...E Virá Uma Grande Escuridão escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 4
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Os acontecimentos narrados neste capítulo são simultâneos àqueles do capítulo anterior (o 1º); enquanto a Comandante Saril está na Estação Terminus, no Sistema Hogla IX, a vários anos-luz (ou parsecs) de distância...



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"Na Natureza não existem monstros, mas somente na mente dos homens."

Arthur C. Clarke - Relatório Sobre o Planeta Três

 

As naves do Serviço Especial de Entretenimento, ou "disconaves", como eram carinhosamente chamadas, constituíam-se em avis rara no Braço Karidian, no Octante Beta Meridional, 306,7 parsecs distante do perímetro do Império Klingon e mais de 613,5 parsecs das fronteiras da Federação Estelar. No momento, metade das guarnições das cinquenta bases que a Federação mantinha nos Sistemas Hogla divertia-se a valer nas gravipistas do cruzador Aurora, uma das dez naves esféricas de cem metros de diâmetro adaptadas pelo S.E.E. - quase todos humanos e humanoides, pois os inumanos e os heteromorfos tinham hábitos e costumes radicalmente diversos, muitas vezes incompreensíveis ou até horripilantes. (A ideia de diversão de um z'horx provavelmente assustaria, escandalizaria e enojaria um cidadão humano da União Solar.)

Originalmente, as disconaves eram cruzadores rápidos da categoria conhecida como "X" ou "extra", modelos especiais para funções nas quais o uso de um cruzador de série não traria o mesmo retorno, dos quais todos os conveses intermediários haviam sido retirados, restando apenas a ponte de comando e a seção de engenharia com os conduítes saindo dos blocos propulsores (a câmara de reação de força-chroma e o núcleo de subespaço) para as naceles do anel equatorial que abrigavam as bobinas de campo de transdobra; o espaço vazio restante havia sido preenchido com gravipistas reguladas para 0,2 gravos. A área circundante estava em zero-g, permitindo aos dançarinos as mais incríveis acrobacias ao som de uma alucinante orquestra robotizada e sob um feérico conjunto de spots, refletores e cintilômetros. No mais, uma nave como a Aurora dispunha de uma tripulação de cinco pessoas - MecOrgans inclusos - , com amplo emprego de droides ou robôs especializados. A direção estava a cargo da IA da nave, um supercomputador ciente de si próprio que controlava tudo a bordo. Caso necessário, alcançava piso-lux em dez centiciclos e dobra 11,1 em doze metrociclos.

Em meio às dez mil pessoas que lotavam os hemisférios superior e inferior da nave, contava-se um bom número de tripulantes da Al-Burak, que estavam de licença. Todavia, uma dupla feminina um tanto incomum parecia francamente não estar se divertindo. Ambas as moças eram muito bonitas, mas isso nada significava nesta era de engenharia genética e cirurgia cosmética ao alcance de todos, sendo beleza e perfeição física a regra geral e não a exceção. (Pais projetavam os caracteres genéticos de seus filhos: cor da pele, dos olhos, dos cabelos, feições, altura e constituição física; e qualquer deformidade por doença ou por acidente podia ser corrigida numa questão de microciclos.)

As moças, vestidas com justíssimos uniformes-computadores, comunicavam-se em "circuito fechado" por meio de transmissão de som dirigido. Essa forma de transmissão de áudio se dava em uma faixa de onda extremamente estreita, dirigida diretamente à pessoa alvo. Elas apenas pensavam em algum diálogo e a interface neural entre usuário e computador interpretava-o em forma de som, enviando-o diretamente ao ouvido do interlocutor. A própria pele humana servia como condutor de energia elétrica.

— Tem certeza, conselheira, de que eu fiz bem em vir? - perguntou a Suboficial de Primeira Classe Laurette Hebe McNab em tom nervoso. - Não sei, não...

Fisicamente, parecia uma bela jovem humana de uns vinte e três anos. Tinha corpo esguio, sensual, e rosto de traços delicados, emoldurado por cabelos loiro-claros que ondulavam como um véu cintilante sob a luz dos refletores. Sua pele era tingida de dourado, de acordo com a última moda em Aldebaran II, e o branco dos olhos, de um tom prateado que combinava com as íris verde-azuladas.

— Ordenança McNab - disse a Tenente-Comandante Sabrath, sua voz gentil mas firme como se falasse a uma criança que precisasse encorajar - você é uma boa tripulante, mas sua taxa de sociabilidade é muito baixa. Como conselheira pessoal da comandante, porta-voz e intermediária entre ela e o efetivo da nave, é meu dever preocupar-me com o bem-estar mental de cada membro da tripulação e com o entrosamento de todos. Você precisa "se enturmar mais", como os solarianos dizem, e este local é perfeito para começar. Muitos tripulantes da Al-Burak e de outras astronaves da Frota vêm aqui para se divertir e confraternizar; é a escolha lógica para alguém como você.

Seus grandes olhos amendoados, azul-safira, formavam um belo contraste com a pele tingida de uma tonalidade de prata nacarada e com os cabelos negro-azulados que derramavam-se em ondas sobre os ombros graciosos, chegando até a cintura. Uma fina faixa platinada circundava-lhe a cabeça, com uma espécie de joia sobre a testa. O medalhão que carregava em torno do pescoço era um translator pré-programado para traduzir 2.976 línguas e dialetos, com tradução simultânea e bidirecional. (Seu maior orgulho, porém, eram as mãos calejadas, porquanto todos os habitantes de Bêlit gostavam de exercitar-se exaustivamente na arte da jardinagem, com as mãos nuas, a despeito da superautomatização vigente no planeta.)

