Pilares da Criação escrita por Mylanessa


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/288774/chapter/1

Albertine guardou na geladeira o que sobrou do bolo do seu aniversário de trinta e cinco anos. O girar da chave na fechadura e o rugido do motor arrancando no asfalto ainda ecoavam nítidos em seus ouvidos. Era tudo não fresco, tão iluminado pelo tato e pelos sons, que nem mesmo os vestígios do “até logo” deixara seus lábios por completo. As palavras tamborilavam no ar. O que também prolongava, era a sensação dos ternos de lã fria e o frescor dos vestidos de musseline em abraços de despedida. Precisou ser trespassada por uma lufada de vento frio para ser varrida dessas frescas lembranças.

E a casa, bem, ela finalmente suspirava aliviada. Embora estivesse impregnada dos rastros deixados por presenças alheias: o perfume fátuo no hall de entrada; dois semicírculos no assento de espuma do sofá; o forro de festa amarrotado, pendendo no canto da mesa de jantar; a mesinha de centro afastada numa extremidade para que os convidados pudessem andar com liberdade; as taças sujas com marcas de batom espalhadas pela sala de estar; garrafas de vinho deixadas pela metade. Pela janela aberta o luar derramava sombras e feixes prateados, tingindo o cenário com um brilho fantasmagórico.

Os passos da aniversariante ecoaram casa afora, invadindo cômodos e frestas vazias. As paredes perseguiam sua residente em seu regaço de penumbra e solitude. Albertine era solteira e jamais teve filhos. Jamais os poderia ter. Desde criança ouvira coisas como “Albertine não tem corpo de menina, até seu irmão tem mais curvas do que ela”, “Albertine não leva jeito pra essas coisas de moça”, “Albertine daria uma mãe bem engraçada”. Em seus trinta e cinco anos ainda não havia conhecido nenhuma mãe engraçada. Jamais entendera o termo e o achava tetricamente ofensivo. Mas, naquela idade, só podia ouvir quieta, cativa em seu mundo de quase-menina. Fingindo não se importar, fingindo se interessar apenas pelos babados do vestido da boneca.

Apesar de tudo, um dia quisera ser mãe. Um sonho de capa de revista. O fato é que a natureza não a construíra para isso. Ao menos não para parir o tipo de filho que se gera da fusão de células deste e daquele. Tivera um marido, mas ele logo partiu. Foi atrás de um terreno fértil para semear sua semente. Tinha em si a herança de seus antepassados, seu dever, os vindouros méritos masculinos. Um casamento sem crianças, segundo ele, é como o deserto: pilares de areia estão fadados a ruir. E como ruíram. O estrondo os esmagara, marido e esposa, presos aos escombros. O homem ansiava por terra firme. Tinha espírito de Conquistador e seu estandarte flamejante necessitava de território seguro para se abordoar. E Albertine era tumultuada como uma tempestade marítima. Desviava navios da rota e os afundava. Ela era um acidente. Era feita de ondas vacilantes, revoltas sem direção certa, ora ondas do oceano, ora ondas do deserto.

Albertine ignorou os restos da festa e foi até a varanda. Soltou os cabelos amarelos e chutou as sandálias para longe. Numa mesinha estava a caneta marcando as páginas de um caderno. Apanhou-os. Sentou-se no chão mesmo, e usou a mesinha como apoio. Abriu as páginas onde ainda não tivesse sido riscada. Deixou a mão ali, pairando sobre o vazio. A ponta da caneta ameaçadora, mirando uma linha.

Adiante o pequeno jardim balançava seus ramos e folhas distribuindo a fusão de aromas da noite. Havia muito de si em cada pedacinho daquele lugar de cores e texturas, obras de arte em miniatura; várias vidas, vários mundos. Era a rainha Vitória do canteiro de flores multicoloridas. Ali vestia suntuosos vestidos e lia clássicos franceses enquanto bebericava o chá. Mas também era uma guerreira oriental abaixo do pé florido de cerejeira. Brandia o gume afiado da katana abrindo cortes no ar. E por que não, uma astronauta por entre os bulbos de tulipas sempre tão bem ordenados, como se orbitassem em torno de si mesmos.

Gostava da solitude. A vida a fizera uma mulher de si mesma. Não era tristeza, nunca foi. Era somente o seu jeito de acontecer. Quando em público Albertine agia. Era toda gestos, uma enxurrada de palavras acentuadas por expressões muito vivas. Mas quando estava a sós ela florescia. Também gostava de arranhar o papel nas horas de inspiração. Mas antes era preciso criar. Ela criava sozinha, tecendo visões como retalhos soltos, metendo a agulha e linha aqui e ali. Às vezes os costurava frouxos ou apertados demais, e um reparo ou outro eram sempre necessários. E às vezes os desfazia e os rearranjava em pares que combinassem melhor.

