Premonição 6: Inferno escrita por Lerd


Capítulo 1
Imersão


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo da fic. Sem o acidente ainda, uma espécie de prólogo. Essa fic terá um ritmo um pouco diferente das anteriores, e por isso mesmo ela terá pouco mais de dez capítulos (ainda não planejei exatamente quantos, mas estimo que serão treze). Além disso, outras coisas são diferentes. O visionário não conhece boa parte das pessoas que salva, por exemplo. Ah, vocês vão percebendo isso aos poucos. Os links com as fotos dos personagens da fanfiction: http://premonicaofanficsource.blogspot.com.br/2012/12/cast-premonicao-inferno.html e aqui http://premonicaofanficsource.blogspot.com.br/2012/12/cast-premonicao-inferno-parte-ii.html
Espero que gostem desse primeiro capítulo! :D



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Colônia extraterrestre Colmeia, num futuro distante.

            Quinn pousou delicadamente a caneta na mesa metálica, ao perceber a entrada de Boo. O rapaz prostrou-se de maneira acanhada atrás dela, como se temesse uma reação rude da cientista. Ela não conseguiu fazer qualquer coisa diferente de sorrir. Boo era uma graça, a pessoa mais meiga que Quinn conhecera em toda a sua vida.

            — Pode falar.

            O rapaz ergueu uma sobrancelha, ainda receoso.

            — Você não vai gostar.

            — Eu sei. Fale mesmo assim.

            Boo então deu com os ombros. Deus, ele é muito fofo. Boo Murphy era seu subordinado direto, e Quinn era a responsável por mantê-lo na linha, especialmente depois do incidente envolvendo ele e um dos robôs da Colmeia. O rapaz tinha um rosto de feições delicadas, com pequenos olhos azuis escuros, uma boca pequena, um nariz fino. As orelhas também eram pequenas, e a sobrancelha era grossa e escura, diferente do fino cabelo castanho claro. Naquele momento Boo estava com as mangas de sua camiseta dobradas até o ombro, e era visível a tatuagem em seu braço direito. A tatuagem de um touro.

            — O Dallas e o Yohann chegaram da expedição à Área 180.

            — Já estava na hora. — Quinn disse quase pragmática. — Qual é a notícia ruim envolvendo isso? Eu não tinha grandes esperanças em descobrir nada de novo nesse lugar mesmo. A Terra sempre foi um planeta tremendamente desinteressante. Só mato e água.

            O rapaz concordou meneando a cabeça, ainda um pouco nervoso. Ele provavelmente nem ouviu o que eu disse, de tão nervoso que está.

            — Eles encontraram um corpo.

            — Um corpo? — Quinn espantou-se. — Conte-me mais.

            — Um corpo. — Boo voltou a repetir. — E, se me permite dizer, ele parece estar em estado perfeito para que possamos estudá-lo através da N.A.T.A.L.I.E. — O rapaz falou essa última palavra com uma empolgação latente. Utilizarmos Natalie é tudo o que ele quer desde que chegou à Colmeia.

            A Colmeia era uma das milhares de colônias extraterrestres da Via Láctea. A Terra, em si, continuava habitada, mas quase que unicamente por animais. Poucos humanos gostavam dela ou viviam nela. Quando a ciência se desenvolveu a ponto de permitir que os humanos vivessem em outros planetas ou estações espaciais, pareceu a decisão certa abandonar seu planeta de origem aos seus moradores originais, e buscar viver sua vida longe dali. Então eles se expandiram, e somavam agora mais de dezessete bilhões de pessoas, vivendo nos mais diferentes cantos da galáxia.

            Ela, Quinn Rosetti, era uma das autoridades máximas da Colmeia. Ao contrário da maior parte das colônias extraterrestres, aquela ali não era residencial: era de trabalho e estudo científico. O trabalho de Quinn, Boo, Yohann, Dallas e os outros, era mais importante: eles estudavam o passado do planeta Terra. Expedições eram comuns, e eles sempre buscavam algo novo e desconhecido. Quinn não gostava muito daquilo, mas era o seu trabalho, e ela o faria não importava as consequências. É o meu dever como cientista. É o meu dever como ser humano.

            — Tudo bem. Tragam-me o corpo e me deixem avaliá-lo. — A mulher disse solene.