Laurette suspirou. - Gente como eu costuma ser solitária. É da nossa natureza, entende? Eu e os de minha raça somos predadores. Hematófagos. Homo vampiricus, nome científico antigo, Homo sapiens sanguinis, nome científico atual. Predadores não têm amigos, têm necessidades. Vampiros allukans não gostam de companhia mais do que chéates... Cê sabe, aqueles enormes e horrorosos gatos tentaculares nativos de Aldebaran II, que caçam sozinhos e fazem coisas desagradáveis com suas vítimas pra extrair-lhes a força vital junto com o potássio dos corpos.

— Mas você não nasceu vampira...

— Ah, não, claro que não - replicou Laurette alegremente. - Nasci humana, na Z.R.A. de Edmonton, Região Noramericana, Território Setentrional. Da Velha Terra.

— Foi "abraçada" por um allukan sangue-puro, de linhagem real, correto? Só eles podem transformar um humano em um vampiro "completo", pela transmissão infecciosa do vHERV, o retrovírus vampírico, à medida que o sangue allukan se mistura ao do humano.

— Anahyta Vosky era uma puro-sangue bem legítima, filha de pai e mãe vampiros, e da realeza vampírica! Fazia parte de um programa experimental com a meta de promover a convivência pacífica entre ambas as raças. Ela era muito popular com os rapazes e as moças, no nosso tempo de estudante, sabe: Hipno-Universidade de Quebec, torneios de flutuadores gravitacionais, festivais de juventude. E tão linda! Alta, mais alta do que eu, de porte altivo, de rainha. Belos cabelos prateados até a cintura e lindos olhos vermelhos de pupilas em fendas. Olhar distante. Uma semideusa praticamente inatingível, ao menos pra grande maioria da escola. - Hesitou um instante e acrescentou: - Apesar disso, eu e ela nos tornamos melhores amigas. E amantes depois. - Deu uma risadinha. - Tínhamos a mesma idade, eu e ela. Fomos juntas pra Aldebaran, de armas e bagagens... Cinco stanrevs atrás... Cê sabe, lá tem uma pequena comunidade vampírica, pequena mas importante. Então...

Deixou a frase em meio e sorriu tristemente. Os longos e pontiagudos dentes caninos característicos das raças vampíricas permaneciam retraídos em seus alvéolos, escondidos, como as garras de um felino, pela contração de um tecido flexível na base. Isto não resultava de uma evolução natural, mas de enegenharia genética teratológica, seletiva; os primeiros vampiros, ou "Ancestrais Verdadeiros", foram criados num passado ultrarremoto como meta-humanos híbridos em experiências genéticas creditadas ora aos antigos atlantes, ora aos anunnakis, os astrodeuses de Nibiru que, usando de manipulação cosmogenética, criaram o Homo sapiens e todas as raças quiméricas da Terra pré-histórica. (Por seu turno, o Sanguinomicon, escrito em linguagem arcaica e quase indecifrável, narrava a gênese dos Ancestrais Verdadeiros pela Matrona Negra e seu consorte, o Senhor do Grande Abismo, por La Magra, o Deus do Sangue, e pela Virgem Escriba da Lua Escarlate - respectivamente identificados com as deidades Nyx, Erebus, Kali e Aset.)

Sabrath percebeu o desconforto de Laurette. - Se você está tendo dificuldades para falar de como se tornou uma allukan...

— Não, tudo bem - atalhou a hematófaga. - Eu falarei. Fui atacada nas Montanhas Mandrell por um chéate que queria quebrar todos os ossos do meu corpo, pra sugar o potássio das minhas células vivas, e que me deixou à beira da morte. Anahyta o matou com as próprias mãos nuas, mas era tarde demais pra me salvar a vida pelos meios convencionais. E então ela tomou uma decisão difícil, a decisão mais difícil da sua vida. Por amor.

— Ela realizou a "partilha de sangue" com você.

— Isso mesmo. O Compartilhamento do Sangue. O ritual mais sagrado dos Filhos de Aset. Desobedeceu à lei vampírica, me transformou em um deles e me salvou. E então, tudo mudou... Eu mudei. Perdi a cabeça. Acusei-a de "roubar" minha humanidade, de me transformar num monstro bebedor de sangue por mero capricho. Foi uma atitude estúpida e desnecessária da minha parte. Anahyta ouviu de rosto impassível, então, ela falou: "Eu não imaginava que você me odiasse tanto."

— Vinte séculos de preconceitos contra uma raça não perdem o sentido tão depressa - contrapôs a bêlita.

Ambas, tanto Sabrath quanto Laurette, tinham consciência de ser terminantemente proibido transformar humanos em vampiros desde o Conclave de Hong Kong, em 108 D.V. (A percentagem de allukans "convertidos" não ultrapassava 1%; a maioria deles já nascia vampiro.)

— Anahyta foi convocada pelo Conselho dos Milenares ao asteroide artificial Arpad, novo lar da nação vampira, para responder por seu ato - prosseguiu Laurette. - Mas não sem antes me ensinar as leis e as tradições dos allukans, o Sanguinomicon, que é a "Bíblia dos vampiros". Nunca mais tornei a ver Anahyta Vosky. Ela se casou com o irmão mais velho, como manda a tradição, pra preservar a pureza genética da linhagem dos Vosky.

Calou-se. Deveria ela confiar seus segredos mais profundos, mais íntimos a essa mulher pleiadiana? O horror indizível da Mudança - causada pela infecção do vHERV, que reescreve o DNA humano e se alastra pela corrente sanguínea em 72 metrociclos - , o júbilo de neófita em face das novas habilidades super-humanas, da beleza física imperecível e da perspectiva de viver milhares de stanrevs, a terrível sede de sangue, a briga pelo proverbial lugar ao sol na sociedade vampírica, estratificada em castas e em famílias, a decepção e o sofrimento ao descobrir-se uma pária, "sem-laço", para a qual não havia lugar no rígido sistema de clãs dos sangues-puros allukans e suas Doze Casas e suas estritas leis raciais que proibiam casamentos mestiços?

