O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 10
III.2 O professor.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/306721/chapter/10

Os corredores da Unidade de Ciências Exatas e Humanas da Universidade do Algarve estavam desertos. Eram grandes e sombrios, com o sol a tentar penetrar pelas janelas pequenas e retangulares para iluminar a arquitetura moderna, em tons de vermelho. Era o final da tarde, tempo de férias e não havia alunos, nem professores e a maioria dos funcionários também já tinha ido embora.

Fora a Gambelas tratar de alguns assuntos relacionados com o meu trabalho e, antes de me ir embora, resolvera passar pela secretaria da Unidade. Perguntei pelo professor Gomano. Por detrás do vidro do balcão do atendimento, a colega disse:

– Estás com sorte, querida. O professor está cá hoje… Já sabes, neste período de férias, sem aulas, nem sempre os professores vêm até à universidade. Podes encontrá-lo na biblioteca.

– Obrigada pelas indicações. Até amanhã.

– Até amanhã, querida.

Subi as escadas que levavam ao piso superior onde se situava a biblioteca da Unidade, uma sala ampla com portas envidraçadas que abria diretamente para um átrio decorado com escaparates que exibiam revistas e jornais científicos, ainda uma pequena secretária normalmente ocupada pela funcionária que ali trabalhava e que anotava, no computador, as requisições dos livros. Mas antes de alcançar a biblioteca, vi um homem sair, com uma pasta de cabedal na mão. Cabelos negros, óculos grandes num rosto redondo de feições bem vincadas, mas agradáveis, corpo de medidas proporcionais. Chamei-o, enquanto estugava o passo para me juntar a ele:

– Olhe, desculpe… Sabe-me dizer onde posso encontrar o professor Gomano?

O homem encarou-me com um sorriso tranquilo, os óculos descaíram ligeiramente e pude reparar nos seus enormes olhos negros. Olhando melhor, o homem aparentava ter cerca de trinta anos e era bastante atraente.

– O que é que queres do professor Gomano? – Perguntou-me em castelhano.

Estaquei, com um arrepio, ajeitando o dossier azul-escuro que levava debaixo do braço, que continha a papelada que me tinha levado até Gambelas. Aquela coincidência da língua estrangeira levou-me a uma conclusão óbvia, mas esquisita, e arrisquei perguntar:

– Você é o professor Gomano?

– Sim.

– Ah… Olá. Boa tarde, muito prazer.

Estendi-lhe a mão direita atabalhoadamente. Ele passou a mala de cabedal para o outro braço e apertou-me a mão, num gesto amigável, imbuído de uma sensualidade camuflada, com aquele jeito misterioso e doce que eu reconhecia escondido no Tiago, que acabei por corar e esquecer o que lhe queria dizer a seguir.

– Muito prazer – disse ele a sorrir, lendo as minhas reações descabidas. – Já sabes o meu nome, mas eu não sei o teu.

Lembrei-me do que queria dizer a seguir.

– Chamo-me Ana e sou amiga do Tiago.

Bem, provavelmente não deveria juntar as duas coisas na mesma frase, o meu nome e o meu salvo-conduto para ter acesso ao professor, mas saiu-me tudo de rajada, de repente, sem que me pudesse controlar.

Ele estranhou. Ajeitou os óculos na cana do nariz e perguntou:

– Quem é o Tiago? É meu aluno?

– Não. É seu amigo.

– Amigo?

E o professor fez uma cara pensativa, como se fosse a primeira vez que estava a ouvir aquele nome. Mas depois algo se ligou nos seus neurónios e ele voltou a sorrir com aquele encanto que o Tiago também tinha mas numa escala mais celestial:

– Ah, o Tiago! Claro!... O Tiago.

E acrescentou baixinho, só para ele, mas eu acabei por ouvir:

O que será que Trunks-kun arranjou desta vez, para que esta rapariga tenha vindo à minha procura?

O professor murmurara em japonês e foi meia vitória, afinal a recomendação do Tiago era válida. Por instantes, no domingo seguinte ao nosso encontro na porta do meu prédio, começara sinceramente a acreditar que o Tiago me tinha indicado o amigo professor só para se livrar de mim e da responsabilidade de me ensinar a língua do seu país natal.

– O Tiago disse-me que sabe japonês e eu queria saber se não se importava, senhor professor, de me dar algumas lições nessa língua.

– Queres aprender japonês? – Perguntou ele, franzindo o sobrolho.

– Quero.

– Porquê?

O professor mostrava-se desconfiado. Inspirei fundo e respondi com a voz afetada:

– Porque é uma língua diferente, de um país que admiro muito. Uma forma de enriquecer os meus conhecimentos, de alargar o meu currículo. É também uma língua difícil, com uma estrutura tão diferente da nossa, que será um desafio interessante conseguir dominá-la. Pretendo começar pelo japonês falado.