            Boo assentiu com a cabeça e saiu ainda entusiasmado. Natalie, Natalie...

            Natalie (na verdade N.A.T.A.L.I.E.) era uma inteligência artificial desenvolvida há oito meses por uma importante cientista da Colmeia chamada Sierra Ghosh. Segundo a mulher, aquela inteligência seria capaz de desvendar memórias de qualquer morto, e conectar-se com ele a ponto de conseguir quase que um contato pós-morte. Além disso, o programa prometia dar uma visão panorâmica de todas as vivências do falecido, tornando a pesquisa de Quinn sobre o passado extremamente interessante. Ela veria todo o passado da pessoa com facilidade, se tudo desse certo.

            A mulher bufou com a demora dos rapazes. Estava cansada e com fome. Queria dormir. Queria comer algo diferente de comida desidratada. Queria uma fruta fresca e suculenta. Queria dormir. Não queria café. Queria uma boa noite de sono. Queria dormir. Queria tantas coisas, e ainda mais... Mas queria especialmente dormir. Dormir tranquilamente.

            Na mesa metálica e brilhante, viu seu rosto refletido. Não se achava bonita, mas não se importava com aquilo. Beleza era futilidade, na opinião de Quinn. Numa época em que era possível dar o rosto que se quisesse a qualquer robô, e fazê-lo parecer tão humano quanto possível, ter um belo rosto era tão comum quanto inútil. Talvez por isso Quinn não se sentisse mal em ter um rosto comprido e magro, com um queixo longo, nariz grande, boca carnuda e olhos estreitos. Mas ela gostava de seus cabelos: dourados, com nuances alaranjadas, e lisos.

            — Com licença. — Ela ouviu uma voz grossa, quase gutural, dizer. Dallas. — Onde podemos colocar o corpo?

            — Na minha mesa. Espero que ele não esteja fedendo.

            — Não senhora. — Dallas disse, entrando. Ele carregava a parte de cima do corpo, enquanto Yohann carregava a parte de baixo. Boo seguia ao lado deles, quieto e com os olhos curiosos, anotando tudo em seu tablet holográfico. A diferença de altura entre Boo, baixinho, e Dallas, assustadoramente alto, era engraçada. Quinn quase sentia pena por ser a responsável por separá-los. Mas ordens são ordens, e eu preciso cumprir o meu dever. — Nós o deixamos em perfeito estado.

            — Ótimo. — Quinn concordou. — Yohann, está dispensado. Boo, preciso que inicie N.A.T.A.L.I.E. Dallas, me ajude com a aparelhagem.

            Todos concordaram e seguiram para fazer o que a cientista dissera sem discutirem. Enquanto Dallas lidava com os aparelhos necessários para conectar o corpo à Natalie, Quinn pôs-se a observar o cadáver. Era de um garoto adolescente, e estava em perfeito estado de conservação. Era irônico o ponto que a humanidade havia atingido: eles conseguiam reconstituir um cadáver, e até mesmo evitar a deterioração de um corpo por completo, para sempre. Mas ainda não haviam descoberto o segredo para impedir a morte de um ser humano. As pessoas morriam, e era isso. Podia-se conservar um corpo inteiro para sempre, belo e cheiroso, mas o ser humano que vivera ali, a sua alma, jamais seria a mesma. Ele nunca mais viveria. Vida? O que diabos é a vida?

            — Estamos quase prontos. — Dallas anunciou.

            Quinn sentia-se confiante ao ouvir a voz do robô. Era como a voz de um primo, de um irmão. Dallas era o único robô da Colmeia, e estava sob os cuidados diretos da cientista. Quinn não podia deixar de sentir-se um pouco nervosa na presença dele. O robô tinha todos os atributos do ser humano mais belo e perfeito de todos os tempos. Tinha quase dois metros de altura, e era musculoso. Sua pele era delicada e lisa, sem nenhum pelo. Em geral nenhum dos robôs tinha pelos. Dallas tinha um maxilar perfeito, com um nariz de tamanho proporcional e uma boca carnuda e vermelha. Os olhos eram de um azul puríssimo, e combinavam com seus cabelos loiros claros. Não me espanta que Boo tenha falhado em manter um seguro distanciamento emocional dele.

