Sonhos Perdidos - Contagem Regressiva escrita por Adriano Noé


Capítulo 3
Capítulo 2 - Borrão


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/297141/chapter/3

–Mas ficou muito apertada, não ficou? -estava de perfil, em frente ao espelho, não conseguia respirar direito com aquela camiseta nova que Helena tinha me comprado, comprimia minhas costelas sob a pele, inspirava com dificuldade- acho que você comprou dois números menores -dou uma risada alta, Léo esboça um sorriso, fica me olhando atentamente, do lado da mãe. Dois meses se passaram desde o dia do acidente que matou meus pais. Nós estamos no quarto de Léo, meu quarto, desde, bem...

Vovô estava muito velho para cuidar de mim, e amigo nenhum dos meus pais iria me adotar, posso dizer que “amizade tem limite”, como dinheiro, paciência, dedicação, tempo, além do mais, os Domingues eram mais próximos da gente até mesmo que nossa família autêntica. Antiga família, tudo se chama mudança agora. A antiga cama foi substituída por um belo beliche. A decoração continuou a mesma, paredes brancas e azuis, um computador, uma mesinha, alguns livros infantis em uma prateleira sobre a mesa de estudos, um tapete de um desenho animado que nem eu conheço, no centro, seus brinquedos e alguns quadros de família, que às observo olhando durante horas, imaginando meus pais voltando à vida.

Gostaria de ir pescar de novo com o papai, pedir desculpas por todas as vezes que os desobedeci, comer a deliciosa comida da mamãe, só ela sabia fazer pizza do jeito que fazia, de abraça-la e de avistá-la do portão da escola, às vezes sinto saudade até mesmo de ouvir seus xingamentos, os conselhos bobos e repetitivos, dos apelidos ridículos, e das tardes que passávamos vendo filmes debaixo do mesmo cobertor, na mesma cama, no mesmo quarto, em um mesmo sonho. -Está na hora de acordar Ana, o tempo não parou para você, nem vai parar. -meu inconsciente falou, tinha razão.

–O vendedor disse que podemos trocar, mas acho que ela ficou bem em você- diz Helena em um tom irônico.

Rimos juntos. Helena é uma boa “mãe”, mas ela nunca substituiria minha antiga família, nunca a chamei assim, ou a tratei desse jeito, apesar de ela me tratar como sua filha. Léo é um menino muito quieto, mas converso muito mais com ele desde que vim morar com os Domingues, às vezes jogamos vídeo game e o garoto acaba ficando furioso quando eu ganho. No colégio estamos sempre juntos, brincando. Nossos colegas acha que somos namorados. Sempre coro, quando nos apontam desse jeito. Não penso nele como um namorado, mas o acho um bonitão!

–Acho que vai ser preciso mã... Digo, Helena.

Ficamos nos olhando durante alguns segundos, abaixo a cabeça.

...

Um dia escutei Helena conversando com Antenor, seu marido, a meu respeito, que eu alterei as despesas, que eu poderia ser um mau exemplo para o menino, porque Léo é um ótimo aluno, na verdade o aluno mais aplicado da sala, o que todo mundo chamava de nerd, meu irmão era até um pouco antissocial.

...

Passou-se o dia das mães, dos pais, o aniversário deles, e fui acostumando-me com a falta que Lúcia e Roberson, o vazio foi diminuindo e mesmo relutantemente aqueles outros três foram se tornando minha família, foram se tornando os meus substitutos, inclusive Antenor começou a reconhecer a mim e meus esforços, minhas notas aumentaram, Helena se surpreendeu quando viu meu último boletim: passei para o oitavo ano!

...

Anos se passaram até que meus pais eram apenas um borrão na minha memória, apenas uma fase que tinha que tinha se arrastado dolorosa e amarguradamente. Hoje, é apenas uma sensação desconfortável. Seus rostos tornavam-se estranhos, manchas acinzentadas cobriam seus rostos, levando-os de mim. Fantasmas.

...

Finalmente terminamos a mudança! Eu tenho meu quarto e Leandro tem o seu (ele não gosta mais de ser chamado de “Léo”, mas às vezes eu o faço pra deixa-lo bravo). Como posso dizer? O garoto pequeno cresceu, cortou o cabelo, a velha franja foi extinta e agora, desordenado de uma forma tentadora, os fios loiros pairam em uma espécie de topete, com um tom dourado e outro mais descolorido. Leandro ficou mais sarado e nem um pouco antissocial, na verdade, social até demais. Passa mais tempo surfando do que na escola, resultado: um bronzeado que acabou com a pele pálida, unindo-se aos tons do penteado, enfim, ele mudou bastante... E eu? Bem... Eu continuo a mesma magrela de sempre, sem curvas, sem tetas, apenas meu cabelo cacheado poderia salvar a situação, e mesmo ele não é confiável pela manhã, sempre resolve criar guerra comigo, contudo, depois de amenizado, os fios descem onduladamente em um tom negro, parando centímetros acima da costela.

–Preparada para a nova escola? -ele me pergunta apontando aquele tradicional sorriso.

–Com certeza -disse em um tom que quase soava um desafio. -Com certeza.

“Meu primeiro ano no ensino médio”, eu não gosto muito disso, a ideia já faz meu estômago revirar, seguindo a risca o bambolear do meu corpo, dentro do carro.