Uma resposta digna de uma entrevista para conseguir um lugar num qualquer curso de línguas com inscrições limitadas e fiquei toda orgulhosa. Só que ele não se impressionou.

– E queres que seja eu a ensinar-te japonês? Mas eu sou professor de matemática.

– Existe algum problema?

– Existe. Eu não te posso ensinar japonês.

O coração caiu-me aos pés.

– Porque não?

– Bem… Não sei se estarei a altura da tarefa.

– Mas o senhor sabe japonês, não sabe?

– Sei… - Gaguejou e foi a vez de ele corar.

– Viveu no Japão?

– Nasci lá. Pode-se dizer…

– Então, pode ensinar-me japonês. Prometo que serão poucas lições, só quero aprender o básico. O suficiente para conversar e compreender o que me dizem nessa língua. Prometo que não o irei aborrecer com muitas dúvidas. Consigo aprender depressa. Sempre fui boa aluna, especialmente a línguas.

– Não sei, Ana-san.

Depois do Tiago, foi a segunda pessoa que me tratou assim e achei delicioso. Mas a cortesia de nada servia se ele continuasse a recusar-se ser meu professor.

– Eu pago-lhe as lições! – Atirei.

– Não quero que me pagues nada.

– Então, qual é o problema?

– E onde teríamos as aulas?

– O senhor decide.

Olhou-me entre o aborrecido e o curioso.

– Tu não vais desistir, pois não?

– Não, professor.

– Porquê?

– É a minha oportunidade para aprender japonês.

– Terás mais oportunidades, acredito.

– Mas ter aulas particulares não se consegue sempre.

– É, realmente, um privilégio.

– Senhor professor…? Posso considerar-me uma aluna sua?

Deu-se por vencido, concordou com um suspiro muito pouco ortodoxo. Eu sorri, do alto da minha vitória. Tinha conseguido as aulas, teria, a partir dali, acesso a um dos amigos do Tiago que não era um palerma e poderia ver o Tiago, se ele algum dia fosse até à casa do professor Gomano. Oh, que coincidência feliz quando, nesse mesmo dia, eu estivesse no meio de uma aula de japonês a aprender o nome das estações do ano, ou como se diziam os números até dez.

Entregou-me um papel onde rabiscara a morada e pediu-me para aparecer naquela noite, pelas nove horas, para combinarmos melhor as aulas.

– Hoje? – Admirei-me.

– Hoje. Quando mais cedo começarmos, melhor. Não concordas?

– Sim, concordo.

O professor despediu-se. Vi-o desaparecer nas escadarias e ainda consegui vê-lo a ziguezaguear por entre os carros estacionados, fugindo como se fosse perder o autocarro. Montou-se em cima de uma bicicleta e saiu do campus a pedalar. Gostei dele e prometi ser uma aluna exemplar, da qual ele se orgulharia e da qual se lembraria sempre, afinal seria a sua primeira aluna de japonês.


***


O papel indicava que o professor Gomano morava numa vivenda da urbanização das Gambelas, perto da universidade. Assim que acabei de jantar, agarrei num caderno e numa esferográfica e pus-me a caminho. Às nove em ponto estava a bater na porta da casa.

Uma luz acendeu-se no vestíbulo. A porta abriu-se e eu demorei algum tempo a perceber que não se abrira sozinha. Olhei para baixo e descobri que estava a ser recebida por uma miúda que rondava os oito anos, que me observava com um ar reprovador, como se eu fosse uma vendedora de enciclopédias.

– Olá – disse e procurei ser amável. - Boa noite. O teu pai está?

Após mais uns segundos de dissecação visual, virou-se e anunciou:

– Otousan! Está aqui uma menina à tua procura!

A voz do professor Gomano surgiu de dentro de casa.

Ela já chegou? Ah… Sim, já está na hora… Diz-lhe para entrar. Leva-a para a sala, por favor. Arigato.

A miúda fez-me um sinal, entrei e deixou-me na sala-de-estar da vivenda, que era enorme e estava muito bem decorada. Antes de sair, deitou-me outro dos seus olhares curiosos, que me davam a incómoda sensação de que era algum bicho raro que nunca vira.

O professor Gomano apareceu vindo de um corredor onde se via o princípio das escadas que davam acesso ao segundo piso da vivenda.

Komba-wa, Ana-san – disse ele.

Respondi em português, desconfiando do que ele me tinha acabado de dizer, mas que me parecia um cumprimento:

– Boa noite, senhor professor.

– Por favor, não me chames assim. Trata-me pelo nome.

– Pelo nome, como?

– Por Goh… Por Gomano.

– Eh… Vai ser um pouco difícil no início, senhor prof… - Emendei: - Professor.