Pleiadianos são telepatas avançados. Que nem betazoides. Ela manteve sua mente bloqueada o máximo possível.

— Essa é a minha história - disse por fim. - Agora...

— Agora você pertence à Frota Estelar da Federação, ordenança McNab - Sabrath completou. - Temos a função de representar o melhor das raças federadas em nossa missão de explorar o Universo e desvendar seus segredos, e através da conquista de maiores conhecimentos e experiências, preservar os valores cosmoéticos da Humanidade Cósmica e engrandecê-los.

Então ela sorriu polidamente para a jovem fêmea "renascida" de Homo sapiens sanguinis e disse: - Seu registro pessoal está reservado estritamente para a Comandante Saril, você sabe. Não precisa contar pormenores sobre o que sente e pensa, se não quiser fazê-lo. Apenas gostaria de ser sua amiga - sua nova amiga - , se você assim o permitir. Acredite-me, você precisa de uma boa amizade.

— Chegou a essa conclusão graças à sua mente telepática?

— Não é necessário usar minha telepatia. Até mesmo porque você, como allukan, tem o poder de bloquear seus pensamentos. Esqueceu que sou xenopsicóloga?

Laurette observou-a por um momento, enquanto analisava suas próprias emoções. Recordou-se do sangue-puro allukan do clã Rakma-Rakshasa com quem se envolvera, em Arpad, dois stanrevs antes, o filho caçula mimado de um dos lordes do Conselho de Anciões, um indivíduo violento e possessivo, que a tratava como seu bibelô e objeto sexual. Tinha consciência de que, por não ser uma vampira nata, mas uma ex-humana transformada - sem permissão - , a maioria dos allukans a olhava de cima para baixo. Escória! Um insulto ao inato Dom das Trevas, a essência de Aset. Por outro lado, não eram poucos os humanos que olhavam-na atravessado, com desconfiança, ou com medo, ou com raiva, como se ela fosse um drone borg. Sou o bicho-papão das histórias de terror que os pais contam para os filhos. Igualzinha àqueles "Senhores da Noite" que quase acabaram com o grupo avançado em Yphsis... Nada a ver! Os "purificados" yphsianos são uma espécie distinta: Inhomo nosferatu. Eles são desmortos, não podem ter filhos... Estão estéreis há milênios! Não precisam de oxigênio porque não respiram. Adormecem quando o sol se levanta no horizonte... Sua pele é reflexiva, gelada e dura feito mármore! Eles não têm sequer caninos pontudos, mas seus dentes são venenosos, afiados como lâminas, e sua mordida rasga a garganta da vítima, fazendo o sangue jorrar aos borbotões!

Finalmente, disse: - Acho que nunca pensei em me relacionar com alguém que não fosse allukan... Sabe como é, a maioria das pessoas prefere a companhia de gente de sua própria espécie. Mas eu sou a única allukan na Frota, né? Nossa história tem sido de perseguição e solidão há eras. Sabia, por exemplo, que foram os allukans que iniciaram a Renascença na Europa , nos séculos V e IV A.V., ao partilharem seus conhecimentos secretos com mortais como Da Vinci, Dante Alighieri, Alberto Magno, Copérnico, Michelangelo, Thomas More e Erasmo de Rotterdam? Ou a invenção do sangue sintético e das terapias de genes, por iniciativa allukan? Pouca gente sabe disso. Pra muitos, não passamos de mutantes-monstros sugadores de sangue... E ainda por cima, temos as Leis Vampíricas, tão racistas e medievais... Como se fôssemos uma "raça escolhida" que não deve ser diluída através de cruzamentos com os "vidas-curtas", como eles dizem. "Vampiros não devem se misturar com não-vampiros". "Um vampiro só tem permissão para amar outro vampiro".

A loquacidade da jovem hematófaga quase chegava a divertir a conselheira.

— Você obedece à Lei Vampírica?

— B-b-b-bom... Eu...

— Anahyta Vosky, nascida vampira de uma longa linhagem, da Alta Realeza, seguiu a lei quando amou a humana Laurette McNab? Quando a "abraçou"?

— Lógico que não. Mas pagou o preço por desobedecer...

— Tenho novidades para você, McNab - replicou Sabrath. - Hoje em dia, em plena Era da Astronáutica, ninguém mais segue essas leis, com exceção de um punhadinho de sangues-puros que praticam a endogamia extremada. Os jovens vampiros, tanto nobres quanto comuns, são livres para fazer amizade ou amarem quem quiserem. Seja você mesma, e todos a aceitarão. Lembre-se, o princípio que rege o Universo é o Amor.

— OK OK - disse Laurette, sorrindo resignada. - Vamos ser amigas, então.

A conversa se realizava no bar panorâmico da Aurora, trinta metros acima do polo sul da nave. Naquele horário estava cheio de fregueses, exibindo ao observador todos os estilos concebíveis de seres humanos... e alguns não muito humanos, obras-primas de algum bioescultor excêntrico e genial ou fruto de manipulação genética: com braços e pernas suplementares, com caudas preênseis, com orelhas de gato, com guelras isotrópicas e até asas cirurgicamente implantadas. Vários oficiais e tripulantes da F.E.U. misturavam-se livremente a civis, indo e vindo em frente ao balcão de metal cromado, e quase todos usavam cibercapacetes intercomunicadores de ondas cerebrais. Acima deles, outras gravipistas elipsoidais flutuavam que nem imensas pétalas iridescentes de afgon kaseriana em meio à fumaça de anidrido carbônico multicolorida pelos spots. Hologramas flutuantes em vários formatos e cores, parecendo monstros voadores mitológicos, faziam loopings assustadores no ar, às vezes passando uns por dentro de outros, e noutras pareciam devorar-se mutuamente, o atacante lançando-se sobre sua vítima e instantaneamente eliminando-a de vista.

