O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 7
II.3 Perigo.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



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O “Académico” estava mais cheio naquele sábado à noite do que no fim-de-semana anterior. Havia mais pessoas de férias e a rua dos bares parecia uma feira. O calor roçava o insuportável dentro do bar mais popular da cidade, naquele verão. De vez em quando ouvia-se alguém gritar para ter cuidado e para não empurrar.

A Patrícia, como sempre, avançou à nossa frente e desapareceu por entre um grupo de raparigas que tapava a circulação junto ao balcão.

- Já perdi a tua irmã - disse eu esticando o pescoço para tentar descobri-la por entre a multidão.

- Ela está ali à frente – retorquiu a Carla apontando. - Vá, fura por aí para podermos passar.

Fiz o que ela me pediu, forcei a passagem e conseguimos alcançar a Patrícia que falava com o Hugo. Cumprimentou-me com dois beijos, que, curiosamente, não tiveram qualquer efeito em mim. Estranhei, pois até achava o rapaz bonito. Mas era compreensível, porque havia outro rapaz mais bonito do que o Hugo. Apesar de ter jurado esquecer-me dele, não tinha cumprido a jura e, em momentos de franqueza, que eu amaldiçoava no momento seguinte, lembrava-me daquele olhar azul intenso que era capaz de queimar a alma.

- Olha quem está ali. O Tiago! – Disse a Patrícia, acenando para o fundo do bar, junto às mesas de matraquilhos.

O meu coração disparou e corei.

- Quem?

- O Tiago. Aquele amigo do Pedro muita querido. Está a rir para cá.

A Patrícia fez-lhe adeus, ele levantou o copo de imperial e devolveu o cumprimento com um piscar de olho. Olhou para mim e deixou-se ficar. Um, dois, dez segundos. Mais do que dez segundos e a Patrícia dizia sempre que, ultrapassado esse tempo, era crítico, que havia química e faísca.

A música e a algazarra do “Académico” diluíram-se e só ficaram eu, o Tiago e a eternidade do nosso olhar trocado.

Uma mancha escura passou por mim e saltei assustada. O Miguel aparecia. Cumprimentou-me, cumprimentou a Patrícia e começou a falar com a Carla. Tínhamos vindo à procura dele, dissera-me a Patrícia, mas o rapaz, apesar de no fim-de-semana passado ter havido qualquer coisa entre ele e a minha amiga, não parecia interessado numa repetição e ignorava-a de propósito. A Patrícia ficou furiosa. Deu meia-volta e foi até ao bar buscar alguma coisa para beber.

O Miguel tapava agora o meu campo de visão, mas ainda consegui espreitar por uma fresta, por cima do ombro dele, e vi o Tiago receber um copo das mãos de uma rapariga morena muito alta que vinha com o João. Bem, estava acompanhado pelo palerma do amigo e desviei a cara. Ali estava a razão para esquecê-lo definitivamente e manter a minha jura.

O Pedro aproximou-se de nós. Fingiu não me conhecer, a Carla nem se apercebeu que ele não gostou quando apontou para mim a dizer:

- Conheces? É a Ana, amiga da minha irmã.

E obrigou-o a dar-me dois beijos, como se nos estivéssemos a apresentar pela primeira vez. Achei a cena hilariante. O Pedro evitava-me, porque eu conhecia o segredo dele com a loira, na praia, arrancados indecentemente do banco traseiro de um Toyota vermelho por um homem zangado. E já agora com muita força, para conseguir puxar pelos dois sem ter feito um grande esforço.

A Patrícia voltou e encetou uma conversa muito animada com o Pedro. Afinal, seria para toda a vida, segundo as palavras dela…

Pulando ao ritmo da música, a Carla trouxe-me uma cola, gingando com uma alegria contagiante. Era o aquecimento para a discoteca, dizia-me ela. O “Académico” emulava uma fornalha e bebi metade da cola de um trago para refrescar-me. Reparei num olhar fugidio que me lançara o Tiago.

