A Cura escrita por KAlexander


Capítulo 2
II. Eu e o Anjo




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Um breve segundo de escuridão, antes que a luz atacasse meus olhos. Demorei um instante para me acostumar com toda a claridade, e percebi que estava em algum lugar aberto. O Sol brilhava acima, uma luminosidade branca e exagerada tocando todos os espaços ínfimos. Então pude enxergar o panorama ao redor.

Bem, eu tinha de parabenizar o doutor. Se conseguisse sair daquele estado, obviamente, eu lhe recompensaria pela experiência. Ele me explicara os efeitos que poderiam ocorrer, caso algo saísse errado. A máquina induziria um estado de paralisia em meu corpo, e eu seria capaz de rever todas as minhas memórias, como num sonho particularmente realista... Contudo, meu corpo poderia permanecer no estado de imobilidade. Esse era o risco, e as probabilidades eram relativamente altas. Um coma induzido... Não era à toa que não havia voluntários.

Ainda assim, eu aceitara. Precisava arriscar... E não me arrependia em absoluto.

Eu sabia onde estava. Conhecia a praça, num largo de uma rua silenciosa. Era um bairro domiciliar, e não havia carros circulando àquela hora da tarde. Tudo tão vívido... as cores, o cheiro da terra, da grama... O ruído das folhas, farfalhando com o vento na copa das árvores. Era estonteante, saber que todas aquelas sensações permaneciam em minha lembrança, guardadas e embaçadas. Como uma pintura restaurada, eu reconhecia os detalhes da cena, o formato das casas... O brilho do céu, num momento próximo ao fim da tarde. O marasmo das nuvens... Como poderia ter esquecido?

Não havia escolhido o momento em minhas memórias, mas era bastante adequado estar ali. Eu queria sanar pesares... Era este o objetivo, e para isso eu havia arriscado meu último ano de vida. E talvez aquele fosse o maior de todos os arrependimentos. O único, na verdade. Não seria maior do que os meses que poderia estar jogando fora. Contudo, todos os pensamentos foram varridos. Aquela voz, suave e infantil, chegou até mim. Meu coração acelerou quando a reconheci...

Eu estava no bulevar, na entrada da praça, quando reconheci o casal que se aproximava. Foi uma sensação estranha ver a mim mesmo, oito anos mais jovem; um rapaz bastante normal, no fim da adolescência. Usava o uniforme escolar, os cabelos desgrenhados que nunca haviam mudado. Mas eu sorria, e era um sorriso bonito... Algo sincero e simples, de uma felicidade tola, que eu não reconhecia no espelho há muitos anos. E a figura mais baixa, ao lado do meu eu adolescente, era o motivo do semblante calmo.

– Nós não deveríamos fazer isso – dizia ela, olhando ao redor com preocupação. – Eu sempre faço coisas idiotas quando estamos juntos... Se formos pegos a culpa é sua!

Eu dei um riso sacana, e ele fez o mesmo. – Não se preocupe Anjo. Se isso acontecer, direi que raptei você... Acha mesmo que eu deixaria a culpa cair nas suas costas?

Ela estudou meu rosto por um instante. Estava mesmo duvidando... Então suspirou, cansada, jogando os cachos castanhos para trás. – Acho que você é irresponsável. Só isso. E idiota o suficiente para assumir a culpa... Vamos.

Ajeitando a mochila nas costas, ela cruzou o portão de ferro torcido, que rangeu quando foi empurrado. Afastou-se sem esperar, e o meu eu mais jovem ficou ali, estático, contemplando seus movimentos. Então balançou a cabeça, sorriu de canto e seguiu no encalço da garota.

Eu lembrava aquele momento. A cena era pouco nítida, no entanto eu recordava meus pensamentos. Estava vislumbrando o quanto ela era especial. Não acreditava que alguém assim pudesse ter entrado em minha vida... Quebrando barreiras, ela havia reivindicado seu espaço em meu coração. De um modo sutil e bizarro, Anjo se encravara em mim. E eu não conseguia me imaginar sem ela. Acho que foi esse o motivo de seu apelido... Anjos estão sempre conosco, protegendo e exalando conforto... Ao menos, era o que diziam.

Esses eram os pensamentos ingênuos do adolescente que eu fora um dia.

Eu também atravessei a limiar da praça, seguindo-os sem pressa. Ao passo que avançava pelo caminho de pedras – ladeado pelas árvores altas, sombreando o ambiente – imaginei o que havia acontecido com ela. Eu não via Anjo há muitos anos, e em algum momento parei de procurar notícias de seu paradeiro. Eu sentia saudades. Lembrava-me de seu rosto todos os dias. Em especial de seu sorriso... Anjo tinha vários sorrisos, e os mostrava mesmo que estivesse prestes a partir de angústia. Era a característica que eu mais apreciava nela... A estranha capacidade de tentar sentir felicidade. Pois mesmo que não fosse feliz, ela tentava insistentemente. E eu não conseguia ser indiferente a isto.