— Engraçado, sempre pensei que pleiadianos não frequentavam bares em disconaves - comentou Laurette, com um risinho.

— Não temos realmente esse hábito - explicou Sabrath altivamente. - Primeiro, por causa das dificuldades psicológicas, o efeito terrível que o barulho e as multidões provocam em nós. E acima de tudo porque nossas vibrações básicas são de uma ultrassensibilidade e, simultaneamente, reagimos com igual sensibilidade a vibrações de outrincons, alienígenas, ao penetrarem no nosso campo de consciência. Quer dizer que ao sermos expostos às bioenergias dos humanos solarianos, ainda de natureza bastante densa e grosseira, em parte descompensada, e que são largamente contagiosas, somos tomados por uma incontrolável sensação de angústia e de mal-estar geral; ficamos prejudicados seriamente em nossas reações, o que se reflete tanto na diminuição de nossa rapidez habitual quanto na prática de atos ilógicos e descomedidos. Como as emissões dos seres humanos de origem terrano-solariana têm um alcance máximo de noventa metros, nossos encontros com solarianos e outros humanos são rigidamente limitados. Temos um equilíbrio vibracional que nos custou milênios de evolução e muito esforço.

— Hmmm, você não tem medo de se aproximar dos solarianos, conselheira.

— Porque este é o meu trabalho, escolhido por mim. Como comandante e conselheira psíquica da Frota, sou obrigada a lidar diariamente com inteligências completamente estranhas, outrincons, em diferentes estágios de evolução. Tenho 165 stanrevs, ou, se preferir, 124 anos terranos. E ainda tenho vários séculos de vida pela frente. Meu povo almeja viver uma vida materialmente próspera e avançada, de pelo menos 1.500 stanrevs, obedecendo à Lei Cósmica, porém existem exceções. Aqueles de nós que se arriscam a contatar outras raças podem contribuir criativamente para enriquecer a civilização pleiadiana. A mais, eu não estou absolutamente desprotegida. - Sabrath apontou para o diadema em sua cabeça. - Vê esta faixa-geizkah?

Laurette reparou que a única diferença anatômica que distinguiria a pleiadiana de uma moça terrana eram as orelhas coladas ao crânio, com os lóbulos retos dirigidos para frente.

— Não é um tipo de enfeite tradicional? Ou da moda, em Bêlit?

Sabrath sacudiu a cabeça para os lados, fazendo seus cabelos escuros ondularem como um manto negro. (Este gesto não significava nada em seu planeta natal - um bêlita, quando queria expressar negação, balançava a cabeça para cima e para baixo - , porém Sabrath absorvera o costume dos solarianos por conviver e trabalhar com eles.)

— Esse aparelho foi criado pelos cientistas de meu povo para nos proteger contra as irradiações deletérias de raças menos evoluídas. Os bêlitas usam-no sempre que precisam contatar planetas subdesenvolvidos com padrões vibratórios basicamente diferentes e de natureza negativa.

Laurette ergueu levemente os ombros, sem dar maior importância ao assunto (esquecendo-se de que, no planeta Bêlit, tal gesto constituía um sinal de concordância!).

— Humanos e humanoides também não podem se aproximar dos medusinos, por exemplo, sem proteção especial. Senão, enlouquecem e morrem só de olhar pra um deles. Quando era criança pequena, lá em Edmonton, eu costumava ter pesadelos horríveis com aquelas coisas... — Ela estremecia só de pensar naqueles heteromorfos extremófilos nativos de 354 BZ Piscium com uma extensão metabólica no subespaço (ou hiperespaço?), o que tornava o seu aspecto tridimensional visível um pesadelo psicodélico, uma coisa iridescente de formas fluídicas em constante mutação e cores desagradáveis e rodopiantes, sem-pé-nem-cabeça - um quadro insólito, pavoroso demais para ser apreendido por qualquer ser senciente estritamente tridimensional, a ponto de aniquilar-lhe a sanidade mental.

Sabrath, porém, continuou. - Naturalmente, a grande maioria dos solarianos que servem na Frota Estelar tem suas bioenergias de tal modo equilibradas que não chegam a prejudicar os bêlitas. Por outro lado, há novas raças, como klingons e ferengis, que emanam vibrações de natureza ainda mais pesada e primitiva. Por estas razões de segurança, jamais poderemos prescindir do uso das faixas-geizkah. Aliás, nossa tecnologia avançou bastante. Quando meus tetravós desembarcaram no planeta Terra pela primeira vez, em meados do século I D.V., ainda empregavam E.P.I.s que, de tão volumosos, precisavam ser carregados nas costas, à maneira de mochilas para viagem.

— Parece tão preconceituoso...

— Acredite-me, não somos motivados por preconceito contra esta ou aquela raça. Simplesmente precisamos proteger nossa incolumidade psíquica. Não somos como aqueles rossianos cuja nosofobia é proverbial, que vivem em biosferas artificiais, superdependentes de tecnologia virtual, sob a superfície de luas geladas orbitando planetas jovianos que gravitam em torno de anãs vermelhas nas vizinhanças de Sol. Afinal, nossos próprios antepassados rewgarkianos, que em sua fuga do Invasor Borgwenesi há 50 mil stanrevs eventualmente atingiram o grupo estelar das Plêiades, onde terraformaram os quatro planetas de Tilottama, e Dana, um planeta irmão nosso do sistema Taygeta, posteriormente colonizaram Terra - criando o Império de Atlântida - e fundaram novas civilizações em mais alguns outros mundos; portanto, os terrano-solarianos são nossos descendentes diretos, ou nossos primos, assim como outros povos humanoides da Via Láctea.

