cuidado – digo de modo sinistro. – Volte pra mim.

– Eu vou voltar – ela diz e sorri, exatamente como fiz com Cathy.

– Eu acredito.

Ela solta meu braço e começa a correr em direção à boca da Cornucópia, sem olhar para trás. Ela corre pelo que me parece ser um quilômetro, ou um quilômetro e meio até que a brasinha e ela estejam totalmente fora de meu campo de visão.

Fico irritado porque penso que até mesmo minha respiração faz barulho demais. Mas tudo está em perfeito silêncio, e nenhum canhão soa. Vigio as laterais o máximo que posso, atento a qualquer movimento que possa vir de trás do chifre. Faço as contas. A Garota Cinco já pegou o que queria, e provavelmente deve estar bem longe dali. Percebo que não é de seu feitio bater de frente com os outros, uma vez que mal a vi depois que o Jogo começou.

Nada de baques surdos. Nenhum canhão. Os segundos parecem virar minutos e estou me esforçando ao máximo para fazer meu trabalho direito. Não enxergo a frente da Cornucópia, o que só me deixa mais nervoso. Não há gritos, não há canhões, e me sinto extremamente impotente ao olhar a lança em minha mão.

E então eu escuto. Um grito, dois gritos. Desesperados, carregados de medo. Uma voz estridente, feminina e familiar.

– Não! Não! Eu... Cato! – a voz grita enquanto eu estou correndo. – Cato! – berra mais uma vez, um tanto mais alta.

– Clove! – grito em resposta, mas estou longe demais para fazer qualquer coisa. Alcanço a planície e ainda não consegui avistá-la, mas sei pelo som de sua voz que ela está mais perto. Então vejo um par de pernas estiradas no chão. Músculos que se desenham de um jeito feminino nas pernas, assim como reparei no trem à caminho da Capital. Pernas que se mostraram firmes e ágeis umas noites atrás, quando Claudius anunciou que poderia haver dois vencedores.

Pernas que estão desesperadoramente imóveis.



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Notas finais do capítulo

O que acharam? É muito importante pra mim a opinião de vocês nesse capítulo e no seguinte também... Beijos