O Tiago olhava outra vez para mim?

Voltei costas ao sítio onde ele estava com o palerma do João, mais a amiga morena. Assim, não caía em tentações de passar a noite toda a marcar os gestos do Tiago.

A voz rouca de Cher irrompeu pelo bar adentro, por cima de todas as outras vozes que se atropelavam umas às outras, a cantar “The Shoop Shoop Song”. Eu e a Carla adorávamos aquela música, um remake de um tema antigo que fazia parte da banda sonora de um filme que estivera anos atrás nas salas de cinema. A Carla virou-se para mim e repetiu comigo os versos iniciais da canção:

Does he love me? I wanna know.

How can I tell if he loves me so?

Cantámos e dançámos, fizemos do pouco espaço que tínhamos uma autêntica pista de dança. O suor molhava-me a testa e a nuca, sentia-me feliz. Não resisti e olhei para o Tiago. De copo encostado ao queixo, olhava para mim. Mas como tudo não passava de uma ilusão, ele não estava encantado comigo como me parecia, tornei a voltar-lhe costas.

Para fazer ciúmes ao Miguel, a Patrícia namoriscava com o Pedro. Não gostei de ver a minha amiga atirar-se com tanto descaramento para cima dele. O Pedro fazia parte do grupo do Tiago, padecia da mesma falta de escrúpulos e não seria muito recomendável. Não lhe tinha contado a cena no carro com a loira, na praia do fim do mundo. Por um segundo, considerei contar-lhe, para ver se acabava com aquele namorico, que iria descambar numa escandalosa curtição no final da noite, pois o Pedro não merecia a Patrícia. Mas ela não me iria escutar… Estava apostada em captar a atenção do Miguel com aquele expediente e mesmo que parecesse aceitar o meu conselho, haveria de fazer pior assim que eu não estivesse presente. Bebi a cola, revirando os olhos.

Ainda troquei mais um olhar com o Tiago, mas foi uma situação esquisita. Olhava para mim quando a rapariga morena lhe falava ao ouvido. Sorria e eu não podia precisar se era para mim, se era devido ao que ela lhe estava a segredar. Foi o momento que encerrou a minha noite, dei-me por satisfeita, apesar de, em retrospetiva, ter sido tão pouco. Passado uns minutos, quando voltei a procurar por ele, já tinha saído e levara o João e a morena. O “Académico” perdeu toda a piada e eu arrefeci.

A Patrícia organizava a próxima saída, para a inevitável discoteca “Kadoc”, como sempre fazia, distribuindo pessoas pelos carros existentes. Dava a mão ao Pedro que se deixava guiar por ela, com um ar melado. O Miguel dava mostras de não se importar e a Patrícia apertava mais a mão ao Pedro. Olhei para o relógio, faltava um quarto para as duas da manhã. Disse à Carla que não iria com eles. Acrescentei que estava cansada. A verdade era que não estava com paciência para aturar sítios escuros, com luzes coloridas às voltas, com música aos altos berros, mais os caprichos da Patrícia que só via o Pedro, as boleias malucas que ela poderia arranjar para mim. O plano já estava delineado desde o início, a minha noite terminava na rua dos bares e por isso até tinha trazido o meu carro. Despedi-me e a Carla fez-me prometer que lhe telefonava no dia seguinte.

A rua onde tinha deixado o carro era escura e silenciosa. Não me senti confortável ao andar por ali sozinha, os meus passos ecoavam nas paredes daquele lugar deserto. Agarrei nervosamente no porta-chaves, preparei-me para abrir a porta e meter-me depressa dentro do carro, trancando-me de seguida.

