Após diversas noites de insônia e pânico, Nichole percebeu que talvez o propósito da aparição de seu demônio não fosse a amedrontar, nem a machucar. Deitada de bruços, com a cabeça sobre seu urso, que já estava molhado com suas lágrimas, desabafou:

– Por que eu?– E da sombra do canto do quarto ele surgiu.

– Um dia você vai entender.– A voz seca e grossa dele, para os ouvidos de Nichole, era acolhedora, afinal, nunca havia conhecido seu pai. Sentou-se na cama para ouvir o que o ser tinha a lhe dizer. - Tenho um grande propósito para você, minha querida.

– Moço, o que é um propósito? – Ele se limitou a sorrir cinicamente e sair do quarto. A menina deitou-se novamente, confortada por saber que seu observador não era tão mau assim.

Ao acordar para ir à escola encontrou uma rosa sobre seu cobertor, havia nela um cartão que dizia "Não tenha medo". Sorriu ao ler e se arrumou para o primeiro dia de aula.No quadro negro, escrito em giz rosa, estava o exercício: O que você fez nas férias? Mínimo de 15 linhas.

"Fiz um amigo, um amigo diferente. Ele não tem rosto e me assusta bastante, mas ele é legal. Ele fica no meu quarto todas as noites, parece que fica me olhando, mas ele não tem olhos. A primeira vez que eu vi ele foi naquele dia que tava chovendo muito, ele tava no meu quintal e eu fui fechar a janela e vi ele lá, eu fiquei com muito medo e fui pra baixo do cobertor, mas ele entrou no quarto, deu pra ver ele lá. Eu me senti protegida dos trovões. Ontem eu falei com ele. Ele não tem boca, mas falou comigo. Ele falou que tem um propósito pra mim, só que não sei o que é propósito, e quando perguntei ele riu e foi embora. Fora isso eu brinquei com o Tibbers nas férias, Tibbers é o meu urso (...)"

O sinal tocou, os alunos entregaram as folhas para a professora, que lia uma revista de fofocas sentada com um dos pés na mesa, e saíram para o recreio. Nichole era como uma criança normal, brincava com todos e ria de tudo, não passaria pela cabeça de ninguém o que acontecia com ela. Após lancharem e brincarem por vinte minutos o sinal toca novamente, aula de artes agora.

– Crianças, peguem seus lápis de cor e façam um desenho bem bonito da sua família.– Disse a professora. - Quando eu voltar quero ver desenhos bem bonitos, tá?

Nichole se animou, pegou todos os lápis que ia precisar, abriu seu caderno de desenho e começou o seu desenho. Terminou de desenhar e ficou conversando com as suas colegas da turma.A professora entrou na sala e começou a passar de mesa em mesa vendo os desenhos dos alunos, e parou na de Nichole para perguntar:

– E a sua mãe, Nichole? Não acha que ela vai ficar chateada se não tiver no desenho da família?

– Não vai, professora, ela não liga pra essas coisas. – Nichole sorriu e continuou a conversar. O resto da aula foi se passando até tocar o sinal de novo. Hora da saída. Nichole arrumou suas coisas e foi pra casa, ao chegar o jantar já estava na mesa e sua mãe a esperava.

– Me ligaram da escola, querem falar comigo.– Ela disse, entre uma garfada. - Espero que não tenha feito nada.

– Não fiz mãe, só fiz uma redação e um desenho hoje.

– Acho bom. Anda, venha comer, o jantar vai esfriar. - A menina deixou a mochila na sala, sentou-se e nada mais foi dito durante o jantar inteiro. Após terminar de comer tomou seu banho, pôs o pijama e gritou de seu quarto um sonoro "Boa Noite" para sua mãe, que a deixou sem resposta. Ajoelhou-se no pé da cama, com os olhos fechados e as mãos juntas. Orou, e ao terminar deitou-se, esperando seu amigo aparecer mais uma vez.