Em seu íntimo estava sempre ansiando pela maciez úmida e fértil do travesseiro, a cortina aveludada das pálpebras, tão suave, tão delicada, de pele, veios, e perduráveis células. Encerrava além de sua vulgar fragilidade uma cadeia infindável de improváveis galáxias com suas improváveis constelações e populações. As vozinhas cochichavam inquietas, perseguiam-na exigentes, pedindo a ela seus retratos de tinta esferográfica no papel. Albertine agitava-se nas entranhas ante tais clamores. Meus filhos, pensava, sempre tão cheios de caprichos, nunca me deixam em paz! Necessitava então de um daqueles ligeiros fragmentos de retiro social para saciar a vontade daquelas criaturinhas de dentro da sua mente. E de tão ligeiros esses momentos eram raros. Tudo o que é raro vem em lapsos, passagens fugazes de êxtase. O brilho é apenas um risco esquivo no céu, ansioso para partir.

Nesse momento de romântica fantasia as engrenagens começam a girar. O líquido negro e viscoso escorre entre os órgãos da máquina. Cada segmento de roda preenchendo as fendas da outra, movimentando-se, viva, fluída, pulsante, repetindo o ciclo até se saciar. Até o infinito, pois sua sede é de criação. Do lado de fora, na esfera orgânica, Albertine vê o mundo correndo através de suas lentes quadradas; ou em câmera lenta, assistido com serena paciência como se o enxergasse do banco de uma praça. A máquina escondida, segura debaixo das entranhas.

As lentes, a camada fina e transparente que se interpõe entre a imaginação e a realidade. Devagar, a existência medíocre do objeto se eleva, o cotidiano ganha contornos sublimes. Então, como se comunicasse com suas terminações nervosas, o zunzunzum do cenário a envolve num invólucro de nuvem e plasma. E o embalo sem ritmo constante faz sacolejar as palavras do consciente, da alma, faz o corpo adormecer, despertando a sensibilidade derradeira do mundo interno.

Nessa embriaguez Albertine sofre, ri e chora. Sente o coração ser lacerado por uma, duas, mil saraivadas de cacos afiados, cintilantes, tão lúcidos quanto a carne que é rasgada ou o músculo que se contorce. A dor é viva e real. Espalha-se pelos membros, deixando um rastro sulcado na carne árida. O corpo então clama por líquido e ar. O coração é suspenso por alguns minutos para que as superfícies recobrem o equilíbrio. Albertine se exaspera e bate com o punho no papel. Todo desejo é impaciente, afinal. Esperar em sossego é descaso. De olhos fechados, Albertine deixa a dor Deles a consumir, trilhar o próprio caminho, ser dona dos próprios méritos. Ela respira, profundamente, solenemente. O veneno doce então voltar a circular. O coração bombeia sua doçura, irriga cada artéria com suas boas e más intenções.

A toxicidade da droga dura pouco. Dura o suficiente para fazer nascer um punhadinho de centelhas. Ela as guarda, molda, dá lustro aos seus contornos com a ponta firme da caneta. E sem aviso a droga desaparece em efêmera conclusão. As fibras contraem, nervosas, ávidas, insaciadas. A fraqueza que precede o esgotamento se torna tão atraente quanto a densidade consoladora do abismo. Então os ligamentos vibram com o mesmo empenho dos cordões de uma máquina de fiar. Esticados, tensos, carcomidos. O pequeno terremoto inunda o corpo em torrente muda. As ondas de vibração erguem-se triunfantes, como se abarcasse sua imponência no dever de executar a obra em si. Como é doloroso ser o rei dos próprios vícios e das próprias curas, Albertine enunciava a ninguém.

Estava cansada. Finalmente consumida. A caneta falhava e não conseguia frear o fluxo de consciência. Esfolou um canto da página tentando fazer a tinta descer, mas seu único êxito foi um talho feioso no papel. Aborreceu-se, juntou as coisas e entrou para o conforto uterino do lar.

Gostava da inquietação da casa vazia. Na totalidade do seu silêncio era possível ouvir as paredes, o chão; os respiradouros suavam, sussurravam a vida de fora para dentro, trazendo notícias do mundo exterior como quem conta uma anedota. Histórias ancestrais, gargalhada de gente velha e sabida. Se prestasse bastante atenção dava até para ouvir as risadinhas.

Os móveis em seus graves contornos observavam Albertine transitando entre eles. Há orgulho em seus olhos de pedra e madeira. Orgulho de contemplar a criação feita, de ver o rebento brotar de uma fagulha, acompanhar seus ramos a ganharem viçosidade e sustento. A casa vazia é um palco. É como espiar pela fresta de um Coliseu em glória e absorver sua vasta imensidão. O mundo e seu olhar onisciente se contêm na rigidez das colunas. Nada se mexe, nada se pode ouvir. É uma lei obedecida apenas por aqueles que a podem sentir.

Já estava no quarto. Trocou as roupas de festa pelas roupas de dormir. Repousou o caderno com carinho materno na mesinha de cabeceira. A cama estendeu seus braços para o corpo da mulher de trinta e cinco anos. Estava realmente muito cansada. O travesseiro massageou seu crânio, quente e tagarela. Em vão buscou esvaziar a mente, mas sabia que era batalha perdida. Ah, só hoje, prometo que é só hoje! O vazio surdo às suas súplicas, não veio. Logo os sons começam a buscar aliança com as cores, e, desse todo entrelaçado, a beleza e harmonia eram concebidas outra vez. Um ciclo infindável, onde tudo era novidade, do ontem, do hoje e do amanhã. A criação então se transforma em paisagem. Cada estado revela um novo quadro, cada gesto ou decisão uma nova história.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Aos que leram: muito obrigada!