Uma mulher apareceu, de mão dada com a miúda que me abrira a porta. O professor mostrou um sorriso amarelo e apresentou-as:

– São a minha mulher e a minha filha, Valéria e Paula.

– Boa noite. – E fiz uma pequena vénia, mas as duas não reagiram.

A mulher disse em japonês:

Não me disseste que tinhas visitas.

O professor deixou de sorrir e respondeu, também em japonês:

Não… Devo ter-me esquecido de te dizer.

Quem é ela? É tua aluna?

– Hai. É uma aluna especial.

Especial? O que é que andas a tramar, desta vez, Gohan-san? É melhor começares com as explicações.

Falavam em japonês, porque era suposto eu não entender o que diziam, mas percebia que discutiam sobre e por causa de mim. O professor gaguejou:

Ela está aqui para aprender japonês. Logo te explico, assim que ela se for embora.

Espero bem que sim.

Atendendo à linguagem corporal, notei que a mulher do professor não gostava de mim.

Isso vai demorar muito? – Acrescentou, semicerrando os olhos.

Não, não. Uma hora… Talvez menos.

O professor disse-me, indicando o corredor de onde viera:

– Vamos para o escritório, ficaremos mais à vontade. – Ainda se virou para a mulher: - Se precisar de alguma coisa, chamo-te. Está bem?

Mas a mulher já não lhe respondeu.

Enquanto entrava para o escritório perguntei:

– A sua filha Paula… Só fala em japonês, em casa?

– Ela não sabe falar outra língua.

– Não sabe falar português? – Admirei-me.

– Não.

– Mas como é que tem um nome português?

O professor ficou pouco à vontade.

– Por causa da escola…

– Da escola? Ela anda na escola e não sabe falar português?

– É uma escola… japonesa.

– E para que precisa de um nome português, numa escola japonesa?

– O nome verdadeiro dela não é esse – lançou o professor, como uma boia à qual teria de se agarrar para se salvar do naufrágio.

Igualzinho ao Tiago… O que era demasiado estranho. A relação era óbvia, mas não consegui estender o fio de Ariadne de modo a quebrar o enigma do labirinto e conduzir-me à saída luminosa da verdade.

– E qual é o seu nome verdadeiro? – Perguntei, à espera da mesma desculpa que o Tiago invocava.

Mas o professor concedeu em dar-me uma resposta:

– O nome dela é Pan.

– Pan? É um nome invulgar…

Indicou-me uma das três cadeiras que rodeavam uma mesa posta no centro do escritório, enquanto fechava a porta com um cuidado extremo, para não fazer barulho e irritar ainda mais a mulher.

O escritório do professor Gomano fascinou-me por causa do aspeto imponente que lhe davam as prateleiras do chão até ao teto, cheias de livros. Nas lombadas que consegui ler percebi títulos em japonês ou em inglês. Contudo, não era muito espaçoso, ocupado quase totalmente pelas estantes, por uma secretária e a mesa central.

Sentei-me, retirando da mala o caderno e a esferográfica que trouxera. O professor afastou alguns papéis, jornais e livros que cobriam o tampo da mesa, para encontrar um espaço vazio para começarmos a aula. Ele espreitou por cima dos óculos o caderno que eu abria diante de mim e sorriu, divertido com a minha demonstração de aluna aplicada. Pigarreou ligeiramente e disse:

– Espero não defraudar as tuas expetativas.

– Não se preocupe. Sempre quis aprender japonês. Gosto de aprender. Devemos estar sempre dispostos a aprender, não acha?

Hai, concordo. Eu também gosto muito de aprender. Foi a minha mãe que me ensinou a gostar de livros e de estudar. – Confidenciou pensativo: – É graças a ela que hoje sou um académico, um professor de matemática. Mas, o meu pai gostaria mais que eu fosse…

Deteve-se, enredado numa memória antiga que lhe iluminou a rosto e os olhos.

– Há muito tempo que conhece o Tiago? – Perguntei, a ver se o retirava do lugar onde se enredara.

– Quem?

– O Tiago.

– Ah… O Tiago. Sim, conheço-o desde que nasceu.

– A sério? – Sorri, porque imaginei o Tiago bebé, uma criança fofa, bonita, um anjo querido, nos braços da mãe enlevada no seu precioso tesouro.

O professor tornou a pigarrear.

– Podemos começar?

Endireitei as costas e fiz que sim com a cabeça.

– Muito bem. Primeiro: sabes dizer alguma coisa em japonês?

– Sim, palavras simples.

– Podes começar.

Desatei a enumerar as palavras e as frases curtas que sabia dizer na língua do país do sol nascente.

E foi assim que iniciei a minha primeira lição de japonês com o estranho professor Gomano.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Rebelião.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.