Sem querer, lembrei-me do Tiago. Ele hoje estava mais bonito do que na noite em que o conhecera. Suspirei enlevada na lembrança dele, naquele encanto a derramar-se e a atingir-me, a luz intensa, bela, mas mortal, de uma supernova a explodir no Universo. Abanei a cabeça, rindo-me da minha fraqueza. Escolhi a chave certa, de entre o conjunto de chaves que segurava, apontei-a para a fechadura da porta do carro. Estava disposta a esquecer que ele era desprezível se me concedesse a graça de uma troca de olhares, como tinha acontecido no “Académico”. Mas como podia ser tão ingénua? Agora, detestava-me por estar a ceder tão facilmente ao jogo de sedução do Tiago.

- Não me queres dar uma boleia?

Assustei-me com a pergunta, feita junto ao meu ouvido direito. Saltei, gritei e larguei o porta-chaves que caiu no asfalto fazendo um barulho ensurdecedor no meio daquele silêncio.

Um vulto tinha surgido das sombras e colava-se a mim. Olhei para as chaves no chão e depois para o homem. Usava barba num rosto imundo, tinha a roupa numa lástima, exalava um cheiro nauseabundo, escondia as mãos dentro dos bolsos de um casaco puído e descosido nas mangas. Tentei manter a calma, embora adivinhasse as intenções dele.

- Eu… não vou sair de Faro.

- Não faz mal.

A minha garganta secara e comecei a suar. Tornei a olhar para o chão. O homem percebeu e fez um esgar impaciente.

- Apanha lá a merda das chaves.

Não me mexi.

- Ouviste, ou não?

- Ouvi…

- Então, apanha a merda das chaves.

Decidi obedecer. Agachei-me e agarrei no porta-chaves. Tive de fazer um esforço imenso, como se carregasse um pedregulho nos ombros, para me levantar. As minhas mãos tremiam tanto que eu não tinha qualquer sensibilidade nos dedos, era como se não segurasse nada. O homem apontou para o porta-chaves.

- Abre o carro.

Fiquei outra vez imóvel.

Foi nessa altura que o homem perdeu a paciência. Tirou a mão direita do bolso e apontou-me a lâmina afiada de um canivete de ponta-e-mola. Chegou-se a mim, deu-me um encosto.

- Abre a merda do carro ou ficas já aqui, sua cabra!

A ameaça ficou a zunir nos meus ouvidos, longínqua e distorcida. Depois as palavras escoaram-se e ouvi apenas o zunido persistente que me ensurdecia e me confundia. Ainda pensei, como que para me distrair daquela situação inacreditável, que estava assim por causa da música alta do “Académico”. Era mais do que certo, pois claro, a música estava realmente alta…

Um segundo encosto fez-me reagir. Mas eu estava uma pilha de nervos e as minhas mãos pareciam gelatina e não acertava com a fechadura. O homem rugiu.

- Calma… – murmurei.

Não tinha muito mais tempo. Forcei a mão, a chave entrou e nem sei por que milagre dei com a porta aberta. Recuei para lhe dar espaço. Ele que levasse o carro, que levasse a mala, que levasse tudo o que quisesse, mas que me deixasse em paz. Já não suportava mais aquilo. Iria fugir dali, assim que tivesse espaço suficiente e distância daquela lâmina.

Mas o homem virou-se subitamente.

- Eh!… Tu vens comigo!

Gritei:

- Não!

- Cala-te, cabra!

Senti um puxão nos cabelos. O instinto fez-me tentar correr. A mão porca do homem enredou-se na minha cabeleira. Puxou outra vez, com tanta força, que parecia querer arrancar-me o escalpe. Gritei com a dor. A mesma mão e nem soube como o fez, apanhou-me o pescoço. Fiquei petrificada, à espera de sentir a lâmina cravar-se em qualquer parte do corpo. Fechei os olhos e esperei. O tempo parara.

Um som seco cortou o ar. Senti a pressão aliviar-se do pescoço e deixei-me cair para a frente, joelhos no asfalto. Escutei um urro abafado e outro som seco, como um soco. De olhos fechados, encostei-me ao carro, tentei respirar. O zunido voltava e barrou os demais ruídos, isolando-me num casulo invisível e regressei ao “Académico” onde estava a salvo, rodeada de amigos.