            — Então vamos lá. — Quinn disse, ao perceber que Boo voltara. O corpo nu do rapaz adolescente na mesa já estava com milhares de fios conectados a ele. A mulher ligou o telão e lá apareceu o rosto meigo e juvenil da Inteligência artificial. Natalie. A garota estava deitada numa câmara criogênica com os braços retos ao lado do corpo.

            — Nós... Podemos ficar? — Boo pediu, acanhado.

            Quinn pensou naquilo por alguns segundos, mas então decidiu que não havia problema.

            — Mas vocês não falam nada. Apenas observem. — Ela disse, e Dallas e Boo concordaram. — Se a presença de vocês se tornar um empecilho eu não hesitarei em ordenar que vocês saiam.

            A inteligência artificial abriu os olhos delicadamente, interrompendo o sermão de Quinn.

            — Bom dia doutora Rosetti. Doutor Murphy. Dallas.

            — Bom dia, Natalie. — Quinn respondeu. — Podemos iniciar o escaneamento de memória?

            — Como ordenar, doutora. — Natalie respondeu, e fechou novamente os olhos. E então as imagens começaram a saltar na tela. Imagens estranhas e desfocadas, mas que aos poucos foram ficando claras. E Quinn percebeu que iria imergir na história mais fantástica de toda a sua vida...

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Terra, ano de 2013.

            René terminava de empilhar o último bloco do castelo quando Leshawna apareceu na sala, pulando corda.

            — O que você está fazendo?

            — Empilhando blocos.

            — Sim, isso eu vi.

            — Então por que perguntou?

            A garota pensou naquilo por alguns segundos.

            — Por nada, desculpa. Eu posso te ajudar? — E os olhos dela brilharam.

            — Você só vai me atrapalhar.

            — Por favor...!

            O rapaz estava pronto para dar uma bronca na irmã e pedir para que ela parasse de importuná-lo, mas então a voz de sua mãe foi ouvida da cozinha:

            — Deixa a sua irmã brincar com você!

            René bufou.

            — Eu não estou brincando, mãe, eu estou empilhando blocos.

            — Então deixa a sua irmã empilhar blocos com você!

            Não adiantava discutir. Leshawna era a princesa da casa, a queridinha da mãe e do pai. Ela sempre conseguia o que queria, e não importava o quanto René reclamasse e esperneasse, a vontade dela sempre seria feita.

            Mas, no geral, René amava a sua família mais do que tudo no mundo. Ele era adotado, e sabia disso desde sempre. Leshawna também era adotada, assim como seus outros cinco irmãos: Sophia, Loren, Harry, Bruno e Rafe. Rafe era o mais velho, tinha dezessete anos. Sophia e Loren tinham doze, Harry tinha sete e Bruno tinha dois. Leshawna tinha dez, mas era a mais mandona dos sete irmãos. René fingia estar sempre bravo com ela, mas no fundo ele a amava. Ele amava a todos os seus irmãos, sem exceção.

            Às vezes, no entanto, sentia-se como se fosse um estranho ali. Ele fora o primeiro a chegar à casa de sua mãe Dawn, antes mesmo de Rafe, mas mesmo assim sentia-se meio deixado de lado em algumas ocasiões. Ele era diferente de todos eles, de várias formas. A começar pela aparência. Leshawna, Harry, Sophia e Rafe eram negros. Loren era oriental. Bruno, o bebê, era latino. E ele, René, era ruivo. Com o rosto agradável, sardas, nariz pontudo e boca grande, com dentes brancos e brilhantes. Pelo menos isso ele tinha em comum com os irmãos: os belos dentes. Seu cabelo cor de cobre e os olhos azuis esverdeados completavam a sua aparência.

            — Você não sabe empilhar. — Leshawna retrucou.

            — Nem você, sua tonta. — René devolveu.

            Antes que a irmã tivesse tempo de reclamar pra mãe, o rapaz levantou-se e saiu, aproveitando pra derrubar os blocos empilhados da menina. Ela começou a chorar, mas ele não ligou. Bruno corria pela sala, e René pegou-o no colo e começou a brincar de avião com ele, levando-o até a cozinha, onde a mãe preparava o almoço.

            — O Vladmir ligou, querido. Ele vai te esperar às sete da noite lá no aeroporto, tudo bem?