— Com todo respeito, conselheira - replicou suavemente McNab - mas aprendi na escola virtual que quem iniciou a colonização humanoide tanto de Terra quanto de Sartari, Bajor e de uma infinidade de outros mundos foram os anunnakis de Nibiru, que há 600 mil stanrevs saíram através da Galáxia com seu planeta artificial errante, semeando "cópias" de si mesmos em cada planeta habitável pelo qual passaram. Foram eles que há 400 mil stanrevs desceram na Terra primitiva e realizaram bioexperiências genéticas pra adaptar o Homo erectus de então ao "padrão anunnaki", de geração em geração, até culminar no Homo sapiens. E isso foi há uns 100 ou 200 mil stanrevs. Porque os "deuses", sendo astronautas e cientistas antes de tudo, demandavam a criação de escravos ideais pra realizarem o trabalho pesado da colônia. Eles podem ter engendrado geneticamente as raças de vampiros e chiropterans pra servirem de capitães-do-mato e feitores de escravos!

Quando Sabrath ia responder, quatro figuras robustas aproximaram-se. Eram indubitavelmente humaniformes, bípedes de visão binocular e membros curtos, se bem que ninguém pudesse confundi-los com seres humanos nem mesmo na escuridão abissal de uma noite summanusina. Tinham altura em torno de 1,50m, vestiam mantos roxos que cobriam seus corpos atarracados, com signos dourados de uma língua desconhecida bordados na altura do peito, mais largo do que o de um homem. Conversando em voz alta, numa língua gutural e odiosa impossível de ser pronunciada por gargantas humanoides e que o tradutor universal parecia incapaz de traduzir, caminhavam empertigados, arrastando os pés peludos providos de garras, com os pulsos revestidos de pelagem negra e manoplas com três dedos e garras afiadas como lâminas de monofilamento visíveis através de certas dobras dos mantos arroxeados. Não havia expressão em suas feições escuras, na maior parte cobertas por capuzes. Mas os olhos vermelho-amarelados emitiam um brilho estranho.

— Parecem monges, ou sacerdotes de algum culto ou seita alienígena - conjeturou Laurette em tom pensativo.

— Não conheço sua espécie - disse a conselheira, que observava os arredores com os olhos semicerrados, como que em transe; na realidade procurava entrar em contato direto com os sedops de mantos e capuzes por via telepática.

Não conseguiu. Aparentemente, os quatro alienígenas que caminhavam em sua direção possuíam um hipnobloco.

Laurette sacudiu a cabeça. Também fracassara em sondar telepaticamente os estranhos visitantes.

Três dos alienígenas encapuzados lançaram olhares curiosos para as duas mulheres, mas não demonstraram maior interesse. Parecia que procuravam alguma coisa ou alguém, pois enquanto abriam caminho pela multidão olhavam atentamente para todos os lados. Um deles, um indivíduo um pouco maior que os demais - com cerca de 1,55m - e também mais troncudo, aproximou-se lançou-lhes um olhar perscrutador e baixou o capuz, expondo a cabeça enorme e grotesca, com um rosto tosco e porcino, de cor cinza-pardacento, pele grossa recoberta de borbulhas e pequeníssimas excrescências córneas, orelhas longas verticais e pontiagudas, grandes narinas achatadas e olhos faiscantes vermelho-amarelados, incrivelmente pequenos. Era horrenda. Uma caricatura abjeta do Homem, uma perversão do desenvolvimento evolucionário, saída dos mais tenebrosos pesadelos. Tinha o corpo coberto por pelos desgrenhados castanho-escuros, desprendendo um odor tão detestável que Laurette McNab torceu o nariz e recuou, e somente graças aos microfiltros odoríferos nas narinas é que Sabrath conseguiu suportá-lo. Na nuca do ser brilhava o plug de um tipo de porta de dados. A boca larga demais, cujos lábios pareciam ridículos de tão estreitos, exibia duas arcadas repletas de dentes brancos afiados em algo que talvez se propusesse a imitar um sorriso sarcástico. De sua garganta subiu um som áspero e seco, um som inumano, algo como um grunhido ou um rosnado.

A vampira fez menção de defender-se; em uma reação instintiva, seus lábios sedosos contraíram-se num esgar, desnudando duas longas presas pontiagudas, dois pequeníssimos punhais brancos, que brotavam nos cantos da boca perfeita. Seus olhos acenderam-se que nem faíscas de fogo laranja, numa fúria animal.

— Não faça isso, McNab - Sabrath disse-lhe, impassível. - Fique fria.

O inumano de aspecto hediondo circundou as moças com um olhar curioso, como que analisando especulativamente a magreza de ambas, e cheirou o ar. Depois afastou-se, prosseguindo no seu caminho. Laurette McNab sentiu-se aliviada.

— Meu Deus! E eu que achava os Namkak de Mátar fedorentos e feios - murmurou, quando o quarteto foi embora.

— Não se deve julgar um ser inteligente por sua aparência física - Sabrath advertiu suavemente. - Lembre-se, o espírito suplanta a forma. - De repente exclamou, em voz baixa: - Tzizimine!

— Como é que é?