Repentinamente fui devolvida à realidade, o silêncio da rua, a falta de eco e a ausência de claridade amedrontaram-me. Pisquei os olhos, num transe de terror. O que vi na penumbra deixou-me abismada.

O homem que me assaltava estava inconsciente, caído aos pés de um jovem que o olhava com desprezo. Naquela posição de ataque, jurava conhecê-lo. As pernas afastadas, o torso direito, os punhos cerrados, os braços dobrados pelos cotovelos, o cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo. Cheio de carisma e poder. Só lhe faltava a jaqueta azul, as calças pretas e as botas amarelas.

- Trunks? – Balbuciei.

Ele voltou-se para mim. Deixei-me ficar encolhida, assustada, encostada ao carro, as unhas a raspar o asfalto.

- Ana estás bem?

O meu coração parou.

- Tiago? És tu, Tiago?

- Sim, sou eu. Estás bem?

Sustive a respiração, a acreditar que sonhava. Olhei para o homem. Nem sequer gemia, estava totalmente apagado e haveria de se levantar só de manhã, se ninguém desse por aquela coisa ali estendida e o levasse para onde pertencia, um asilo ou a prisão.

O toque do Tiago surpreendeu-me e gritei. A mão dele, quente e forte, estava sobre o meu ombro.

- Calma. Anda, eu ajudo-te.

Levantei-me. As minhas pernas estavam feitas em papa e continuei encostada ao carro, que me ajudava a manter de pé. Percebeu a minha confusão e disse:

- Sim, fui eu que o derrubei. Estava por perto, vi o que estava a acontecer e achei que seria melhor intervir.

- Fizeste bem…

Os meus olhos encheram-se de lágrimas. De repente, o que me tinha acontecido naquela rua escura desabou numa avalancha e comecei a fungar para não desatar a chorar com o Tiago a olhar para mim. Senti-me tão estupidamente vulnerável, tão incrivelmente indefesa, tão massivamente esmagada que só queria enrolar-me e gritar e chorar até ficar seca e expurgar o terror daquela experiência. O Tiago sorria-me, como eu nunca o tinha visto sorrir.

- Então? Já acabou… Eu estou aqui e aquele infeliz já não te vai fazer mal.

Respirei fundo, a engolir os soluços e as lágrimas.

- Pois… Tens razão…

- Dá-me as chaves.

Olhei-o como se me estivesse a assaltar, como o outro. Continuava com o mesmo sorriso.

- Não estás em condições de conduzir – explicou condescendente. – Eu levo-te a casa.

Estendi-lhe o porta-chaves, que chocalhava porque as minhas mãos ainda tremiam. Passei pelo homem com repulsa, deitando-lhe uma última olhadela. Sentei-me no lugar do pendura e o Tiago ocupou o lugar do condutor. Fechámos as portas do automóvel quase ao mesmo tempo.

- Conseguiste desfazer-te dele facilmente – disse.

O comentário fora uma constatação minha, eu falando com os meus botões, tentando reorganizar as ideias e recuperar o sangue-frio, percebendo o que tinha acabado de acontecer, mas o Tiago entendeu que eu estava a falar com ele e replicou:

- Sei algumas habilidades.

Resolvi aproveitar a oportunidade de uma conversa.

- Sabes usar os punhos?

O automóvel arrancou suavemente, os braços dele giraram o volante com segurança. Piscou-me o olho e eu corei.

- Sei – respondeu-me.

- Onde é que aprendeste… a lutar?

- Com o meu pai.

Novamente aquela imagem descabida do Tiago à pancada com o pai e apaguei-a imediatamente do pensamento.

- Ele luta bem? O teu pai…?

- É um grande lutador.

- Ah… E luta porquê? Entra em competições ou coisas do género?

- Porque é que me estás a fazer tantas perguntas?

- Não queres que te faça perguntas?

- Lembras-te dos meus segredos?

- Sim. Matas-me se mos revelares.