            — Claro, mãe. — Ele disse, e deu um beijo no topo da cabeça dela, ainda com o irmão no colo. René era mais alto que a mãe, e mais alto que o pai, o amoroso senhor Edwin. O único maior que ele naquela casa era o grandalhão Rafe, que inclusive jogava basquete e tinha o sonho de se tornar um profissional. — E a Jill? E o Hank?

            René estava indo assistir a um festival de curtas metragens no México, junto do melhor amigo Hank e da namorada Jill. Quem os levaria era um amigo da família, o velho Vladmir, que iria até o país para visitar pela milésima vez (na opinião de René) umas ruínas maias quaisquer. Era um acordo bastante benéfico para ambos: os adolescentes ajudariam Vladmir com as bagagens e tudo mais, e eles poderiam assistir o festival com a presença de um responsável que não os reprimiria como seus pais fariam. Quem sugerira a viagem fora o próprio Vladmir.

            Dawn virou-se, colocando a comida na mesa.

            — Não. Desde quando adolescentes ligam para telefones fixos? Você devia ser mais moderno, como eles, e mandar algumas mensagens de texto. Além disso, vocês já não combinaram tudo? A passagem deles é pra que horas? — A mulher jogou todas aquelas perguntas e informações de uma vez e deixou René confuso. Ele decidiu responder apenas a última parte do que ela dissera.

            — É pras oito, mas eu to com medo de eles se atrasarem e nós perdermos o voo.

            A mulher sorriu.

            — Você se preocupa muito, meu filho. Tudo vai dar certo. Tudo vai ficar bem. — Ela beijou René, e em seguida beijou Bruno, que riu. — Agora vai chamar os seus irmãos que a comida já está pronta, ok?

            René concordou e saiu, ainda brincando com Bruno, que ria muito.

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            Uma semana antes...

            — Eu não sei o que está escrito aqui. — Brody reclamou, parecendo entediado. Enquanto a mãe estava distraída, ele revirou os olhos.

            Pam largou o envelope na mesa e bufou.

            — Você desiste muito fácil. É só um endereço! Vai, tenta de novo.

            O rapaz pegou a carta e voltou a examiná-la. As letras pareciam confusas e embaralhadas, como se estivessem de ponta cabeça. De repente uma palavra pareceu clara para ele:

            — México. Eu consegui ler México.

            O rosto da mulher iluminou-se:

            — Ótimo. E o resto?

            Brody tentou focar no que estava escrito, mas não conseguiu. Ele não conseguia entender nenhuma daquelas palavras. Ele sabia que eram letras, e que juntas elas faziam sentido, mas na sua cabeça eram apenas rabiscos. Brody sabia ler, então por que era tão difícil relacionar o que estava escrito às palavras? Dislexia, o doutor dissera. Ele basicamente me deu o prognóstico de que eu sou um retardado.

            — Eu não sei o que está escrito.

            Pam segurou a mão do filho entre as suas e lhe deu um beijo na bochecha. As unhas dela, pintadas de preto, tocaram de leve a carta. Ela então pegou o envelope e começou a ler:

            — Esta carta diz que o seu curta foi aceito no Festival de Cinema de Cancun. Eles estão te convidando para...

            — Concorrer ao prêmio de melhor curta. — Brody completou a frase da mãe, sem precisar ler, com os olhos brilhando. — É isso! É isso! Eles viram o meu curta, eles viram! — O rosto do rapaz iluminou-se, e ele abraçou Pam com a maior força que conseguiu. — Eu... Por que você não me contou isso antes, mãe?!

            A mulher deu com os ombros:

            — A carta chegou hoje. Eu achei que você gostaria de lê-la por si mesmo.

            Brody fez uma careta, mas então apertou a mãe entre seus braços de ferro por mais uma vez.

            — Ah, mãe, essa é a nossa chance!

            — Não, essa é a sua chance, meu filho. A sua chance de ser valorizado por algo pelo qual você é bom. Você tem talento, e agora está começando a ser reconhecido. Nada e nem ninguém pode detê-lo.

            O rapaz sorriu, consternado.

            — Eu jamais conseguiria fazer nada sem você, mãe. A senhora é a minha pedra.

            Pam deu com os ombros mais uma vez, e fez um biquinho. Brody riu.

