O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 17
IV.3 A terrível notícia.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



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O professor Gomano levantou-se da cadeira.

- Já venho, Ana-san.

Acenei que sim, vi-o sair do escritório com passadas ágeis. Olhei para o caderno dos apontamentos. Estava a receber a quarta lição de japonês, naquela segunda-feira à noite.

A porta do escritório abriu-se e entrou a filha do professor. Ignorou-me, foi até à estante e tirou um livro.

Apoiei o queixo na mão e atirei para o ar:

- É uma pena que não percebas o que digo, porque senão poderíamos conversar.

A caminho da porta, a miúda encarou-me.

- Mas eu percebo o que tu dizes.

A surpresa foi tão grande que gritei:

- Ahn?!

- Mas eu percebo o que tu dizes - repetiu ela em castelhano, num tom suave e seguro.

Pestanejei, atrapalhada.

- Eu não sabia que falavas espanhol.

- O meu pai também fala igual a mim.

- Pois fala. Tens razão…

- Então, por que é que ficaste tão espantada?

- Porque ele disse-me… Esquece. – Tentei uma abordagem nova, o cinismo, para tentar perceber o que é que se passava ali. Perguntei: – Como é que te chamas?

- Paula – respondeu sem hesitar.

- Paula? Mas o teu pai disse-me que te chamavas Pan.

Foi a vez de ela pestanejar. Agarrou no livro com mais força.

- Ele disse-te isso?

- Então, como é que te chamas?

Mas a miúda conseguiu ser mais cínica do que eu.

- Tu já sabes o meu nome.

Fiz nova pergunta:

- Quantos anos tens?

- Oito.

- Nasceste no Japão, não é assim?

- Hai, venho do Japão. Pode-se dizer…

- Há quanto tempo estás cá em Portugal? Passaste primeiro por Espanha, não é assim?

Pan correu para a porta do escritório dizendo:

- O ‘tousan está a chegar. Não posso estar aqui.

Recostei-me na cadeira.

O mistério adensava-se. O Tiago e aquela família não eram normais. Não percebia por que é que falavam em espanhol e não em português e por que é que tinham nomes portugueses, em vez de espanhóis? Será que mudavam o nome consoante a terra onde estavam? No Japão, tinham nomes japoneses. Em Espanha tratavam-se por nomes espanhóis. Em Portugal, escolhiam nomes portugueses. E isso não seria confuso, especialmente para uma criança pequena? E o que raio queria dizer que vinham, “podia-se dizer”, do Japão?

O professor regressou. Deixou em cima da mesa um prato de bolachas sortidas e sentou-se.

- Estudar abre o apetite, não concordas?

Concordei, afirmando com a cabeça.

- Tenho sido muito mal-educado porque nunca te ofereci nada quando vens cá estudar comigo.

- Ora, professor, não era preciso.

- Se te apetecer tirar uma, não tenhas vergonha.

- Arigato gozaimasu, Gomano-san.

Ele riu-se.

- Muito bem. Deves ir praticando.

- A sua filha esteve aqui.

- Esteve? – E arqueou as sobrancelhas, que surgiram por cima dos aros dos óculos.

- Veio buscar um livro.

- Pan gosta muito de livros.

Pelo menos, não utilizou o nome fingido da filha na frase. A curiosidade não me largava.

- Diga-me uma coisa, professor. Esteve em Espanha, não é assim?

Ele demorou algum tempo a responder. Ponderava as probabilidades de uma resposta, como um jogador de xadrez a analisar o tabuleiro. Foi conciso:

- Hai.

- Quanto tempo?

- O suficiente para conseguir aprender a falar castelhano.

- E a família do Tiago, também esteve em Espanha?

Novamente um conciso:

- Hai.

- Esteve onde?

- Trabalhei em Sevilha. – Acrescentou inseguro: - Com o pai do Tiago.

- O pai do Tiago também é professor?

Um cada vez mais conciso:

- Hai.

- Ele combate em torneios, não é assim?

Novamente, o pai do Tiago era alguém que eu não conseguia encaixar na história. Um professor universitário a lutar em torneios clandestinos e a ganhar fortunas, que o filho esbanjava em borgas noturnas?

O professor suspirou alto.

- Vamos continuar com a lição?

Ele fugia do assunto, consegui perceber isso. Então, resolvi não insistir, até porque quando o pai do Tiago entrava na equação baralhava o meu brilhante raciocínio, afastando-me sumariamente da solução.

Continuar com a lição seria também o mais ajuizado. Ainda punha o professor zangado comigo por querer saber tanto sobre ele e as aulas de japonês terminavam naquela mesma noite por ser tão intrometida.

O telefone tocou na sala. O professor fechou a porta para não sermos incomodados.

Recomeçámos.