No entanto, Anjo guardava um sorriso somente para mim. Ela o exibia em pequenos momentos, quando estávamos a sós... Em paz com o mundo, em paz com a consciência. Contudo, aqueles momentos lhe causavam dor. Sempre lhe causaram dor quando iam embora, se apagando com a minha distância. Mas era o meu sorriso, e não me importava em ser egoísta... Não me importava em machucá-la a cada vez que poderia vê-lo.

Segui pelo caminho de pedras até que ele se abrisse, revelando a área extensa e vazia do playground. Estava iluminado pelos raios avermelhados do fim de tarde. Os balanços se moviam esporadicamente, um ruído metálico no silêncio solitário da praça. Vi as mochilas jogadas num banco quebrado, os casacos do uniforme, e registrei as silhuetas achegadas; caminhavam por entre os brinquedos abandonados. As vozes indistintas me alcançavam, mas não foi necessário compreender nada.

Anjo falaria sobre música e histórias fantásticas... Discursaria sobre os problemas do mundo de maneira apaixonada... E eu ouviria tudo. Daria risada, dizendo que sua preocupação era exacerbada e inútil. Esforços de uma mente idealista, ingênua. Então ela faria um bico irritado e cruzaria os braços, e eu gargalharia... E quando estivesse absolutamente abismada e zangada, eu a abraçaria contra a sua vontade. Beijaria sua testa, e suas bochechas teriam a cor exata da boca pequena.

Nós éramos assim. Desde o dia em que pusera meus olhos nela, eu gostava de provocá-la. A princípio, o fizera por mera diversão. Depois de conhecê-la melhor, passei a importuná-la para ter certeza de sua atenção. Para saber da veracidade de seu coração. Por que Anjo me amava... E aquele sentimento não permitia que se aborrecesse comigo. Ao menos, não por muito tempo. Portanto, enquanto pudesse me perdoar, eu saberia que as raízes de sua emoção estavam presas a mim. 

A alguns metros, eu a vi sentar-se na gangorra. O rosto redondo estava voltado para o por do sol, banhado em luz, e seus olhos castanhos ganharam um tom liquefeito. Encerravam um fulgor distante. Ela refletia, próxima e igualmente remota. Jamais me parecera tão bonita... Ou talvez eu nunca houvesse prestado atenção suficiente.  Não havia me dado conta da sua importância.

– Ainda se culpando por matar aula? – indagou minha versão imatura, sentando diante dela. – Ser irresponsável é saudável de vez em quando. Deveria tentar.

Ela ergueu a sobrancelha, enfrentando minha expressão desafiadora. – Você nunca vai crescer, não é mesmo?

– Você também não. Os anjos não envelhecem... Vai continuar encantadora como está agora. Não pode ser algo ruim.

Anjo piscou, desconcertada, e então baixou a face. Ponto ganho... E ali estava a recompensa. O sorriso curto e envergonhado, o olhar devotado... O meu sorriso. Fruto de uma crueldade desmedida, era verdade. Por que tudo o que sentia por Anjo era potencial. Eu a amava, mas de uma forma incompreensível. Até mesmo para mim, na época... Todavia, eu continuava reivindicando meus sorrisos. E hoje compreendo a razão.

A potencialidade era falsa. Não era expectativa de desejo.

Era espantosa e unicamente real.

– Em que está pensando? – perguntei pouco depois.

– Em nada... Só estou sentindo.

– Sentindo o que?

Ela inclinou a cabeça e me olhou nos olhos.

Somente sinceridade, e isso me assustou... Conseguia lembrar a sensação. Era um olhar honesto, que ignorava minha malícia. Vi a mim mesmo virando o rosto, incapaz de afrontá-la.

– Algo estranho... Mas é algo bom. Talvez seja felicidade.

Sorrindo, eu toquei seu rosto. – Você é tão boba, Anjo... – Eu beijei a ponta de seu nariz, e então levantei. – Vamos embora?

Ela concordou, e o rapaz adolescente passou por mim, indo em direção as mochilas. Anjo permaneceu na gangorra, observando-o se afastar. Naquela época, eu não pude ver seu semblante. Ela estava triste. Por minhas costas, ela estava continuamente triste... Infeliz e resignada com o meu tratamento. Era minha culpa, mas ela não se afastava. Não me deixava. Por que Anjo era sempre tão boba... Sempre tão arrebatada. E eu era apenas impassível. Era mais seguro ser impassível e ignorar sua infelicidade. Ignorar qualquer infelicidade.

E assim continuamos por mais alguns anos.

Entre nós houve apenas aquela estranha amizade. O que ela era para mim, eu não pude retribuir. Não por falta de pretensão... Entretanto, estava inteiramente confiante da mão que Anjo me estendia. Ela não me abandonaria; não seria capaz... Um engano meu. Erro que cálculo, eu diria. E aos poucos, imperceptivelmente aos meus olhos vendados, ela cortou as raízes de sua emoção. Um a um, sem que eu notasse a mudança, Anjo libertou-se daqueles grilhões, todos presos ao meu próprio coração.