- Precisamente, nena.

- Não é que te esteja a perguntar pelo teu verdadeiro nome.

Ele calou-se e virou a cara para a janela que abrira. O ar fresco da noite agitou as madeixas de cabelo que lhe caíam compridas sobre a testa.

A conversa tinha secado.

O cansaço e a emoção daquela noite juntavam-se numa mistura que drenava rapidamente as minhas derradeiras reservas de energia. Encostei a cabeça no banco e deixei-me embalar pela condução dele. Perguntei-lhe, e essa pergunta teria mesmo de a fazer, se sabia para onde ia, se ainda se lembrava onde eu morava. Respondeu-me com um simples sim e não disse nem mais uma palavra.

O automóvel estacionou no pequeno parque que ficava nas traseiras do prédio onde eu morava. O Tiago entregou-me o porta-chaves e levou-me até à porta de casa.

- Agora, vais a pé.

- Não te preocupes. Sei usar os punhos, lembras-te?

Fez-me rir.

E chegava o momento de nos separarmos, eu sem saber como dizer-lhe adeus, até outro dia ou coisa parecida e ele parado, a olhar para mim, com a mesma intensidade que me dispensara no “Académico”. Não podia aguentar mais aquilo e resolvi fazer alguma coisa. Comecei por agradecer-lhe:

- Obrigada por me teres ajudado.

- Como te disse… – Enfiou as mãos nos bolsos, baixou a cabeça e completou num quase murmúrio: – Estava por perto.

O Tiago tivera, subitamente, um ataque de timidez. Senti, pela primeira vez, que a alma dele necessitava desesperadamente de ser alcançada. Mas fiquei atrapalhada por sabê-lo indefeso. Desatei a falar:

- Nem sei o que me poderia ter acontecido se não tivesses aparecido. O homem queria levar-me, não lhe bastava roubar-me o carro… Mas aprendi a lição. Para a próxima, estaciono num sítio mais iluminado e com gente a passar, mesmo a estas horas da madrugada. Mas estacionar na baixa é tão difícil, nunca há lugares. Por isso, tive de deixar o carro naquela rua escura. Ainda bem que estavas por perto. Foi a minha sorte. Obrigada… Mais uma vez, obrigada.

Olhou-me atravessado e eu calei-me. Tinha realmente chegado a hora das despedidas, mas eu, sinceramente, não me queria despedir. Era capaz de passar o resto da noite a conversar com o Tiago na porta do prédio.

- Não é preciso agradecer. Fiz o que devia.

- Ah… Pois.

- Djá ná. – Traduziu rapidamente: - Até à vista.

- Sabes falar japonês?

Quedou-se estático, a vacilar entre a dúvida gigantesca que o dividia em duas partes antagónicas, o anjo e o demónio. Decidia-se se finalmente iria revelar-me os seus preciosos segredos. Oscilou nos calcanhares, como um miúdo de dez anos a antecipar a travessura que o expulsaria da escola. Abriu um meio sorriso e respondeu-me:

- Hai.

- Mas…?

- Eu nasci no Japão.

- No Japão?

- Pode-se dizer…

- Eh… Não me pareces japonês.

Agora, foi a vez dele se rir.

- Nem toda a gente que nasce no Japão tem de parecer japonês. Não achas?

- Sim… - Corei por ter sido apanhada numa asneirada tremenda. – Tens razão. – Acrescentei para que ele não se arrependesse: - O teu nome é japonês?

- O meu nome? Tu queres mesmo saber como me chamo.

- Eh… Quero.

- Porquê?

Encolhi os ombros. E havia uma razão objetiva, válida e inegável, a não ser pelo facto de o conseguir chamar corretamente em sonhos? Pus-me com rodeios:

- Não gostas do teu nome? Porque é que sendo japonês, queres que te chamem por um nome português e falas espanhol?

Inesperadamente, o Tiago corou.

- Estou a aprender português. Já sei… Algumas palavras.