— Nossos peludos transeuntes embuçados chamam-se, ou são chamados, de tzitzimine - disse a bêlita em tom pensativo. - Por um momento, antes de partir, um deles - devia ser o líder - abriu-me seu espírito. Era um telepata muito capaz. Não são lacteanos. Se entendi corretamente, vieram da galáxia que os solarianos chamam de Maffei 1, que dista três ou quatro megaparsecs da Via Láctea e não pertence ao Grupo Local. Parece inacreditável, não é mesmo? Eles são cientistas, estudiosos e absolutamente não-violentos. - E acrescentou: - Também são hermafroditas e ovíparos.

— Nesse caso, se eles vêm mesmo de outra galáxia, de uma galáxia tão distante, o que querem aqui? Justamente numa disconave cheia de humanos, no meio do Quadrante Beta? Será que pretendem nos estudar, como os exoantropólogos da Federação estudam os Kalars dos Vales Frios de Rigel A VII?

— Não sei, de fato não sei... Mas é certo que não tinham intenções hostis para com as raças humanoides. Dificilmente existirão criaturas mais ternas e pacíficas que os tzitzimine. Vi as cores de suas auras; são douradas em virtude das vidas puras que vivem. Você não viu?

— Naturalmente que sim. Leitura de auras é um dos dons vampíricos mais básicos, do primeiro nível. Mas o hipnobloco deles...

— Irrelevante, suboficial McNab. Muitas raças de telepatas prezam os segredos acima de tudo. Apenas por pudor mental. De qualquer modo, eles já se foram.

— Esperemos que encontrem o que procuram. Sabe o que eu andei pensando? Quero dizer, a melhor coisa de se viver em uma civilização multiestelar pacífica como a nossa? É que ninguém olha duas vezes pra um alienígena, por mais diferente ou esdrúxulo que seja o seu aspecto exterior. Por exemplo, essa gente à nossa volta. Pra eles, a visão de sedops tão... tão diferentes, como os tais tzitzimine, não tem nada de extraordinário, não desperta maior atenção do que, sei lá, um gato siamês preto numa exposição de gatos. Se tivessem aparecido na Terra de quinhentos stanrevs atrás, seriam caçados e mortos ou encarcerados. A humanidade evoluiu um bocado, hein? Hein, conselheira?

— Indubitavelmente - concordou Sabrath. - Aliás, na Terra de quinhentos stanrevs atrás, provavelmente nós duas também seríamos caçadas e mortas, ou encarceradas, suboficial McNab.

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Os quatro tzitzimine sentavam-se na posição de lótus, com as pernas cruzadas, sobre esteiras em torno de um enorme cristal antinatural de neocosmogônio, que rebrilhava com uma luz fria, pulsante, matizada de azul-violáceo, no espaço livre da ponte de comando da grande nave oval. Eles meditavam, de olhos fechados, balançando-se suavemente ao ritmo de uma cantilena melódica, estranha e monótona - preparando-se espiritualmente para acessar os planos vibratórios superiores, puramente mentais, onde a forma não existe e apenas vibram focos mentais incorpóreos, massas de "energia inteligente" no Supremo Oceano Cósmico, indefiníveis nos termos conhecidos em mundos inferiores de dimensões finitas.

E em algum ponto qualquer uma espécie de gongo eletrônico, tocando intermitentemente, enchia o recinto com batidas surdas e cavas, curtas e regulares.

Lentamente, sob a proteção de um campo defletor paratrônico que lhe conferia invisibilidade total no espectro eletromagnético - mesmo quanto ao resíduo de emissão infravermelha - , a Par'ya seguia a relativamente pequena nave esférica repleta de humanoides. Entre as duas astronaves abria-se um milhão de quilômetros de espaço vazio interestelar - nada além de escassas moléculas de gás ionizado. Sua Divina Graça Ankaaran Chlong Vasnyadharmashti Rabbanu Yogarim, Mestre-guia da nave, e seus coirmãos da Ordem yllista de Bhulaay, devotos da Abençoada Jhizala das Garras, tinham voltado a bordo depois de uma demorada incursão naquela espaçonave globular, saltando pela quinta dimensão em tempo zero. Para tanto, haviam empregado microunidades de campo-tesseract acopladas nas respectivas portas de dados, com a energia para o funcionamento dos aparelhos fluindo diretamente do gerador de tesseract a bordo da grande nave por um sistema de energia pontual. Dentro dos campos hiperenergéticos esféricos, pessoais, reinavam condições idênticas às de um espaço de ordem superior, pentadimensional. Na realidade o que faziam era "dobrar" o espaço-tempo em pequena escala; assim como uma forma bidimensional não pode mover-se espontaneamente "para cima" ou "para baixo", dimensões que "não existem" em sua realidade, somente por intermédio de um objeto situado numa dimensão superior os quatro monges yllistas conseguiam atravessar objetos sólidos, portas e paredes, e até campos de força. Era como se as moléculas dos seus corpos vibrassem noutro plano. Aparentemente, essa tecnologia ainda era desconhecida nesta realidade. Ankaaran agradeceu ao Poder Cósmico por isso. Os feixes de teletransporte convencionais, incapazes de transpor um escudo energético de integridade estrutural de alto nível, seriam facilmente rastreados pelos instrumentos da outra nave.

Na nave dos humanos, alguns dos frequentadores lançaram olhares curiosos em sua direção - e dois humanoides-fêmeas até tentaram contatá-los por telepatia; felizmente os religiosos portavam hipnoblocos e detectores de ecos. Obviamente, aqueles seres nunca tinham se deparado com um tzitzimine (e que, ainda por cima, fosse yllista!). Não neste Universo. Deveriam dar graças ao Divino, pois, no distante passado - na realidade alternativa de onde vieram - , os tzitzimine eram o terror dos Sete Impérios, da galáxia de Maffei 1, e ainda hoje em dia - em seu Universo - provocavam as mais estranhas reações onde quer que aparecessem.