Ela foi embora. Tão sutilmente quanto costumava ser, Anjo não disse palavras de adeus. Estava ao meu lado num momento... E apenas foi-se, com o mesmo sorriso, como se pretendesse me encontrar em breve. Isto não aconteceu; de alguma forma, uma intuição forte quem sabe, ocorreu-me que jamais aconteceria. Eu não veria Anjo, por que esta era a sua vontade. E suas ambições eram violentas... Um contraste com o invólucro frágil e gentil.

Os anos se passaram, e os boatos chegaram até mim. Anjo estava longe, muito distante. Em algum país quente, de praias limpas e areia macia. Um dos lugares em que ela sonhara viver um dia; havia me contado esse sonho em alguma conversa.

Eu ainda lembrava...

Diziam que não estava mais só. Ela havia descoberto alguém, e essa pessoa era a fonte de sua felicidade. E por um momento, eu pude afastar meu egoísmo, sentir alegria por sua realização. Então ela não estava tentando ser feliz... Estava completa, em fim.

E eu estava definhando... Morrendo aos poucos.

Queria encontrá-la. Vê-la, me desculpar... Eu a havia perdido, e naquele instante, tão perto do fim, conseguira mensurar sua falta. Anjo era minha paleta de cores, e tudo se tornou cinza gradualmente... O tom cinza do vazio, do silêncio... Da falta de sua risada, sua voz bronqueando comigo.

E a percepção da morte iminente tomou uma força esplendida. Pela primeira vez eu senti medo. Medo e solidão. Eram sensações curiosas e muito novas para mim. Sempre estivera sozinho. Entretanto, jamais solitário. E o medo... Não tenho meios para classificá-lo. Medo de não haver nada no presente? Nada que valesse a pena, ao menos? Não sei... Medo de encontrar coisa alguma no futuro?

Ah... Uma grande confusão em minha mente. Contudo eu sabia o que fazer. Tinha de amainar todo o ruído em meu cérebro. Era esse o propósito, e fiquei surpreso por simplesmente... saber.

A figura pequena de Anjo levantou-se da gangorra e passou por mim, uma sombra em minhas próprias memórias; seguiu o meu eu adolescente e ambos foram embora. Foi então que pude me decidir.

– Doutor?

Uma leve brisa tocou minha nuca, e ouvi os passos abafados estacarem ao meu lado. Olhei o perfil do doutor, e ele também mirava o casal que se afastava.

– Já se decidiu? – indagou ele, franzindo o cenho. – Tão rapidamente?

– Não tenho muitos arrependimentos, doutor. Apenas um... E é o suficiente para me torturar.

– Compreendo... Mas você está ciente, não é mesmo? Não importa o que for mudado em suas memórias... Você vai acreditar nisto, mas a realidade será a mesma. Não podemos mudar os fatos afinal.

Eu aquiesci, colocando as mãos nos bolsos. – Eu sei. Mas não me importo. Só preciso não me arrepender por mais um ano. Não vou interferir na vida dela...

– A garota?

– Sim – suspirei. – Eu quero que mude essa memória, doutor.

Ele ergueu as sobrancelhas, levemente admirado.

– Mas é uma lembrança bonita... Uma boa lembrança.

Então deixei escapar um sorriso amargo. Involuntário. – Eu também pensava assim...

O doutor nada disse por um segundo, pensativo. Então balançou a cabeça, mais enérgico, e murmurou:

– Se é a sua escolha... O que gostaria de mudar?

– O beijo... Mude o beijo. Eu a beijei nos lábios, não no nariz. Deveria ter feito isso... E ela ficou feliz e envergonhada... – e neste ponto não pude evitar um riso, que o doutor acompanhou. – E começamos a namorar desde então. Nos casamos a pouco tempo... Antes que eu descobrisse a doença.

– Mas... ela não vai estar com você. É uma alteração muito grande em suas memórias e...

– Sim. Eu compreendo. – cortei-o, taxativo. – Quero acreditar que ela está viajando... Vai ficar fora por um ano. Incomunicável. Eu não lhe contei sobre a doença... Quando voltar, eu vou estar morto. Não quero que ela sofra comigo. Não quero machucá-la... Ela é forte, vai superar. E quando acordar, você me dirá que o teste falhou. Não conseguimos entrar em minhas memórias. E será isto.

Pude ver o assombro nos olhos grandes do doutor. Era realmente uma mudança abissal, e havia muitas falhas... Mas não havia nada no mundo que eu pudesse almejar mais. Deveria ter sido assim... E assim seria para mim.

– Por favor, doutor... Faça isso.

Ele vacilou... Seus lábios tremeram, desviou o olhar. Ainda assim, concordou afinal.

Eu fechei os olhos, ouvindo seus passos se afastarem.

– Boa sorte – disse a voz dele no escuro. Foi o último som. O sol que aquecia minhas faces sumiu. A luz vermelha, por detrás das pálpebras, se apagou... O cheiro da terra e das árvores mitigou.

Mais uma vez o choque... Impressão rascante de estar caindo, sem chão ou espaço...

A Lua... Eu podia vê-la, gorda e amarela, aprisionada no infinito azul... As cortinas ondulavam, e eu estava sentado na poltrona de chintz.

Os orbes do doutor chamejavam no escuro... Seus óculos refletiam um rosto que chorava.


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