            Juntos, os dois não eram muito parecidos. Brody tinha o cabelo castanho claro, praticamente loiro. Algumas vezes ele ficava meio ruivo, e Pam sentia-se tendo um deja vu. Os olhos dele eram grandes e de um castanho claríssimo, como se fossem feitos de ouro derretido até tornar-se líquido. O rapaz cultivava uma rala barba dourada, que combinava com o cabelo bagunçado e as sobrancelhas grossas. Uma boca carnuda e dentes desalinhados completavam o rosto de Brody.

            A mãe era diferente dele em muitos aspectos. Com quase cinquenta anos, ela possuía a beleza de uma mulher de trinta e cinco. Pam nunca se deixara abater pelo tempo. Mantinha seus cachos negros presos com uma flor, hábito que cultivava desde adolescente, dos tempos em que vivia na fazenda com seus avós e ganhava flores da velha senhora Violet. Mas os tempos eram outros: ela deixara a caipira na fazenda, e tornara-se uma sofisticada viúva de um riquíssimo oficial do exército norte-americano.

            O oficial fora seu primeiro e único marido. Os dois tiveram dois filhos: o primeiro foi Brody, quando Pam já tinha trinta anos e o velho mais de cinquenta. O segundo filho nascera dois anos depois, e a mulher lembrava-se vagamente dele, embora a dor fosse uma companheira constante na vida da mulher.  

            — E eles mandaram duas passagens. Uma pra você, e a outra...

            — Pra você. — Brody disse, antes que a mãe pudesse dizer qualquer coisa. — E eu não quero discussões. Você vai comigo e pronto.

            Pam não podia discutir. Ela então concordou, meneando a cabeça, e abraçou o filho mais uma vez, sentindo-se mais orgulhosa do que nunca.

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            Helena e Marsellus estavam de frente um para o outro, almoçando solenemente e em silêncio. O lugar era bem iluminado, fresco, e muito aconchegante. Era de tarde, e havia poucas pessoas ali. As janelas transparentes davam vista para um jardim com uma fonte de uma mulher nua qualquer. Aquela era a quarta filial dos restaurantes Hellus que os dois tinham conseguido abrir. Era a primeira vez que eles visitavam o local e avaliavam a qualidade da comida.

            Quem o quebrou o silêncio foi o homem, que disse calmamente:

            — Essa carne poderia estar melhor. E a massa está insípida.

            — Você está sendo muito exigente, Marsellus. — Helena replicou. — Está uma delícia.

            — Esse é o meu trabalho. Ser exigente. Eu sou um chef. E, além disso, eu sou o dono. Se eu não gostar da comida do meu próprio restaurante, quem mais irá?

            Helena não gostou muito da fala do homem, mas já estava acostumada com a negatividade dele. Respondeu:

            — Eu. A outra dona. E eu achei este prato melhor do que o que você preparou ontem à noite.

            Marsellus olhou para a mulher com desprezo, e então o sentimento dissolveu-se em uma fala descompromissada e em tom de brincadeira:

            — Às vezes eu me esqueço de porque nossa amizade dura tantos anos. Obrigado por me lembrar, querida.

            A mulher nada disse, apenas assentiu com a cabeça.

            Helena e Marsellus se conheciam há mais de trinta anos. Na primeira vez que eles se viram, Helena tinha oito anos e Marsellus tinha dois. Na ocasião a garota ficara de babá dele, cuidando para que o garotinho não se machucasse. Os anos passaram-se e a relação deles se desenvolveu: de conhecidos para amigos, depois para melhores amigos e por último para amantes. Marsellus jamais quisera algo sério com Helena ou com qualquer outra pessoa: não fazia parte do seu estilo de vida dedicado ao amor livre. A mulher também nunca se incomodou em conseguir um marido, e ambos mantinham uma relação de afeto e respeito mútuos durante todos aqueles anos. Algumas vezes eram como irmãos, outras como amigos, outras como marido e mulher. Mas nenhuma classificação ordinária seria suficiente para expressar o que Marsellus e Helena significavam um para o outro.

            Além disso, ela tinha para com ele a dívida de uma vida. Na verdade de três vidas. Marsellus era o pai biológico dos três filhos de Helena, os trigêmeos Ryan, Riley e Ravin. Ele doara o esperma e ela fizera a inseminação artificial. As crianças não sabiam: achavam que eram filhos de um doador de esperma qualquer. Marsellus sabia, mas vivia como se não soubesse. Na única ocasião em que Helena trouxe o assunto à tona, o homem disse, em um tom sombrio que a mulher jamais tinha ouvido:

            — Essas crianças não são nada para mim. Eles são seus filhos, e só seus. Se você voltar a mencionar o fato de que eles são meus, eu desapareço da sua vida para nunca mais voltar.