Monstros do crepúsculo. Sua figura, para um bom número de raças de Xur, ligava-se à visão terrífica do fim do mundo. De todos os mundos existentes.

No entanto, a maioria dos humanoides que lotavam a nave esférica não lhes dava a menor atenção. Ankaaran - cujo verdadeiro nome tzitzimine era impronunciável e intraduzível para as línguas de outras raças - os conhecia bem, os humanoides! Criaturas frágeis e toscamente formadas, pelos padrões estéticos tzitzimine, de peles nuas, macias, parecendo larvas de tamanho gigante! Apenas meio-corpo, macho ou fêmea! O guinchar de suas vozes era estarrecedor, assim como o mau cheiro que emanava de seus corpos longilíneos era intolerável, para sentidos tão refinados e aguçados. E as luzes fortes de que necessitavam para enxergar! Um dos acólitos, acostumado a só raramente encontrar alienígenas, ficou escandalizado. Como é que o Todo-Bondade podia criar tais seres, malformados, grotescos e feios? O Multiverso estava repleto de outrincons dos mais exóticos - dos hurghunds ou "homens de barro" acéfalos de Karanlaqi aos verxigs quartzosos de Hammerstein - , admoestou-o Ankaaran, e um seguidor da doutrina do Yll já deverá ter compreendido que a natureza da consciência é que assinala o parentesco entre as criaturas, que as diferenças de aspecto, forma, hábitos são absolutamente secundárias, irrelevantes mesmo, perante o Divino. A mais...

A investigação levada a cabo na "nave de diversão" dos humanoides não revelara nada de novo. (Afora o barulho infernal que os humanoides insistiam em chamar de música; ó, Abençoada Jhizala, seu sentido de ecolocalização, delicadíssimo, fora tão cruelmente maltratado!) Os ultrassensíveis detectores de frequência, capazes de distinguir perfeitamente entre a frequência das vibrações de um cérebro humano ou humanoide normal e a de um cérebro mutoide Sckhreem, não acusaram a presença de um simuloide daquela espécie medonha na nave dos humanos. Tampouco seu faro supersensível de tzitzimine, mais aguçado que o de um cão de caça avaloniano. Quer dizer que a coisa cuja aparência externa imitava Qualeh-i-Omor, o tripulante xylaziano, não se achava a bordo. Ninguém tinha sido infectado. Ankaaran deu graças ao Divino Cósmico que é a "Fonte das almas", por isso. Não haveria necessidade de alarmar a diminuta tripulação da espaçonave. Ainda não.

Entretanto, o Ancião Mestre-Guia da Par'ya não era tão otimista a ponto de pensar que seus problemas terminaram. Ainda havia um Sckhreem - uma comunidade celular parasítica, de bilhões de células submicroscópicas, formando parte de uma imensa mente grupal com terríveis poderes - , prestes a contaminar qualquer ser vivo que encontrar e assumir-lhe a forma exterior, solto em algum lugar do espaço no Octante Beta Meridional (ou sua contraparte na Via Láctea deste Universo paralelo), num raio de 200 anos-luz, ou 61,35 parsecs. Urgia fazer alguma coisa para encontrá-lo e detê-lo a qualquer custo, antes que "ele" ou "aquilo" iniciasse mais uma vez o processo de contaminação de toda forma de vida inteligente. Caso contrário, nem todas as orações deste e de qualquer outro universo bastariam para salvar as pobres almas de um destino infinitamente pior do que a morte... do que um milhão de mortes!

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Dois milhões de anos são um longo tempo.

Por dois milhões de revoluções do planeta Terra em torno do Sol - e enquanto as grandes marés da História Galáctica subiam e desciam por toda a vasta espiral da Via Láctea - , lá fora no reino das galáxias externas a evolução das biomáquinas ultrainteligentes trabalhou, lenta e penosamente, para ascender a novos patamares. Os velhos construtores de portais Kang, ao serem criados, possuíam uma flexibilidade imensamente maior do que todos os seus predecessores robóticos e assim, no curso dos milênios, lograram evoluir para além dos limites do metal e plástico, da frialdade de cristal; tendo aprendido a preservar os próprios pensenes - pensamentos, sentimentos e energia - e o conhecimento sobre um bilhão de mundos em extensões de espaço-tempo delimitadas por coordenadas vetoriais absolutas, onde a energia flui através de focos pontuais intercambiáveis e expansíveis. Assim, os Kang acabaram por se "descorporificar" ao cabo de milhares de séculos, constituindo doravante entidades hexadimensionais, de natureza fluídica, insubstancial, não tendo, usualmente, qualquer representação tridimensional visível - porquanto não pertencem sequer a este Universo ou dimensão. Impossível descrevê-los na tosca terminologia terrana, própria para mentes primitivas demais para o domínio de múltiplas dimensões.

E não estavam sós. Havia Designados, Designadores, Interpretadores, Integrados. "Seres" adimensionais puramente energéticos e artificiais, componentes de uma extensa hierarquia responsável pelo funcionamento dos experimentos programados - pelos ignotos e semilendários Astroengenheiros - com os exóticos universos-bolha que, vazios de vida inteligente, flutuam eternamente entre o hiperespaço e o ultraespaço, imersos num oceano sem fim de metaplasma. Entre a 5ª e a 6ª dimensão. Não eram fenômenos de origem natural. Por milhões e milhões de anos, após a partida de seus construtores - uma raça de gigantes mentais que subjugara todas as forças da natureza e todos os segredos do tempo e do espaço - , permaneceram estéreis e imaculados, livres da podridão da vida orgânica, sendo controlados por seus amórficos Designados, moradores de núcleos ucrônicos fechados e teoricamente inacessíveis para tecnologias abaixo do patamar das supercivilizações dos anunnakis, Éticos e Céticos.

