Filhas de Vênus escrita por Phill Emmanuel


Capítulo 5
O Reflexo de Miranda


Notas iniciais do capítulo

Quis retratar a vaidade de forma exagerada e cômica rs
Espero que entendam e gostem ;)



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Miranda Boamorte era uma mulher extremamente vaidosa.

Se seu marido fosse somar todos os gastos com cirurgiões plásticos que tivera com Miranda desde o dia em que se casara com ela, a enorme quantia daria para sustentar cinco famílias na África por dez anos.

Miranda fizera sua primeira plástica aos dezoito anos: uma arrebitada no nariz. Desde lá, não parara mais.

Todo dia em que se olhava no espelho, ela enxergava um defeito, por mais minúsculo que fosse. Ia desde os olhos, assimétricos demais, ao dedão do pé, torto para o lado esquerdo; ou uma sobrancelha mais grossa que a outra; ou ainda um sinal de nascença no lugar errado.

Miranda só podia ter visão biônica, diziam seus amigos. Porque, enquanto muitos a achavam perfeita, ela parecia ser a única capaz de encontrar um detalhe mal feito em seu corpo. Uma imperceptível anomalia, como pelos finos no lado interno da coxa, se transformava na mais horrível das torturas. E Miranda voava para o cirurgião mais próximo, histérica e ensandecida, como que possuída pelo mal de Narciso.

Ela, de fato, admitia, não era narcisista. Pelo contrario, achava-se a mulher mais feia de todos os tempos, apesar da altura mediana e das proporções bem distribuídas. Nada para ela se achava no lugar certo, na coloração adequada ou na quantidade correta.

Trocara de cor de cabelos mais vezes do que um adolescente punk. Aumentara os seios, diminuíra as bochechas, enchera os lábios, corrigira a postura, fizera lipoaspiração, colocara implantes nos joelhos para parecer mais alta, colocara silicone no bumbum e removera a laser todos os pelos inconvenientes de seu corpo.

E com o passar do tempo, sem que ela mesma notasse, Miranda acabou se tornando literalmente outra pessoa.

Seus pais evitavam vê-la, pois diziam que aquela não era sua filha. Seus amigos se afastaram e nunca mais foram vistos. Diziam que aquela não era a Miranda que haviam conhecido, e sim um Frankstein moderno, um protótipo de robô perfeito e diabólico, sem nenhum defeito humano. Era a perfeição em carne, osso e silicone.

Seu marido a abandonou logo em seguida, após sua vigésima segunda cirurgia facial. Disse que se sentia desconfortável ao se deitar ao lado dela na cama, pois agora ela era uma estranha, de sorriso congelado, rosto plastificado e modos robóticos. Lembrava mais uma boneca de borracha do que a mulher que amara.

Miranda, porém, não se desesperou. Conseguiu uma boa pensão e passou a sobreviver dela por um bom tempo... Até os ataques de perfeccionismo recomeçarem.

Torrou então toda sua grana em mais centenas de cirurgias, em aulas de yoga, salões de beleza e manicure. Hipotecou a casa, vendeu suas joias e emprestou dinheiro de uma conhecida. O pior de tudo é que parecia incapaz de perceber que estava se levando à falência. Na verdade, pouco se importava se estava rica ou pobre; o importante era estar bela, perfeita, como a deusa Afrodite.

Seu cérebro era cego em relação a tudo, exceto na questão estética. Seus olhos pareciam vendados para a realidade à sua volta, mas afiados como os de uma águia quando ela se sentava diante de um espelho para enumerar mais uma dezena de defeitos que passara despercebidos.

Seus pais ligavam para ela a todo instante, pedindo que tivesse juízo. Seu marido desistiu de tentar convencê-la a enxergar o final que teria caso não aprendesse a administrar sua pensão.

Miranda, porém, não ouvia ninguém. Na verdade, ela sequer dava atenção a alguém, exceto ela mesma. Só tinha olhos para si, ouvidos para os cirurgiões e atenção quando estava analisando a si mesma, em sua procura obsessiva por defeitos.

Passaram a chama-la de louca, Mulher de Plástico, Androide Ambulante e Sorriso Eterno, além de Botox Vivo, Miranda de Silicone, Boneca Inflável e Frankstein.

Miranda não ligava. Sabia que não era narcisista. Apenas capaz de enxergar seus problemas, e ter condições para conserta-los.

Mas o tempo passou. E Miranda perdeu tais condições financeiras.

Perdeu tudo, de fato. A casa, os móveis, as roupas caras e a amizade das clínicas de estética. Só não perdeu o espelho da cabeceira. E era nele que ela se olhava todo dia, sentindo-se a mulher mais feia e terrível da face da terra.

Deixou de comer, de tomar banho e não saia da frente de seu espelho, agora em um quartinho barato, que seus pais se dispuseram a pagar.

Definhava diante de si, e sentia nojo de sua feiura e falta de sorte.

Certo dia, o dono do quarto foi cobrar-lhe o aluguel. E tal foi sua surpresa ao se deparar com uma Miranda toda ensanguentada diante do espelho. Portava uma faca de cozinha e consertava com as próprias mãos os novos e abomináveis defeitos físicos que detectara, removendo-os friamente. Fatiara sua face inteira como se fosse queijo e tão obstinada estava que a dor sequer a atingira ainda. E teria reparado mais erros se o homem não tivesse impedido.

Foi enviada para um asilo de pessoas com transtornos mentais e obrigada a viver na camisa de força, em um quarto escuro e opaco, para que não pudesse ver seu reflexo em canto nenhum. Quando ocasionalmente se via, às vezes na costa de uma colher ou em um objeto de vidro qualquer, enlouquecia e berrava, suplicando para que lhe levassem ao esteticista mais próximo. Os médicos aprenderam a evitar isto, e a afastaram de qualquer coisa capaz de refletir imagens.

Mas não foi o suficiente.

Um dia, enquanto lhe davam banho, Miranda baixou os olhos e viu seu reflexo, pela primeira vez em séculos, na poça de água que se formava debaixo do chuveiro. E percebeu, triste, que não melhorara em nada. Virara um monstro.

Ninguém foi capaz de segura-la.

Miranda sentiu tanto horror e pena de si mesma que ensandeceu. Esmurrou, empurrou e mordeu as enfermeiras que a banhavam, gritando por alguém que removesse aquela coisa tenebrosa que era agora sua face.

E tanto esperneou, chutou e bateu os pés infantilmente que acabou escorregando e caindo de cara no chão com brutalidade.

Sua cabeça se abriu com a queda e o sangue inundou o banheiro. As enfermeiras saíram correndo, desesperadas, em busca de ajuda, mas Miranda sabia que seu fim chegara.

Antes de desfalecer, caída de lado, com o rosto colado, junto ao seu próprio reflexo, enquanto a água do chuveiro entrava pela sua boca e o cheiro de sangue enchia suas narinas, a última coisa que percebeu foi que estava morrendo ao lado daquilo que mais odiara em toda a sua vida: ela mesma. E a Miranda refletida na água, finalmente, a perdoou, olhando-a de perto e beijando-a, dizendo adeus.

Miranda virou uma lenda, mas também o símbolo da obsessão humana pela perfeição. Diz-se que, quando ela morreu, uma curiosa espécie nova de flor brotou nos jardins do hospício, uma espécie rara que, a cada doze horas, renovava-se e se transformava numa flor totalmente diferente da anterior.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam da Miranda??