            Helena sabia que Marsellus falava sério. Ele tinha dinheiro e falta de escrúpulos suficientes para nunca mais aparecer. Ele tem o coração negro. Ele não ama ninguém, nem mesmo a mim, ela sabia, mas não deixava de ser irreversivelmente atraída por ele e por tudo o que ele representava. Pelo perigo, pelo desprezo, pela maneira despretensiosa como ele agia e tratava as pessoas ao seu redor...

            Marsellus era obviamente belo. Tinha o rosto de um deus grego, com o maxilar rústico, nariz reto e perfeito, boca rosada. Os cabelos dele eram loiros claríssimos, e estavam erguidos em um elaborado penteado. O homem gostava de cultivar uma rala barba de vez em quando, embora Helena achasse que aquilo o deixava menos atraente. O rosto era completado por um par de olhos castanhos esverdeados que pareciam conter todo o mal do mundo. Ele sempre se vestia de maneira sofisticada e elegante, e tinha os trejeitos de um verdadeiro aristocrata.

            Mas Helena também era bela e igualmente elegante. Ela estava há uma primavera dos quarenta anos, mas continuava muito bela. Seus cabelos eram tingidos de loiro platinado, assim como suas finas e delicadas sobrancelhas, e caíam por seus ombros como um manto. O nariz dela era reto e fino, resultado de procedimentos cirúrgicos. A boca também havia passado por procedimentos, e o botox a deixara inchada, mas Helena achava que aquilo era melhor do que os finos lábios que tinha anteriormente. Os olhos eram grandes, expressivos, e castanhos.

            — Bom, eu acho que já vou. Se me dá licença... — Marsellus disse cordialmente.

            — Que assim seja. Não se esqueça...

            — Da reunião com os nossos sócios amanhã, eu sei. Naquele hotel medonho em Cancun, que por algum motivo você achou que seria adequado.

            — Ele tem quatro estrelas, Marsellus! — Helena exclamou, embora soubesse o quão esnobe o seu parceiro podia ser.

            O homem apenas virou-se para ela e retribuiu a fala com um aceno de desdém. Saiu do restaurante colocando seus óculos escuros e sem olhar para trás, deixando apenas um rastro de perfume que era suficiente para fazer Helena esquecer tudo de errado e ruim que Marsellus significava.

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            Amanda entrou no banheiro e sentiu a porta fechando-se atrás de si. Através do espelho percebeu seu rosto e concluiu que por aquela noite tudo estava terminado. As olheiras que se formavam eram grandes, e a mulher dificilmente conseguiria ficar de pé, especialmente dançando, por mais do que meia hora. Chega. Eu vou dormir. Volto amanhã.

            Mas a mulher no espelho parecia tristemente conformada com aquela situação. Resignada. Amanda não se achava bela de rosto, embora tivesse inegavelmente um belíssimo corpo. Mas seus olhos eram castanhos e comuns, as sobrancelhas eram muito erguidas, o nariz era muito grande. Nem a boca, apesar de carnuda, se salvava: a mulher a julgava meio torta e pequena. Restavam os cabelos: loiros tingidos, caindo em cachos belíssimos.

            — Força, Amanda. Força. Você vai sair dessa, como saiu de todo o resto.

            E saiu do banheiro. Encontrou Jeff, seu patrão, na porta e conversou com ele. O homem entendeu a situação e deixou que Amanda fosse embora, segurando firmemente sua bolsa com estampa de oncinha. A minissaia que utilizava fazia suas pernas congelarem, mas a caminhada até o táxi era curta, ela sobreviveria.

            Quando Amanda prostrou-se ao lado da janela do carona do táxi, o taxista foi enfático, reclamando em espanhol:

            — Eu não faço esse tipo de coisa não, dona.

            Amanda bufou, sentindo-se humilhada. Era a terceira vez que aquela confusão acontecia, apenas naquela semana. Ela já estava ficando acostumada.

            — Eu não sou uma prostituta. — Amanda respondeu também em espanhol. E abriu a porta do veículo, entrando. — Me leve até o Manzana.