–Leandro -eu disse olhando através da janela. Ele não responde. Desvio a atenção da rua e volto para o garoto. Uau. Parado, do meu lado, com aquela expressão séria, atento apenas aos seus fones de ouvidos, eu quase conseguia identificar a música que Léo escutava, acompanhava com a batida do pé. O sol atravessava o vidro do Focus vermelho e refletia no belo rosto de Leandro, iluminando gloriosamente os belos orbes verdes e o cabelo dourado, parado ele resplandecia. Fiquei um tempo distraída olhando para a paisagem assentada ao meu lado, o menino era mesmo bonito, não parecia a mesma criança apática, que conversava com ninguém, que passava o intervalo inteiro sentado no banquinho de madeira sob a velha cerejeira da escola.

Ele tira o fone de ouvido e olha pra mim. Enrubesço. Helena acaba de fazer uma curva, estamos passando por um pequeno parque.

–Falou comigo Ana? –a voz era serena.

–Ãh... Era nada... –eu tinha esquecido...

–Tchau mãe –beijei-a dentro do carro, senti o doce perfume e desci, Thomas Gonzáles estava erguido a minha frente, imponente, a escola era realmente muito grande! De onde eu estava já conseguia ver uns garotos jogando reunidos em um canto, um com uma bola de futebol debaixo do braço conversando com outros três, grupos de garotas sentadas, observando-os. Estas são as vadias, penso eu. Mais próximo do portão de entrada, sentados sobre as escadas, um pessoal armado de livros, olhos astutos transcorrendo as páginas. Leandro me dá um leve empurrão nas costas... De repente uma garota ruiva, que eu nem sei de onde surgiu salta no Léo.

–LÉO -grita com a voz esganiçada. Quem é aquela vadia que tá pulando no pescoço dele? -Quanto tempo hein garoto? -Léo dirige o olhar para mim, não entendi bem a mensagem... Não identifiquei se ele está com vergonha, ou me pedindo socorro, com os olhos...

–Dara... –diz Leandro, depois de um tempo, com a voz ainda meio rouca.

–Quem é esta garota Léo? -ela ainda está presa no pescoço dele, agarrando forte, como uma pulga, carrapato, sarna.

–Ora quem sou eu, estou ofendida agora, não se lembra mais de mim, dentada?

Coro instantâneamente. NÃO... NÃO PODE SER ELA.

–Dara Gigante, a Dara da 4B... Você cresceu! -eu estava boquiaberta.

Havia dois metros de distância entre nós, estávamos uma examinando a outra. Ela emagreceu, tingiu o cabelo de uma cor vermelho-escuro, realçado pelo tom de pele bem claro, e cresceu bastante, era baixinha e agora está quase mais alta que eu, com a mão na cintura em posição de modelo. A Dara gordona ficou no passado para dar espaço a uma garota totalmente diferente, de personalidade também.

Dara estudou comigo no quarto ano, e eu era sua única amiga, as garotas não se aproximavam dela, diziam que ela era fedorenta e outras coisas mais, por isso era comigo que ela dividia o lanche, pra mim contava seus segredos, e na minha casa que dormia nos fins de semanas. No tempo que meus pais eram vivos. Mordi o lábio, abafei a lembrança e voltei o pensamento para a minha amiga. Vestia uma saia curta preta, uma camiseta rosa escrito: “I love NY”, com várias aberturas irregulares nas costas, rasgos, dando uma silhueta pouco mais ousada. Também calçava um salto alto preto.

–Nossa, você continua a mesma. –respondo a exclamação com um sorriso nervoso.

–Você também a conhece Bella? -ele me olha de forma suspeita.

Não eu que pergunto Léo, VOCÊ a conhece?

–Sim.

–Nossa, que coincidência... -Dara abre um sorriso “de orelha a orelha” -Encontrar dois amigos que eu não via há tanto tempo... Aliás, você um gato em Léo. -risinho.

É ela mudou mesmo, não suportava os meninos. Para ser mais precisa, era quase um trauma que Dara tinha, os garotos chamavam-na de gordona na escola e ficava designada a mim, a árdua tarefa de afastá-los dela, e é por isso que me chamavam de dentada, porque eu mordi um dos meninos no braço, e ele nunca mais chegou perto da gente. Erámos grandes amigas, mas tudo isso mudou quando ela foi morar em Pelotas, nosso contato foi diminuindo cada vez mais até os e-mails ficaram escassos o suficiente para suas respostas tardarem, acabaram-se as cartas e cada uma seguiu seu caminho, com seus ditos amigos. E agora ela aparece, bonita, e já afiando as garras no meu... Dentada?

–Não gosto que me chamem assim, Dara, você sabe disso..

–Ora, mas eu posso, lembra? Somos boas e velhas amigas...

O sinal toca.

–Bem nos vemos no intervalo. - ela sorri, eu sorrio.

Amigas. Revirei os olhos só de pensar.

–Nos vemos -disse, torcendo que não a visse mais, nem ruiva, nem careca, nem pintada de ouro.







Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Desculpem pelo atraso de meia hora. :
Me esforcei ao máximo para postar o mais rápido possível.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sonhos Perdidos - Contagem Regressiva" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.