O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
Capítulo narrado na primeira pessoa.
O professor Gomano levantou-se da cadeira.
- Já venho, Ana-san.
Acenei que sim, vi-o sair do escritório com passadas ágeis. Olhei para o caderno dos apontamentos. Estava a receber a quarta lição de japonês, naquela segunda-feira à noite.
A porta do escritório abriu-se e entrou a filha do professor. Ignorou-me, foi até à estante e tirou um livro.
Apoiei o queixo na mão e atirei para o ar:
- É uma pena que não percebas o que digo, porque senão poderíamos conversar.
A caminho da porta, a miúda encarou-me.
- Mas eu percebo o que tu dizes.
A surpresa foi tão grande que gritei:
- Ahn?!
- Mas eu percebo o que tu dizes - repetiu ela em castelhano, num tom suave e seguro.
Pestanejei, atrapalhada.
- Eu não sabia que falavas espanhol.
- O meu pai também fala igual a mim.
- Pois fala. Tens razão…
- Então, por que é que ficaste tão espantada?
- Porque ele disse-me… Esquece. – Tentei uma abordagem nova, o cinismo, para tentar perceber o que é que se passava ali. Perguntei: – Como é que te chamas?
- Paula – respondeu sem hesitar.
- Paula? Mas o teu pai disse-me que te chamavas Pan.
Foi a vez de ela pestanejar. Agarrou no livro com mais força.
- Ele disse-te isso?
- Então, como é que te chamas?
Mas a miúda conseguiu ser mais cínica do que eu.
- Tu já sabes o meu nome.
Fiz nova pergunta:
- Quantos anos tens?
- Oito.
- Nasceste no Japão, não é assim?
- Hai, venho do Japão. Pode-se dizer…
- Há quanto tempo estás cá em Portugal? Passaste primeiro por Espanha, não é assim?
Pan correu para a porta do escritório dizendo:
- O ‘tousan está a chegar. Não posso estar aqui.
Recostei-me na cadeira.
O mistério adensava-se. O Tiago e aquela família não eram normais. Não percebia por que é que falavam em espanhol e não em português e por que é que tinham nomes portugueses, em vez de espanhóis? Será que mudavam o nome consoante a terra onde estavam? No Japão, tinham nomes japoneses. Em Espanha tratavam-se por nomes espanhóis. Em Portugal, escolhiam nomes portugueses. E isso não seria confuso, especialmente para uma criança pequena? E o que raio queria dizer que vinham, “podia-se dizer”, do Japão?
O professor regressou. Deixou em cima da mesa um prato de bolachas sortidas e sentou-se.
- Estudar abre o apetite, não concordas?
Concordei, afirmando com a cabeça.
- Tenho sido muito mal-educado porque nunca te ofereci nada quando vens cá estudar comigo.
- Ora, professor, não era preciso.
- Se te apetecer tirar uma, não tenhas vergonha.
- Arigato gozaimasu, Gomano-san.
Ele riu-se.
- Muito bem. Deves ir praticando.
- A sua filha esteve aqui.
- Esteve? – E arqueou as sobrancelhas, que surgiram por cima dos aros dos óculos.
- Veio buscar um livro.
- Pan gosta muito de livros.
Pelo menos, não utilizou o nome fingido da filha na frase. A curiosidade não me largava.
- Diga-me uma coisa, professor. Esteve em Espanha, não é assim?
Ele demorou algum tempo a responder. Ponderava as probabilidades de uma resposta, como um jogador de xadrez a analisar o tabuleiro. Foi conciso:
- Hai.
- Quanto tempo?
- O suficiente para conseguir aprender a falar castelhano.
- E a família do Tiago, também esteve em Espanha?
Novamente um conciso:
- Hai.
- Esteve onde?
- Trabalhei em Sevilha. – Acrescentou inseguro: - Com o pai do Tiago.
- O pai do Tiago também é professor?
Um cada vez mais conciso:
- Hai.
- Ele combate em torneios, não é assim?
Novamente, o pai do Tiago era alguém que eu não conseguia encaixar na história. Um professor universitário a lutar em torneios clandestinos e a ganhar fortunas, que o filho esbanjava em borgas noturnas?
O professor suspirou alto.
- Vamos continuar com a lição?
Ele fugia do assunto, consegui perceber isso. Então, resolvi não insistir, até porque quando o pai do Tiago entrava na equação baralhava o meu brilhante raciocínio, afastando-me sumariamente da solução.
Continuar com a lição seria também o mais ajuizado. Ainda punha o professor zangado comigo por querer saber tanto sobre ele e as aulas de japonês terminavam naquela mesma noite por ser tão intrometida.
O telefone tocou na sala. O professor fechou a porta para não sermos incomodados.
Recomeçámos.
- Bem, Ana-san. Estávamos a ver os verbos, certo?