            O homem desculpou-se milhares de vezes antes de confirmar o que a mulher pedira. Enquanto ele dirigia, Amanda pôs-se a pensar no que deveria fazer da sua vida. O que poderia fazer. Havia poucas opções para alguém como ela.

            Amanda Rojas era uma dançarina de noite e uma cantora de dia. Trabalhava no hotel Manzana durante o período diurno e, apesar de não receber um cachê propriamente dito, as gorjetas eram sempre altas. Ela sabia que tinha uma doce voz, então essa era a parte fácil e prazerosa de seu dia. O pior vinha à noite, quando ela transformava-se em Cherry, a exótica e sensual dançarina de boate. Amanda odiava ser Cherry, mas sabia que só conseguiria sobreviver naquele país se conseguisse manter a personagem. Era preciso.

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            René chegou ao aeroporto antes de todos os outros. Ele brincava com um videogame portátil qualquer, enquanto ao seu lado sua mãe lhe dava instruções que eram solenemente ignoradas.

            — Tudo vai ficar bem, mãe. A senhora mesmo disse. — O rapaz falou, antes que a mulher pudesse terminar a frase que começara e a qual René não tinha nem ideia do que se tratava.

            — Ok. Eu estou me preocupando, isso não é bom.

            — Não. Deixa que eu me preocupo por nós dois. — René falou, sorrindo de canto de rosto. E então viu Jill e Hank chegando ao longe. — Ei galera!

            E ele correu na direção dos dois. Cumprimentou primeiro a namorada, com um delicado selinho, e então deu um abraço forte em Hank. Quando ele e o amigo se separaram do abraço, Hank retirou uma rosa azul de trás da orelha de René.

            — Mas que...?

            Hank riu e entregou a rosa pra Jill. René achava divertido o fato de o amigo ser mágico, embora sempre se surpreendesse. Hank era dois anos mais velho que o ruivo, mas os dois estudavam juntos porque o amigo havia repetido dois anos por conta de um acidente que sofrera. Naquela época René ainda não o conhecia, mas ficara sabendo que Hank tinha ficado em coma por mais de um ano. Boa parte dos médicos haviam desacreditado os pais dele, dizendo que o rapaz não acordaria. A mãe fora a única que teve fé, e por fim tudo compensara.

            Além disso, o mágico era bastante bonito. Tinha os cabelos e os olhos castanhos, e, segundo boa parte das garotas, o sorriso mais bonito da face da terra. Suas sobrancelhas eram um pouco finas, e a sua barba nem podia ser chamada de barba, de tão rala que era. O nariz, os olhos e as orelhas eram de um tamanho proporcional, e Hank tinha belíssimos e branquíssimos dentes.

            — Você prometeu que me ensinaria a fazer algum truque. — René reclamou.

            Hank deu com os ombros, e disse:

            — No hotel eu te ensino alguma coisa simples.

            O ruivo bufou, mas não se importou. Sua mãe terminava de cumprimentar Jill, e Vladmir havia acabado de chegar. Após abraços e despedidas, o rapaz viu-se de mãos dadas com Jill seguindo para embarcar no avião. Suas mãos estavam frias, e ele tremeu levemente quando uma voz de mulher avisou que o voo deles estava para sair.

            — Você está bem, amor? — Jill perguntou, com a voz mais doce do mundo.

            — Claro, foi só um... Tremor.

            Jill aceitou aquela resposta, sorrindo. Ela era uma garota bastante doce e meiga. Tinha um rosto comum, o rosto de uma boneca de porcelana. Os olhos eram castanhos escuros, a boca era rosada, as bochechas viviam coradas. A garota usava o cabelo castanho ondulado solto, com uma mecha de dreadlock solta do lado direito. René a amava muito.

            — Vai dar tudo certo.

            — Eu sei. — René respondeu para ela, em parte tentando convencer a si mesmo.

            E antes que pudesse se arrepender, entrou no avião. Em segundos o pássaro de ferro fazia a sua decolagem, e René deixava-se levar por um sono pesado e tranquilo. Com sorte, sem nenhum pesadelo.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo pode demorar a sair. Eu já escrevi ele, mas ainda não revisei. E posso acabar ficando sem internet em breve... Mas ele sairá sim :D Espero que gostem e comentem!