- Bem, Ana-san. Estávamos a ver os verbos, certo?

- Certo. – Agarrei na esferográfica, espreitei o caderno.

- A maioria dos verbos em japonês termina em “masu”.

- Sim.

- Temos como exemplos…

- Tabemasu.

- Que significa…?

- Comer.

- E que mais?

- Yomimasu, que significa “ler”; ikimasu, “ir”; kimasu, “vir”; kirimasu, “cortar”; wakarimasu, que significa “compreender”. – Respondi, lendo o caderno.

- Muito bem. Agora: se quisermos perguntar alguma coisa relacionada com esses verbos adiciona-se a partícula “ka”.

Tirei o apontamento.

- Se quiser perguntar-te se já comeste, digo: tabemasu ka?

- Tabemasu ka… Certo.

- E tu respondes-me com o verbo. Se já comeste, dizes: tabemasu. Se quiseres negar, ou seja, se ainda não comeste, basta mudar “masu” para “masen”.

Tornei a escrever.

- Wakarimasu ka, Ana-san?

- Hai. Wakarimasu.

O professor reclinou-se na cadeira satisfeito.

- Aprendes depressa. Estou muito contente contigo. És uma excelente aluna.

- Arigato gozaimasu.

O elogio envergonhou-me.

A mulher do professor irrompeu pelo escritório como um furacão.

- Gohan!

Vinha alarmada, em pânico. O professor levantou-se preocupado.

O diálogo iria desenrolar-se em japonês, de certeza, para me excluir do assunto que seria assunto de família, certamente. Concentrei-me no que iriam dizer um ao outro, para ver se conseguia perceber alguma coisa. Fixara a primeira palavra que ela dissera. Chamara pelo professor, era lógico. Mas, assim de repente, não me pareceu Gomano. Pareceu-me…

- Gohan, aconteceu uma coisa horrível!

- Acalma-te. O que foi que aconteceu?

- Recebi agora mesmo um telefonema de Kuririn-san. Disse-me que Trunks-kun está no hospital, muito ferido.

- Como? Tens a certeza? – E os olhos dele esbugalharam-se.

- Teve um grande acidente de automóvel na madrugada deste sábado.

- Sábado? Mas hoje é segunda-feira.

- Só hoje conseguiram localizar os pais dele, porque, como tu bem sabes, ele não tinha, tal como nenhum de nós tem, documentos que o pudessem identificar. Bulma-san e Vegeta-san já foram para o hospital. Kuririn-san vai agora para lá, mas antes quis avisar-te…

- Nós também vamos. Quero saber exatamente qual é o estado dele.

Os dois olharam para mim ao mesmo tempo. Apertei a caneta entre os dedos. Tinham falado muito depressa, não entendera patavina. Mas pelas suas expressões consternadas percebi que o assunto era sério e um estranho pressentimento causou-me calafrios.

- Videl, já vou ter contigo.

- Hai.

A mulher saiu, o professor olhou para mim. Saltei da cadeira. Ele mostrava-se tão preocupado, que fui imediatamente contagiada pela sua preocupação. Disse-me:

- Ana-san, a nossa aula terminou.

- Porquê? O que foi que aconteceu?

- Vamos agora para o hospital, eu e a minha mulher. Se não te importas, as aulas ficam adiadas até que eu te diga alguma coisa.

- Quem é que está no hospital?

Apertou os lábios, considerando se deveria contar-me. Percebi-lhe a dúvida, a hesitação, o medo, um estranho medo a roubar-lhe as cores do rosto.

- Um amigo…

- Qual amigo?

Não queria parecer um inspetor da Polícia Judiciária, mas não aguantava a expectativa. Por que é que ele não me contava logo tudo, de rajada, atingir-me com a metralhadora da verdade, deixar-me furada com milhentos buracos por onde se escoaria aquela tensão?

Disse-me com um suspiro:

- O Tiago.

Agora, era eu que empalidecia.

- O Tiago?!!

- Teve um grave acidente de automóvel, este fim-de-semana. Não sabemos de mais nada.

- Posso ir consigo? – Pedi a aguentar as lágrimas.

- Eh… Não sei, Ana-san… Não sei.

Indicou-me a porta do escritório.

- Será melhor não ires, Ana-san.

Mas apesar de o nosso último encontro se ter saldado num abandono e num gelado derretido, o Tiago continuava a manter-se na minha cabeça, irredutível, sorrindo para mim do outro lado do “Académico”. Supliquei:

- Onegai shimass

E o professor também aguentou as suas lágrimas.

***

Nas urgências do hospital da cidade reinava a confusão característica do sítio, onde chegavam ambulâncias e feridos a precisar de ajuda. Havia correrias, gente a passar de um lado para o outro, os minutos contados, sem tempo, gente pelos cantos, a aguardar notícias, rostos marcados pela angústia e pela espera.