- Certo. – Agarrei na esferográfica, espreitei o caderno.
- A maioria dos verbos em japonês termina em “masu”.
- Sim.
- Temos como exemplos…
- Tabemasu.
- Que significa…?
- Comer.
- E que mais?
- Yomimasu, que significa “ler”; ikimasu, “ir”; kimasu, “vir”; kirimasu, “cortar”; wakarimasu, que significa “compreender”. – Respondi, lendo o caderno.
- Muito bem. Agora: se quisermos perguntar alguma coisa relacionada com esses verbos adiciona-se a partícula “ka”.
Tirei o apontamento.
- Se quiser perguntar-te se já comeste, digo: tabemasu ka?
- Tabemasu ka… Certo.
- E tu respondes-me com o verbo. Se já comeste, dizes: tabemasu. Se quiseres negar, ou seja, se ainda não comeste, basta mudar “masu” para “masen”.
Tornei a escrever.
- Wakarimasu ka, Ana-san?
- Hai. Wakarimasu.
O professor reclinou-se na cadeira satisfeito.
- Aprendes depressa. Estou muito contente contigo. És uma excelente aluna.
- Arigato gozaimasu.
O elogio envergonhou-me.
A mulher do professor irrompeu pelo escritório como um furacão.
- Gohan!
Vinha alarmada, em pânico. O professor levantou-se preocupado.
O diálogo iria desenrolar-se em japonês, de certeza, para me excluir do assunto que seria assunto de família, certamente. Concentrei-me no que iriam dizer um ao outro, para ver se conseguia perceber alguma coisa. Fixara a primeira palavra que ela dissera. Chamara pelo professor, era lógico. Mas, assim de repente, não me pareceu Gomano. Pareceu-me…
- Gohan, aconteceu uma coisa horrível!
- Acalma-te. O que foi que aconteceu?
- Recebi agora mesmo um telefonema de Kuririn-san. Disse-me que Trunks-kun está no hospital, muito ferido.
- Como? Tens a certeza? – E os olhos dele esbugalharam-se.
- Teve um grande acidente de automóvel na madrugada deste sábado.
- Sábado? Mas hoje é segunda-feira.
- Só hoje conseguiram localizar os pais dele, porque, como tu bem sabes, ele não tinha, tal como nenhum de nós tem, documentos que o pudessem identificar. Bulma-san e Vegeta-san já foram para o hospital. Kuririn-san vai agora para lá, mas antes quis avisar-te…
- Nós também vamos. Quero saber exatamente qual é o estado dele.
Os dois olharam para mim ao mesmo tempo. Apertei a caneta entre os dedos. Tinham falado muito depressa, não entendera patavina. Mas pelas suas expressões consternadas percebi que o assunto era sério e um estranho pressentimento causou-me calafrios.
- Videl, já vou ter contigo.
- Hai.
A mulher saiu, o professor olhou para mim. Saltei da cadeira. Ele mostrava-se tão preocupado, que fui imediatamente contagiada pela sua preocupação. Disse-me:
- Ana-san, a nossa aula terminou.
- Porquê? O que foi que aconteceu?
- Vamos agora para o hospital, eu e a minha mulher. Se não te importas, as aulas ficam adiadas até que eu te diga alguma coisa.
- Quem é que está no hospital?
Apertou os lábios, considerando se deveria contar-me. Percebi-lhe a dúvida, a hesitação, o medo, um estranho medo a roubar-lhe as cores do rosto.
- Um amigo…
- Qual amigo?
Não queria parecer um inspetor da Polícia Judiciária, mas não aguantava a expectativa. Por que é que ele não me contava logo tudo, de rajada, atingir-me com a metralhadora da verdade, deixar-me furada com milhentos buracos por onde se escoaria aquela tensão?
Disse-me com um suspiro:
- O Tiago.
Agora, era eu que empalidecia.
- O Tiago?!!
- Teve um grave acidente de automóvel, este fim-de-semana. Não sabemos de mais nada.
- Posso ir consigo? – Pedi a aguentar as lágrimas.
- Eh… Não sei, Ana-san… Não sei.
Indicou-me a porta do escritório.
- Será melhor não ires, Ana-san.
Mas apesar de o nosso último encontro se ter saldado num abandono e num gelado derretido, o Tiago continuava a manter-se na minha cabeça, irredutível, sorrindo para mim do outro lado do “Académico”. Supliquei:
- Onegai shimass…
E o professor também aguentou as suas lágrimas.
***
Nas urgências do hospital da cidade reinava a confusão característica do sítio, onde chegavam ambulâncias e feridos a precisar de ajuda. Havia correrias, gente a passar de um lado para o outro, os minutos contados, sem tempo, gente pelos cantos, a aguardar notícias, rostos marcados pela angústia e pela espera.