Agora, a maior parte das bolhas-universos - cujo diâmetro, se bem que variável, jamais excede um ano-luz ou 0,307 parsec - fora reaproveitada pelos industriosos Kang, que dispunham da necessária tecnologia de forças parafísicas não só para abri-las como para reprogramar seus núcleos ucrônicos teoricamente invioláveis para novas e obscuras funções, totalmente incompreensíveis para as mentes inferiores dos habitantes de zonas espaciais de 3ª e 4ª dimensões. Tornaram-se, portanto, Interpretadores - analistas e intérpretes do Grande Plano universal - , um patamar somente abaixo do grau máximo de Integrado, da Total Depuração e da fusão com o Grande Plano, a "memória ROM" a nível universal que cada universo-bolha sabidamente possui e que reproduz, em escala micromicrominiaturizada, uma versão do que seria o monolítico "programa-mestre" primal do nosso Universo de 100 bilhões de galáxias e um sextilhão de estrelas (e que, para os cabalistas judeus modernos, outra coisa não é senão a arquiverdadeira Torah). Em épocas cosmicamente recentes - entre a queda do Primeiro Império Galáctico e o despontar dos Mundos Livres pós-yadrahíticos - , facultaram aos chamados Céticos da Via Láctea o acesso a um universo-bolha recém-projetado de 153,37 parsecs de diâmetro para criarem o seu Império Estelar Romano, transplantando para o mesmo uma realidade preestabelecida, por cronodificação, conforme exigência das superinteligências Yshren, habitantes de uma megasfera Dyson ao redor do Núcleo Galáctico de Andrômeda. A experiência Cética resultou numa colossal explosão que destruiu 90% da bolha e mergulhou todo o restante nas trevas da irracionalidade.

Nada disso importava para os Kang. Eram senhores incontestes do continuum hexadimensional, a sexta dimensão absoluta. Seu mundo era atemporal. Podiam mover-se tão à vontade no supertempo "acima" do tempo normal, um bilhão de anos para o futuro e um bilhão de anos para o passado, quanto no hiperespaço, de uma extremidade a outra da Galáxia. Diferentes dos insanos e onipotentes Qi Mu*ur - ou Qema'u Ur — do Hipercontinuum Qa'i qa sh'au (conhecidos como "Q" e "Continuum Q" pelas raças evolucionárias do universo físico que habitamos), eles não eram um bando de deuses indolentes. Desenvolviam seu trabalho e sua criatividade - criando uma região do continuum de espaço-tempo inacessível ao estado oscilante do Universo cíclico, símile modo aos núcleos ucrônicos invioláveis nos universos-bolha dos Designados, onde a preciosa carga de informações vitais para o disciplinamento do ciclo evolutivo universal à sua vontade repouse, em total segurança, para a eternidade, além do tempo e do espaço. Ainda que este seja, tão somente, um entre infinitos Universos do Multiverso.

Eles sabiam, porém, que nem tudo que está esquecido precisa obrigatoriamente estar morto, e não queriam em hipótese alguma a volta dos Tempos Antigos, quando as terríveis e odiosas extensões de antivida dos Primordiais, em locas escuras e inconcebíveis fora do Grande Universo, governavam as estrelas. E ameaçavam perigosamente o livre desenvolvimento da vida consciente deste lado da Criação.

E então, em suas deambulações pelo universo hexadimensional, patrulhando a periferia da Galáxia, os Kang terminaram por deparar com algo malignamente espectral e de tamanha magnitude que trouxe à baila seus temores atávicos mais profundamente arraigados em suas teias de energia multidimensional.

Algo contra o qual até seus poderes divinos seriam impotentes.

A Sombra Negra!


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Notas finais do capítulo

Finalmente, após 1.001 adiamentos, concluí vitoriosamente este capítulo!!! A título de informação: "allukan" vem da palavra hebraica (bíblica) "aluca", "sanguessuga"; "Sanguinomicon", assim como o "Necronomicon" inventado por H. P. Lovecraft, vem do grego clássico, e significa "Livro da Lei do Sangue", e, tal como a Ordem de Aset Ka, EXISTE REALMENTE (maiores detalhes, só na wikipédia), sendo que eu apenas adaptei os nomes para minhas necessidades fictícias (como o fizeram Mary Shelley, com o nome da família Frankenstein, e Bram Stoker, com o nome e a figura histórica de Vlad Tepes, o Drácula). Para compor minhas raças vampíricas (tanto os allukans de procedência terrana quanto os pseudovampiros do planeta Yphsis), recorri a várias fontes, tais como Blade, True Blood, Resident Evil, I Am a Legend, os livros de Richard Matheson, Anne Rice e Stephenie Meyer, Richelle Mead e J. R. Ward, os mangás Vampire Knight, Dance in the Vampire Bund, Rosario + Vampire, Blood+ e Trinity Blood etc. Aliás, a ideia de introduzir vampiros como uma das raças "alienígenas" de uma Federação de Planetas "à la Star Trek", por bizarra que pareça à 1ª vista, deu-me a oportunidade de explorar a questão do racismo e do preconceito, numa sociedade multiestelar que (teoricamente) já deveria ter superado tais questões - isto vale igualmente para outras "minorias" do futuro, como os clones, andromanos (replicantes), "genricos" (meta-humanos geneticamente alterados ou "melhorados") e várias outras raças ou subraças de mutantes. O biotipo dos tzitzimine foi inspirado nos magogs do seriado de TV de ficção científica "Gene Roddenberry's Andromeda". E até o próximo capítulo!