Entrei nas urgências atrás do professor e da mulher, a tremer mais do que já estava a tremer. Nem sabia como tinha conduzido o carro desde Gambelas até Faro, de noite, as luzes dos automóveis que se cruzavam com o meu a confundirem-me, a deixarem-me os olhos a arder, até perceber, a descer a avenida em direção ao hospital, que também podia ser das lágrimas.

Passavam macas e enfermeiros, bombeiros cansados. Segui o professor que parou num canto da sala de espera, onde se foi juntar a cinco pessoas. Familiares, amigos, pensei. Fiquei ligeiramente afastada, não sabia se me poderia incluir na categoria dos amigos. Estava lá porque suplicara e pronto.

Havia uma miúda, aparentemente com a mesma idade da filha do professor, muito loira, o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo com um laço verde a combinar com o vestido da mesma cor. Dava a mão a uma rapariga, também loira, olhar expressivo, bonita, com cerca de dezoito anos. Havia uma mulher mais velha, mas muito bonita, com uma aparência irrepreensível e cativante, com um tom de cabelo esquisito. Pareceu-me ligeiramente azul, ou loiro, ou uma qualquer cor clara e brilhante. Reconheci-a como a mãe do Tiago porque os dois partilhavam parecenças e trejeitos, o mesmo encanto e beleza. O professor aproximou-se dela.

- Ainda bem que vieste. Agradeço-te.

O professor pediu:

- Em japonês, Bulma-san. Será melhor.

Vi a mãe do Tiago inclinar-se e descobrir a minha presença que o corpo do professor ocultava. Acenou afirmativamente com a cabeça. O professor perguntou:

- Já sabem como é que ele está?

- Disseram-nos para esperar mais um pouco. O médico virá falar comigo para dar pormenores, daqui a uns minutos, mas já se passou mais de meia hora.

- Parece-me que estão muito ocupados, esta noite.

- Parece que sim.

Reparei num homem baixinho, de cara cheia e engraçada, com um pormenor qualquer que me chamou a atenção. A sua cara não era como as outras. Faltava alguma coisa… Pelo menos, assim parecia à primeira vista. Tinha o cabelo negro desgrenhado, entremeado com madeixas cinzentas. Estava ao lado da rapariga loira e, apesar de não ser logo evidente, notei parecenças, o que poderia indicar que fossem pai e filha.

- Está nos cuidados intensivos, desde sábado. Não pode receber visitas.

- E o estado dele?

- Grave. Está em coma.

Por último, vi-o. Quase por acaso, estava ligeiramente afastado, como se não fizesse parte do grupo, mas fazia, de certeza absoluta. Desviei os olhos imediatamente, porque o pai do Tiago observava-me como se me quisesse comer viva. Tinha o mesmo olhar que a mulher do professor me lançava quando eu aparecia para as aulas de japonês.

O professor aproximou-se de mim.

- Como é que está o Tiago? – Perguntei.

- Não pode receber visitas, pelo que não vale a pena estares aqui. Vai para casa, vai descansar.

- Mas ele está muito mal?

- Está em coma.

- Em… coma?

Engoli em seco. O professor pousou uma mão no meu ombro, tentava tranquilizar-me, mas senti a mão dele tremer e fiquei ainda mais intranquila. Ia falar, mas o professor negou com a cabeça, cortando-me a fala, amputando-me a curiosidade:

- É melhor ires embora. – E pediu como eu o fizera há pouco: - Onegai shimass.

Fui sensível à súplica dele, pois ele também tinha sido sensível à minha. Contas fechadas, hora de abandonar aquele reduto, onde estava a família do Tiago e os amigos do Tiago, provavelmente os amigos verdadeiros. Não fora nada de evidente, ou de forçado, nem sequer de indelicado, mas o professor conseguira que eu me sentisse uma intrusa.

Concordei no preciso momento em que um médico se abeirava da mãe do Tiago e começava a falar com ela. Mais desalentada com que entrei, saí das urgências, um passo atrás de outro passo, descendo as escadas como se quisesse sentir a solidez do mármore de cada degrau, para me certificar que era mesmo mármore, que não era espuma que me tragava os tornozelos, porque as minhas pernas não tinham consistência e eu continuava a tremer.

Vi a chegada de uma ambulância, com as suas sirenes estridentes. Vi a chegada de um homem grande e gordo, o rosto com uma barba farta a atirar para o branco, acompanhado de uma mulher franzina, uns olhos vivos e o cabelo negro atado junto ao pescoço, vestida com um vestido comprido e desengraçado.

O vento frio da noite bateu-me na cara. Reparei que o céu não tinha estrelas, era negro como a asa de um corvo. Rezei? Acho que sim… Não me lembro bem.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
No hospital.



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