Entrei nas urgências atrás do professor e da mulher, a tremer mais do que já estava a tremer. Nem sabia como tinha conduzido o carro desde Gambelas até Faro, de noite, as luzes dos automóveis que se cruzavam com o meu a confundirem-me, a deixarem-me os olhos a arder, até perceber, a descer a avenida em direção ao hospital, que também podia ser das lágrimas.
Passavam macas e enfermeiros, bombeiros cansados. Segui o professor que parou num canto da sala de espera, onde se foi juntar a cinco pessoas. Familiares, amigos, pensei. Fiquei ligeiramente afastada, não sabia se me poderia incluir na categoria dos amigos. Estava lá porque suplicara e pronto.
Havia uma miúda, aparentemente com a mesma idade da filha do professor, muito loira, o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo com um laço verde a combinar com o vestido da mesma cor. Dava a mão a uma rapariga, também loira, olhar expressivo, bonita, com cerca de dezoito anos. Havia uma mulher mais velha, mas muito bonita, com uma aparência irrepreensível e cativante, com um tom de cabelo esquisito. Pareceu-me ligeiramente azul, ou loiro, ou uma qualquer cor clara e brilhante. Reconheci-a como a mãe do Tiago porque os dois partilhavam parecenças e trejeitos, o mesmo encanto e beleza. O professor aproximou-se dela.
- Ainda bem que vieste. Agradeço-te.
O professor pediu:
- Em japonês, Bulma-san. Será melhor.
Vi a mãe do Tiago inclinar-se e descobrir a minha presença que o corpo do professor ocultava. Acenou afirmativamente com a cabeça. O professor perguntou:
- Já sabem como é que ele está?
- Disseram-nos para esperar mais um pouco. O médico virá falar comigo para dar pormenores, daqui a uns minutos, mas já se passou mais de meia hora.
- Parece-me que estão muito ocupados, esta noite.
- Parece que sim.
Reparei num homem baixinho, de cara cheia e engraçada, com um pormenor qualquer que me chamou a atenção. A sua cara não era como as outras. Faltava alguma coisa… Pelo menos, assim parecia à primeira vista. Tinha o cabelo negro desgrenhado, entremeado com madeixas cinzentas. Estava ao lado da rapariga loira e, apesar de não ser logo evidente, notei parecenças, o que poderia indicar que fossem pai e filha.
- Está nos cuidados intensivos, desde sábado. Não pode receber visitas.
- E o estado dele?
- Grave. Está em coma.
Por último, vi-o. Quase por acaso, estava ligeiramente afastado, como se não fizesse parte do grupo, mas fazia, de certeza absoluta. Desviei os olhos imediatamente, porque o pai do Tiago observava-me como se me quisesse comer viva. Tinha o mesmo olhar que a mulher do professor me lançava quando eu aparecia para as aulas de japonês.
O professor aproximou-se de mim.
- Como é que está o Tiago? – Perguntei.
- Não pode receber visitas, pelo que não vale a pena estares aqui. Vai para casa, vai descansar.
- Mas ele está muito mal?
- Está em coma.
- Em… coma?
Engoli em seco. O professor pousou uma mão no meu ombro, tentava tranquilizar-me, mas senti a mão dele tremer e fiquei ainda mais intranquila. Ia falar, mas o professor negou com a cabeça, cortando-me a fala, amputando-me a curiosidade:
- É melhor ires embora. – E pediu como eu o fizera há pouco: - Onegai shimass.
Fui sensível à súplica dele, pois ele também tinha sido sensível à minha. Contas fechadas, hora de abandonar aquele reduto, onde estava a família do Tiago e os amigos do Tiago, provavelmente os amigos verdadeiros. Não fora nada de evidente, ou de forçado, nem sequer de indelicado, mas o professor conseguira que eu me sentisse uma intrusa.
Concordei no preciso momento em que um médico se abeirava da mãe do Tiago e começava a falar com ela. Mais desalentada com que entrei, saí das urgências, um passo atrás de outro passo, descendo as escadas como se quisesse sentir a solidez do mármore de cada degrau, para me certificar que era mesmo mármore, que não era espuma que me tragava os tornozelos, porque as minhas pernas não tinham consistência e eu continuava a tremer.
Vi a chegada de uma ambulância, com as suas sirenes estridentes. Vi a chegada de um homem grande e gordo, o rosto com uma barba farta a atirar para o branco, acompanhado de uma mulher franzina, uns olhos vivos e o cabelo negro atado junto ao pescoço, vestida com um vestido comprido e desengraçado.
O vento frio da noite bateu-me na cara. Reparei que o céu não tinha estrelas, era negro como a asa de um corvo. Rezei? Acho que sim… Não me lembro bem.
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Próximo capítulo:
No hospital.