Eu gaguejei, surpreendida com a reação dele.

- Sim? Que palavras?

- Mas não gostas do nome Tiago?

- Não tenho nada contra.

Recuperou a segurança que lhe era típica, endireitou as costas, continuava com as mãos nos bolsos.

- Então, estamos em sintonia. Djá ná, Ana-san – provocou, coroando a frase com uma piscadela de olho que me deixou a tremer.

Disparei, porque ele afastava-se do pequeno patamar da entrada do prédio onde conversávamos:

- Gostaria muito de aprender japonês.

Conseguira mais uns segundos da atenção dele. Perguntou admirado:

- Porquê?

- Tenho as minhas razões.

- Hum… Conheço alguém que poderá ajudar-te.

Esmoreci. Contava que fosse ele a ensinar-me, apanhá-lo a sós, sem a companhia dos palermas dos amigos, porque assim ficava mais civilizado.

- Alguém? Um amigo teu? – Perguntei desiludida.

- Hai.

Era engraçado como, de repente, tinha começado a falar comigo atirando algumas palavras em japonês. Também era engraçado porque tinha a impressão que o timbre da sua voz mudava ligeiramente sempre que falava nessa língua.

- Ele é professor. Chama-se Go… - Hesitou. - Chama-se Gomano. Dá aulas de matemática na Universidade do Algarve.

- Na Universidade do Algarve? Eu trabalho na Universidade, na secção administrativa do departamento de Engenharia Mecânica, na Escola Superior de Tecnologia. Mas acho que não conheço o teu amigo… Dá aulas de matemática? Deve ser em Gambelas…

- Hai. Ele dá aulas na Universidade, em Gambelas.

- Deve ser professor nas “Exatas e Humanas”.

- Procura por ele. Pergunta-lhe se não se importa de te ensinar japonês.

- Achas que ele vai aceitar?

- Diz-lhe que vais da minha parte.

- Está bem. Farei isso.

Ouve um curto silêncio e ele disse:

- Está a fazer-se tarde. Devo ir. Já me demorei muito por aqui.

O meu coração apertou-se. Ele queria voltar para a companhia dos amigos palermas, possivelmente da morena que lhe contava segredinhos ao ouvido e que se encostava tanto a ele. O sonho terminava.

- Até amanhã, Tiago – arrisquei.

- Até amanhã, nena.

Voltei costas, agarrei no porta-chaves, ia abrir a porta, fechar aquele capítulo definitivamente, matutar nele até adormecer, mas ele interrompeu-me o gesto.

- Há pouco, na rua, quando te salvei do assaltante…

- Sim?

- Chamaste-me por um nome.

Sustive a respiração. Ele tinha ouvido aquele disparate? Fora uma alucinação, uma improbabilidade.

- Ah…

- Que nome foi?

- Estava escuro… Naquela posição, a silhueta, o cabelo, fizeste-me lembrar alguém. Alguém que não existe… - Revelei cheia de vergonha: - Chamei-te Trunks.

Ele também susteve a respiração.

- Trunks? Porquê?

- Já te disse, estava escuro. – Mas acrescentei - Conheces o Trunks?

- Sim… Não – respondeu nervoso.

- Conheces “Dragon Ball”?

- Não – cortou.

Acenou-me uma despedida e começou a ir embora, desta vez, definitivamente. Fiquei aborrecida, o Tiago não estava minimamente interessado em conhecer “Dragon Ball”.

Entrei em casa, corri para a janela do meu quarto. Consegui ainda vê-lo a dobrar a esquina e a desaparecer. Mesmo já não o vendo, fiquei à janela, a imaginá-lo a andar, mãos nos bolsos, comigo no pensamento, assim como eu pensava nele. Aquela noite seria longa, não iria dormir porque iria sonhar de olhos abertos com um autêntico príncipe encantado, estrangulando a almofada, pedindo aos deuses outro encontro daqueles, em que ele se tinha esquecido de ser desprezível.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Consciência.



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